De Marcelo Semer: "Abuso policial só comove quando é mostrado em vídeos e na TV"


Mais um belo texto do colega Marcelo Semer, no Terra Magazine (acesse clicando aqui)

Marcelo Semer
De São Paulo

As cenas da escrivã sendo despida à força por policiais da Corregedoria em São Paulo suscitaram uma enorme perplexidade.
Muitos se perguntaram: se a polícia faz isso com os próprios policiais, o que não fará com o cidadão comum?
A dúvida do governador Geraldo Alckmin foi outra: como um vídeo oficial da ação policial se tornou público?
O governador se comportou no episódio mais ou menos como o marido que ciente da traição da esposa no sofá da sala, decide vender o móvel.
Mas talvez valha a pena se questionar o que teria acontecido se as imagens jamais chegassem ao YouTube.
Vídeo que divulgou abuso de policiais ao revistar escrivã mudou rumo do caso (Foto: Reprodução)
O inquérito que apurava eventual abuso de autoridade foi arquivado, a pedido da promotoria. O MP entendeu, que apesar de ter havido "um pouco de excesso na hora da retirada da calça da escrivã", não havia no ato qualquer intuito libidinoso e isso bastou para isentá-los.
No âmbito disciplinar, os policiais chegaram a ser chamados de corajosos e destemidos.
Depois que o vídeo veio à tona, no entanto, tudo mudou.
Promotores do grupo de controle externo da polícia criticaram fortemente a ação. Os policiais foram afastados e a corregedora-geral perdeu seu cargo de confiança.
A mudança de comportamento não destoa, em verdade, de como a própria sociedade encara os excessos da repressão.
A violência policial está longe de ser uma novidade entre nós. Mas só quando ela nos é mostrada sem pudores, com imagens em relação às quais não se pode fechar os olhos, é que desperta indignação.
Longe dos olhos, longe do coração.
A edição da lei da tortura foi um nítido exemplo da importância das imagens furtivas.
O Brasil era signatário há anos de um tratado no qual se obrigava a reprimir o abuso de agentes públicos, mas as reivindicações para a tipificação do crime não sensibilizavam os parlamentares.
A lei só foi proposta, e aprovada em curtíssimo prazo, quando as cenas da violência policial na Favela Naval, filmadas por um cinegrafista oculto, foram mostradas em rede nacional.
A tortura não nos era desconhecida - apenas suportável quando não éramos obrigados a encará-la de frente.
A situação precaríssima dos encarcerados no país não é lá muito diferente.
É preciso uma rebelião daquelas em que cabeças são cortadas, ou fotos de corpos presos empilhados em contêineres, para que comecemos a supor que, afinal, alguma coisa está fora da ordem.
Analisando as atrocidades que tem visto em inúmeras inspeções carcerárias país afora, um juiz auxiliar do Conselho Nacional de Justiça chegou à conclusão que a sociedade tolera as graves violações porque, no fundo, acredita que o criminoso mereça vingança.
Faz sentido.
A opinião de que precisamos de mais repressão, mais pena, mais prisões e menos direitos, é persistente na sociedade. E as críticas aos abusos da punição são bem mais esporádicas.
Mesmo que já estejamos na faixa do meio milhão de presos, sem contar os adolescentes infratores, continuamos a clamar que o Brasil é o celeiro da impunidade, e pedir por mais e mais cadeia.
Quem se opõe a isso e luta pela preservação de garantias fundamentais é taxado de defensor dos "direitos humanos para bandidos". A ojeriza à utilização dos instrumentos de defesa, como a recente crucificação do habeas corpus, faz com que todo advogado seja considerado um pouco criminoso.
Enquanto isso, as punições por tortura, como se sabe, são irrisórias.
O receio de denunciar, a desconfiança dos operadores do direito, a necessidade de preservar como legítimas provas obtidas de forma ilícita, tudo isso vitamina a enorme cifra negra da tortura.
Mas não é só.
A ânsia de punir, a comoção causada pela contínua exploração midiática dos crimes e a demagogia dos parlamentares que a cada vítima famosa propõem novas leis, acaba por moldar nossa forma de tratar o crime. Com o máximo de espetáculo e o mínimo de limites para a repressão.
Tudo isso vai bem, até que as duras imagens nos cheguem, de alguma forma, contrabandeadas da realidade.
Quando se vê, a barbaridade das consequências enfim nos assusta e nos comove.
Talvez por isso o governador tenha se preocupado tanto com o vazamento do vídeo.
Mas aí seria o caso de se perguntar: para a garantia dos direitos, ao invés de pregar o respeito à Constituição, teremos de recorrer ao Wikileaks?

