MILITARIZAÇÃO DO ESPAÇO POLÍTICO RESOLVE?
Tem crescido o discurso de
enaltecimento das Forças Armadas, o que, em si mesmo, nada tem de negativo.
Trata-se de uma instituição hoje muito respeitada e pela qual tenho grande apreço.
Mas a questão sobre a qual quero aqui fazer uma reflexão se refere a um outro
discurso que em boa medida emerge do primeiro: o da defesa de sua intervenção,
direta[1]
ou indireta[2] na
na esfera política como pretensa panaceia para nossos problemas socioeconômicos e
políticos.[3]
Para tanto, esse discurso cria artificialmente uma dualidade entre o civil e o
militar. O espaço civil seria o espaço da desordem, da corrupção, da
degeneração moral. O espaço militar seria o espaço da ordem, da probidade e do
retorno aos valores morais que teriam sido perdidos. Esse discurso sofre de um
sério problema lógico e prático.
Ocorre que o ser humano militar
não vive em uma bolha apartada de nossa conjuntura e de nossas mazelas. O homem
que hoje trabalha como servidor público militar nasceu e vive na mesma
totalidade social que o não militar porque as forças armadas estão inseridas na
mesma totalidade social em que o resto da sociedade vive e em que as relações
sociais se estabelecem. Aliás, todos nascemos não militares. O hoje militar frequentou
os mesmos espaços que o não militar na sua vida antes da farda e, mesmo depois
dela, está submetido aos mesmos valores e ao mesmo caldo de cultura que nos
condiciona – uma vez que a vida não se dá apenas dentro da caserna.
Guardadas suas peculiaridades, os
militares são, igualmente aos civis da órbita estatal, servidores públicos,
sujeitos a um regime jurídico análogo.[4]
E, ontologicamente, não há nenhuma explicação que diferencie em seus caracteres
morais e éticos um ser humano que usa farda de outro que não a utiliza (ou um médico
militar é mais ético do que um civil? Um engenheiro militar, da mesma maneira, é
moralmente superior a um colega civil?). Assim, não há motivo para imaginar que
haveria menos corrupção fora que dentro dos quarteis e a farda não modifica o
caráter do ser humano – para melhor ou pior.
Mas para os adeptos do discurso
militarizante das relações sociais, a solução está a apropriação dos espaços da
sociedade civil pelo militarismo. E não bastam os exemplos das grandes
democracias contemporâneas, todas elas civis, nem no fato de que, no resto do
mundo, os regimes militares são identificados com o totalitarismo, o genocídio,
a violação de direitos humanos, a corrupção e o estado de exceção. Nem mesmo a
experiência europeia da primeira metade do século XX, com a catástrofe do
militarismo fascista e nazista, é capaz de aclarar e trazer à razão aos que
hoje clamam por uma ordem militar regendo a vida no Brasil.
Esse discurso tem um tom messiânico:
investe nos que usam fardas e botinas como portadores de nossa redenção. E quem
nos salvará dos bons redentores? A experiência mostra que esse tipo de regime ansiado
descamba para o autoritarismo. Regime baseado na força quer homogeneizar e, por
melhor que sejam as suas intenções, mostra a história das nações, tende a
cometer excessos porque não há espaço para o dissenso. Além disso, como nossa
história bem mostrou, se tirar o Exército dos quartéis não é tarefa fácil, por
de volta também não é.
Não podemos nos deixar enganar. Os
problemas que enfrentamos hoje são antigos. Foram anteriores e também contemporâneos
do regime civil-militar dos anos 60 a 80 – que não os debelou por uma razão
simples: são estruturais, perpassando todas as camadas sociais. É preciso, para
o bem no nosso amadurecimento político, desfazer a fábula: ninguém se torna
melhor por iniciar uma carreira militar como também não se torna melhor por
passar em um concurso público civil.
Eu, enquanto agente político e
servidor público civil, não me considero (nem acho que alguém deva se
considerar) inferior a qualquer militar. Nem superior porque o militar não é,
ontologicamente, diferente do civil. Somos todos humanos – nas nossas
fortalezas e fraquezas, vícios e virtudes, e elas vão se revelar em nosso
ser-no-mundo. Pessoas boas e ruins há em todas as instituições – públicas ou
particulares, civis ou militares – e a corrupção, acredite o leitor, é
democrática nesse aspecto.
