Guernica - uma lição de cidadania para as eleições
Lendo o livro “Sobre
la Violencia. Seis reflexiones marginales”, de Slavoj Zizek, deparei-me com
uma passagem em que ele conta uma anedota conhecida na Europa. Um oficial
alemão visitou Pablo Picasso em seu estúdio em Paris, durante a ocupação nazista
da França. Ali, viu a pintura Guernica e, surpreendido
pelo caos vanguardista do quadro, perguntou a Picasso: - Foi você quem o fez? Ao
que Picasso respondeu: - Não. Vocês o fizeram.
O que tem isso a ver com o nosso processo eleitoral? Este ano
teremos eleições municipais. Isso merece uma reflexão sobre: a) os eleitores; b)
quem são os candidatos; c) como são eleitos; d) como é nosso processo eleitoral
e qual o nosso papel.
Numa roda de amigos, político é o Judas. Serve só pra ser
malhado. “Corrupto”, “demagogo”, “preguiçoso”, “sem escrúpulos”. É um ser que
não possui qualidades. Um antro de defeitos e perversidades. Mas como ele foi
parar onde está? Culpa-se logo a corrupção, a compra de votos e o povão que não
sabe votar. O pobre, principalmente, que vende seu voto por um milheiro de
tijolos. Mas não são os pobres que vemos cedendo e/ou guiando as centenas de
carros das carreatas. Não são os pobres que “financiam” as campanhas
milionárias. Não são os pobres que coordenam a boca-de-urna no dia das eleições.
São as camadas média e superior da sociedade que agem nessa esfera.
Todo ano eleitoral o costume se repete. Pessoas do nosso
círculo social pedindo o voto para determinados candidatos. Se fossemos
solicitar sinceridade dos motivos do pedido do voto, qual seria a resposta mais
coerente? a) que o candidato é uma pessoa que, ideologicamente, ajudará a construir uma sociedade mais livre, justa e solidária; b) que o próprio pedinte, um amigo ou um parente iria ganhar um cargo
comissionado ou qualquer outra vantagem, ou já tinha sido agraciado. A escolha fica a critério do leitor. Mas, na minha
opinião, o costume tem sido de pedir votos por gratidão ou interesse pessoal e imediato. Isso em todos os
estratos sociais. É o que chamo de “militância de oportunidade”. Sua “ideologia”
é clara: levar vantagem. Mas a reprovabilidade é imensamente maior quando parte
de pessoas que já possuem um espaço na sociedade. Pessoas que estão na condição
de estender a mão à maioria necessitada e não de se aproveitar de sua
proximidade com o poder.
Em sete passagens, a nossa Constituição Federal fala em
cidadania, elevando-a a fundamento da República (art. 1º, II, da CF). Se em sua
acepção clássica era o direito de votar e de ser votado, hoje significa
participação efetiva no dia-a-dia do governo, fiscalizando e cobrando as
promessas de campanha.
Porém, deformamos o conceito. Lenio Streck rememora as
reflexões de Roberto DaMatta e fala da “existência no Brasil de duas espécies
de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidadão, que dispõe do sistema, mas a ele
não se subordina, e o subintegrado ou subcidadão, que depende do sistema, mas a
ele não tem acesso”. Essa prática começou cedo aqui, desde o Brasil-Colônia e
suas capitanias hereditárias – os donatários e os nobres por cima, e os escravos
e os índios por baixo.
