Quem é o Palhaço desse Circo Midiático?




Está lá o rapaz. Algemado, suado, humilhado. Dá para ver, no seu linguajar, no seu vocabulário repleto de ausências e de incompreensões, sua rudeza. Tipo mestiço, bem ao estilo lombrosiano do nosso sistema penal. Dirão muitos: “é culpado só por existir daquele jeito”. É a vítima em potencial para o espetáculo mórbido. Não seria um ser humano ali. Seria uma coisa a ser explorada, consumida, execrada, usada.
Ao seu lado, a voz da moral rasteira. A bela inquisidora, de nariz empinado e bem vestida, se aproveita: zomba, humilha, abusa de um ser humano em estado de fragilidade e desassistido pelo Estado, apesar de se encontrar no interior de um estabelecimento público. Arrogância. Ele nem sabe dos seus direitos. Ela sabe que ele os tem. E ela sabe que, ela própria, tem seus deveres. Ela sabe o que faz. Mas o faz, assim mesmo. 
A inquisidora sorri com aqueles dentes brancos que escondem sua escuridão interior. Para ela, aquele rapaz não é nada. É um objeto, um instrumento de escárnio, covardia e audiência televisiva. Números. Números. A imagem é tudo. A inquisidora projeta naquele jovem humilhado todos os defeitos que possui e que, pelo seu comportamento, não são poucos. Estupra-o perante a família, os vizinhos, a sociedade. Para ela, quinze minutos de infâmia. Para ele, o estigma por toda a vida. Inocência? Não há espaço no espetáculo-julgamento-sumário para se discutir isso. Perde a graça da piada. 
Quem sabe ela pense que ainda será premiada em futuro breve com um cargo eletivo, pelos (des)serviços prestados. Já perceberam que muitos desses inquisidores da moral rasteira terminam eleitos? Sintomático e revelador da qualidade de nossa classe política e de quanto ainda precisamos amadurecer nossa jovem democracia... 
E o mais paradoxal e sintomático é que o fato vem à tona no mesmo dia em que uma CPI traz a tentativa de inquirição de um suposto bicheiro, defendido por um dos mais famosos (e, com certeza, bem pagos) advogados do Brasil, que chega ao local sem algemas, e metido dentro de um (certamente caro) alinhado terno. Na hora de responder às perguntas, educadamente feitas, por sinal, exerce seu direito constitucional de ficar calado.
Esses programas desumanos e sangrentos, que pretensiosamente se intitulam jornalísticos (para mim, melhor seria criminosos), são reveladores de quão violenta e desigual é a nossa sociedade. Praticam injúria real, para dizer o mínimo. Esse caso de pseudojornalismo é usual, banalizado, aliás. Uma clara (e comum) violação a direitos constitucionais da parcela já mais sofrida da população. Vê-se o contraste. Preto no branco. Sombra e luz. É cru. É cruel.
Mas a inquisidora não agiu sozinha. Houve comparsas nessa palhaçada midiática com os direitos fundamentais. Uma verdadeira aula de insensibilidade e de como ser abusador, autoritário e criminoso com o outro. Há crianças que assistem a isso. Não educa. Não edifica. Não informa. Deforma. E não há liberdade de deformação. 
A filmagem foi realizada dentro de um estabelecimento carcerário, à vista dos agentes públicos responsáveis pelo preso e que assistiram à execração pública, sem falar das vozes que auxiliaram e deram dicas à inquisidora. Não quero, aqui, julgar o mérito: se estuprou, matou, seja lá o que tiver feito (ou não). Não se trata disso, até porque para investigar, processar e punir, em um Estado de Direito, há um prévio inquérito policial e o processo penal com ampla defesa e obediência ao devido processo legal. E há penas previstas. Nenhuma delas permite o apedrejamento real ou midiático, e, muito menos, prévio a qualquer apuração. A Constituição exige, ainda, que se obedeça às regras do jogo democrático, e que se garanta a dignidade da pessoa humana e a humanização da prisão e das penas. Não há como fugir disso. Senão, é barbárie.
A Lei das Execuções Penais se aplica ao preso provisório por força do seu artigo 42. E é clara ao dispor, no artigo 40, que todas as autoridades públicas devem protegê-lo de qualquer forma de sensacionalismo e garantir a ele o respeito à integridade física e moral. Senão, é abuso de autoridade, para dizer o mínimo.
Ao contrário do que a inquisidora midiática pretendia, esse vídeo não deveria ir somente parar no Youtube. Deveria, sim, ir para as salas de aula das faculdades de direito e de jornalismo, e para os cursos de formação e de capacitação contínua de profissionais da área de segurança pública. Um exemplo de como não ser exemplo. Uma espécie de don’t-know-how
Ao invés de instantes de risos e escárnios, um minuto de silêncio. E outros tantos de reflexão. Para que haja um futuro de novas práticas jornalísticas e de outras posturas das autoridades que cuidam do encarceramento humano.
A inquisidora da mídia rasteira imaginou aquele jovem como o palhaço do número. Mas ele, naquele circo midiático todo, foi apenas o figurante. O Estado de Direito foi feito de palhaço.


Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito no RN e membro da Associação Juízes para a Democracia.

Comentários

  1. Fantástico seu artigo, parabéns!

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  2. Ridícula essa repórter. Só podia estar na BAnd mesmo, eterna 3ª.

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    1. Mas praticamente em todas as emissoras há pseudojornalismos dessa mesma categoria, infelizmente.