A cobrança de intervenção militar,
na verdade, diz muito a respeito de quem a pede. Formamos uma sociedade forjada
no autoritarismo e na escravidão, passando pelo coronelismo e as oligarquias.
Nossa desigualdade socioeconômica – mundialmente conhecida – não vem à toa. É
fruto da insuficiência de políticas públicas includentes, quando não da
existência de outras excludentes. E esse empobrecimento e opressão precisam ser
mantidos à força. Por isso vivemos períodos de exceção e o autoritarismo esteve
sempre à espreita em nossa história enquanto povo e nação.
Dentro dessa ideia autoritária do
militarismo, dada a natureza de hierarquia, existiria uma figura que nos direcionaria
os caminhos. Essa figura, imagina a ingenuidade desse discurso de hoje, poria a
ordem e ajustaria a sociedade à força. Esqueceram, porém, que seja qual for a
figura, por ser impossível dissociar o homem da totalidade que o gerou, fora de
um espaço de submissão à potestade pública, corremos o risco de nos submetermos
a um tirano. Como no dizer de Sófocles, “o poder revela o homem”.
Não necessitamos de um "pai",
personalizado em uma pessoa fardada de posturas e manifestações autoritárias ou
em uma instituição qualquer para nos dar ordens na esfera civil porque não somos
politicamente ineptos. Devemos exercer a cidadania, e ela só existe na
regularidade democrática que determina como se deve assumir e depor nossos
representantes e como devem ser feitas material e formalmente as leis que devem
reger nossa vida nacional. A República é, antes de tudo, um governo de leis, e
não de homens.
Qualquer discurso que aposte no
militarismo e numa suposta solução pelo uso de armas e da força bruta para
resolver problemas em uma sociedade altamente complexa como a brasileira,
termina servindo de embuste. Uma lógica de guerra – destrutiva em sua essência –
em uma totalidade social que necessita construir novos caminhos se torna
claramente paradoxal e contraditória.
Nosso déficit democrático é
secular e continua muito grande. Ele não será resolvido por eleições a cada
dois anos e muito menos por uma intervenção militar ou pela nossa submissão a
um discurso autoritário e bélico, populista no seu sentido mais pejorativo - e
hipócrita. Democracia é participação popular, é a centralidade no cidadão, é da
vez e voz a pluralidade que constitui uma sociedade multifacetada como a
brasileira é.
Temos, mais do que nunca, que
erguer espaços de diálogo construtivo. Isso não será alcançado pela
militarização da vida, porque a lógica militar é a da guerra e a guerra
destrói. Temos que dar mais voz e ter mais ouvidos. É exatamente nesse momento
que mais necessitamos de brandura e serenidade. Não precisamos retomar a
estrada já trilhada que fracassou porque não só não resolveu nossos problemas
como também nos retirou a voz, a cidadania e a liberdade. Definitivamente, o
que precisamos não é de mais autoridade, mas sim de mais alteridade para
construirmos o novo e o diferente.
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*Rosivaldo Toscano dos Santos Jr. Doutor em Direito (UFPB - CAPES 5). Mestre em Direito (UNISINOS - CAPES 6), MBA em Poder Judiciário (FGV-Rio). Professor da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte (ESMARN). Juiz Titular do 3º Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Natal, Rio Grande do Norte.
[1] O
que eufemisticamente chamam de “intervenção constitucional” ou por meio do que
o Rio de Janeiro vem sofrendo nos dias de hoje).
[2]
Por meio de representantes oriundos diretamente do militarismo ou de um espectro
político alinhado ao discurso militar.
[4]
Talvez o exemplo mais claro se dê com as polícias. As polícias militares não
guardam nenhuma superioridade ontológica, orgânica e funcional em relação às
civis, nem mesmo nas suas mazelas. Os policiais militares não são mais probos,
éticos ou eficientes. Da mesma maneira, as forças armadas guardam a mesma
similaridade com as polícias federais.
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