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Comentários

  1. Divino o post.
    Não é por acaso que eis juiz de direito.
    Parabéns.

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  2. Pois é, taí... O povo brasileiro é colonizado pelas TVs

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  3. Caro Marcelo, sou Negro, Sociólogo, milante do combate ao racismo e vivo na Bahia. Eu teria muitas coisas para dialogar em concordância com seu texto, mas não o farei agora. Quero antes agradecer mais que parabenizar, haja vista diante de uma leitura tão acertada e corajosa da ralidade, em dias atuais é para se agradecer. Também fiz uma leitura da ocupação dos morros cariocas pela força policial, que disponibilizei em meu blog (pensamentodelumumba.blogspot.com), intitulada "AO SUFOCAR PALMARES E DEPOIS CANUDOS O RIO FOI CRIADO", que muito me honraria ter seu comentário. Contudo,quero compartilhar aqui, algo que nós do movimento social (em particular o Movimento Negro), viemos faz tempo, a partir de um acúmulo de longos anos de debate, analisando na liguagem que usamos muitas vezes sem perceber e que pelo seu perfil, sem muito esforço, vais concordar: ao usares a frase que se segue
    "O receio de denunciar, a desconfiança dos operadores do direito, a necessidade de preservar como legítimas provas obtidas de forma ilícita, tudo isso vitamina a enorme cifra negra da tortura", se a palavra negra foi utilizada como mensagem subliminar de que o segmento da população mais vitimado por tudo isso é a população "negra", está acertada a colocação; mas se, o sentido é de coisa ruim, esta formulação contribui para a desconstrução da autoestima deste segmento etnico-racial do nosso país. Parece ser uma coisa boba, de pouca ou nenhuma importância diante de um texto que trás uma reflexão tão séria, como o trasido pelo Senhor. Mas, o que lhe apresento é tão grave quanto e, digo mais, em grande parte a "justiça" em nosso país é dessa forma, (estendendo aqui ao braço armado do Estado) as forças policiais, porque foram criadas, a primeira para garantir os privilégios das elites brancas (como sempre foram) e a segunda (a polícia) para reprimir duramente, mantendo num certo "lugar comum" os negros. Logo, uma das raízes mais fortes desse processo que o Senhor sinaliza está aqui (na linguagem), por isso que é importante desconstruir já a partir dela. Por outro lado, o Meritíssimo Juiz, é formador de opinião, o que lhe confere mais responsabilidade ainda no uso da palavra evitando as armadilhas da linguagem que a tantos milhões de pessoas (como eu) mantém na escravidão do preconceito dos menos avisados, ou mesmo dos intencionados racistas.

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  4. Ah! por favor se alguém puder fazer a gentileza de me mandar o endereço para eu ver o vídeo ficarei muítíssimo grato.
    Meu -email: valdolumumba21@gmail.com

    Obrigado

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  5. O que nós estamos vendo talvez seja 1% do que vaza e vem à público, nos EUA existe mais rigor para quem exerce a profissão policial,na América do Norte o Estado dá transparência aos atos de seus funcionários, quando assistimos a vídeos e filmes,vemos que as viaturas são equipadas com câmeras, existe todo um cuidado, para com quem se quer abordar, revistar etc... por lá, policial infringiu a Lei vai em cana, aqui o cabra é recompensado,sai das ruas e vai para o escritório, ou seja tudo o que ele queria, sai de um local perigoso e vai a outro com ar-condicionado, cafezinho, banheiro, mordomia; policial no Brasil age assim: primeiro eles dizem: "mão na cabeça vagabundo,se não quizér levá chumbo quente nos cornos". Isso talvez seja refléxo do atraso cultural de nosso povo, que teve que se submeter por muitos anos a ditaduras, aprendeu na "força bruta" desde há muito tempo,a cultuar e a venerar os verdes olivas e coturnos pretos ....

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  6. Imaginem se viessem a público os abusos de juízes e promotores em pequenas cidades do interior do Brasil. Ou eles não cometem abusos? Cometem sim, e se é difícil alguém denunciar Policiais, imagine denunciar Juiz e promotor...

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