Isso demonstra a existência de um sistema estamental, no
dizer de Raymundo Faoro, no qual um grupo se perpetua no poder pela “vontade de
poder”, para usarmos uma expressão bem nietzscheana. Na esfera
da representação política, as vedações do art. 14, § 7º da Constituição[1] não são
suficientes para impedir a formação de dinastias eleitorais. Determinados
patronímicos passam de geração para geração nos cargos eletivos. É a degradação
da representação popular através do carreirismo político-familiar que se
apropria da eletividade como se esta constituísse um bem transmissível
hereditariamente. É o caudilhismo. E por mais paradoxal que pareça, os herdeiros
das dinastias políticas iniciam as carreiras com slogans que envolvem palavras
como “renovação” ou “juventude”, escondendo o caráter atávico de sua origem. Nada
mais conservador que inovar com o mesmo e manter o estamento mediante a baixa
representatividade popular.[2]
Que dizer, então, dos valores recolhidos para custear
algumas campanhas políticas milionárias? Não é factível que corporações – que
são entes voltados para a geração de lucros aos seus dirigentes e acionistas –
de repente, em um ato de ingênua bondade, resolvam doar a fundo perdido milhões
e milhões de reais a candidatos. A conta não fecha. A porta não bate. Mas,
mesmo assim, o sistema se perpetua. Quando a boca cala, o silêncio fala. Peço vênia
para me recusar a chamar isso de doação. No meu entender, empresa não doa. Investe.
Ou alguém já viu alguma multinacional distribuindo seus lucros nas ruas? A conclusão
que tiro é que esse modelo gera corrupção. E a sociedade é quem paga os
prejuízos. Não é factível que seja diferente. E nem é aceitável que fiquemos
inertes.
Cada sociedade possui os problemas que ela mesma produz e
merece. Temos os políticos que temos por culpa de quem? A democracia do país
começa dentro de nós.
Não esqueçamos de quem votamos nas últimas eleições. Recordemos
quais políticos deram apoio aos eleitos durante a campanha. Denunciemos compra
de votos ou qualquer outra atitude não republicana pelos candidatos. Votemos,
acima de tudo, em propostas. E cobremos. Mandato não é cheque em branco. Há compromissos
assumidos pelo eleito e respaldados pelos que o apoiaram. Todos têm sua parcela
de responsabilidade, inclusive o eleitor. O poder, como diz Foucault, legitima-se
de baixo para cima e da periferia para o centro. O poder está em nós. Reclamamos
dos políticos? Nós que os escolhemos e os legitimamos. Nós que desprezamos o
poder que temos e nos responsabilizamos eticamente quando votamos em quem: compra
votos; usa o poder para si e para os seus; compromete-se de maneira não
republicana com interesses nebulosos de pretensos “doadores”.
Assumamos nossa responsabilidade nessa relação de causa e
efeito. Quais os compromissos pessoais e sociais, e quais as propostas do
candidato? Qual o seu passado? Exijamos debates entre eles e os assistamos. Isso
é cidadania levada a sério.
Refaço agora a anedota contada por Zizek. Certa vez um
eleitor começou a refletir sobre a má gestão da sua cidade. Revoltou-se. Coincidentemente,
logo depois saiu de casa e se deparou com um grupo que estava prestes a entrar
em um restaurante. Eram o prefeito e os vereadores que o apoiavam. Indignado, o
eleitor se aproximou do grupo e perguntou: - Foram vocês que fizeram nossa
cidade ficar assim? Ao que o prefeito, seu representante eleito, respondeu: -
Não. Vocês a fizeram.
* RosivaldoToscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
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[1]
“§ 7º - São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os
parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do
Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito
Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses
anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à
reeleição.”
[2]
A representatividade elitizada da classe política brasileira reflete nossos
escandalosos índices de desigualdade social. Levantamento feito pelo portal da
internet G1 (Globo) apontou que a atual composição das Assembleias Legislativas
está, a cada legislatura, mais elitizada. Dados
levantados na reportagem apontam para o fato de que o patrimônio médio dos
1.059 deputados estaduais e distritais eleitos em 2010 era de R$ 1,039 milhão.
O número de milionários na atual legislatura cresceu 80%, passando de 114 para
205 parlamentares. E o número de eleitos que se declaram políticos por
profissão passou de 160 para 487. A desigualdade de gênero manteve-se quase
inalterada. Antes, eram 118 (11%). Na atual legislatura, 136 mulheres (12%),
enquanto há 923 homens.
Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirGostei muito do seu artigo, parabéns
ResponderExcluirEsther Silva
Icapuí/CE
Ótimas e pertinentes reflexões. Abraços Ângela R Gurgel Mossoró-RN
ResponderExcluirFantástico, com a devida vênia, vou compartilhar. Parabéns!!!.
ResponderExcluirMuito bom!
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