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  3. E a arrogante, antiética, cruel e despreparada entrevistadora ainda tem a audácia de dizer que o sistema é duro com o acusado.
    Duro é ter que se submeter a uma entrevista dessa natureza: violadora, debochada, ridícula e amoral. E pior, sem a menor graça (se era esse o objetivo dessa entrevistadora de araque!) Episódio lamentável e revoltante!
    Parabéns pelo artigo Rosivaldo!

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  4. Estou indignada até agora do esta repórter despreparada e arrogante! Igualmente culpada por este circo bizarro, é a emissora que transmitiu este absurdo.Eu sempre digo, não existe mais a presunção de inocência, mas presume-se culpado o indivíduo pelo simples fato de ser acusado de um crime.

    Excelente artigo!

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  5. Rosivaldo o seu artigo está bom com exceção de você estar comparando maus feitos, prepotência e corrupção com a figura do palhaço, sou advogada e descendente de família circense, meu avó foi palhaço assim como meu pai e muitos outros de minha família e tenha certeza de uma coisa todos foram e são pessoas honestas, fieis cumpridores de seus deveres cívicos e quando estão no picadeiro a única preocupação é divertir sempre com muito respeito ao seu público, sei que o termo palhaço é usado de forma pejorativa para manchar a imagem de alguma pessoa ou mesmo utilizado em situações onde esta faz injustiça, agressões, brincadeiras de mau gosto, deboches demasiados etc., , mas em respeito aos meus descendentes estou aqui em defesa do palhaço honesto.
    Esther Silva

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    1. Desculpe-me, Esther. Não quis atingir a honrada classe dos palhaços. Eles não mereciam a comparação. Mas, na verdade, fiz uma alegoria. Por sinal, assisti a um recente filme nacional sobre o tema do palhaço e a dualidade entre fazer os outros rirem e cuidar, sozinho, das próprias tristezas. O título é "O Palhaço", com Selton Melo.

      Abraço.

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    2. Conheço muito este filme, a minha irmã gêmea é doutora historiadora e um dos seus livros serviu de pesquisa para o filme.

      Esther.

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  6. Fantástico, Rosivaldo. Que sensibilidade social. Repugnantes tais programas, aos quais nunca tive a indecência de dar a minha audiência, e que não segue os princípios contidos na legislação das telecomunicações, como a educação, sem falar na lesão clara à Constituição.

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  7. olha, ela já tinha se tornado famosa por conta da entrevista de 2 irmãos gêmeos e lunáticos. ela tirou onda com eles, tá, mas eles não estavam normais e respondiam coisa sem lógica. e pasmem, sabiam até se defender dela. esse daí... sem palavras! pra quê tirar sarro com a ignorancia dele? qual a graça naquilo? ele até tentou dizer q pelos exames mostraria q não teria culpa e ela insistindo na humilhação... achei deprimente.

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    1. valeu, Danielle. Não conhecia a entrevista dos dois irmãos. Mas vi que passavam flashes deles também. Sucesso na gravidez.

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  8. Rosivaldo,esse mal já chegou aqui em Pernambuco a algum tempo,falo desses programas policias ditos jornalistico.O escarnio e a chacota da situação dos autuados em flagrante se faz presente em quase todas as matérias de todas as emissoras.Você falou dos agentes públicos e suas responsabilidades quando permitir esse abuso,pois bem,sou Policial Civil,e sou totalmente contra esse tipo de jornalismo.O problema é que os delegados morrem de medo desses ditos programas jornalísticos e até usam das matérias para se projetarem na carreira com a publicidade das prisões.A policia civil de Pernambuco tá um vergonha...A o medo ta permitindo que direitos fundamentais sejam cerceados por interesses políticos dentro da instituição.
    Fico feliz,por ler seu artigo,que dá publicidade a uma situação tão vexatória em que se encontram esse dito estado de Direitos e garantias...Infelizmente direitos e garantias para poucos....
    Muito bom Sua matéria...

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  9. Existem de tudo nesta vida, principalmente , repórteres que não tem ética profissional, muitos acham que ferir os princípios constitucionais não da em nada...isso no meu entender é deboche , palhaçada , totalmente sem princípios . Mais uma vez adoro ler seus artigos Dr.Rosivaldo Toscano. Parabéns (COMPARTILHANDO)

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  10. Caro Rosivaldo,

    Concordo plenamente com seu texto e gostaria também de externar minha indignação de como tanto a mídia quanto o sistema judiciário (infelizmente) do nosso país trata tão diferentemente acusados ou até mesmo criminosos comprovados. O caso desse jovem é um clássico onde o rapaz pobre, negro e provavelmente semi-analfabeto é tratado tanto pela polícia quanto pela imprensa com escárnio e de forma preconceituosa. Outros casos como o do afamado bicheiro com nome que mais parece de traficante "dono de morro" Carlinhos Cachoeira é tratado com todo o respeito, literalmente ri do sistema judiciário e do povo sendo representado legalmente por ninguém menos que o ex-ministro da Justiça. Esse fato por si me faz duvidar de que tipo de JUSTIÇA nós dispomos em nosso país. Há ainda outro caso que na minha humilde opinião é ainda mais grave (já que o dito bicheiro encontra-se preso em presídio federal). Trata-se do caso da Senhora, Madame, Lady Carla Ubarana a qual apareceu em um programa de enorme audiência e "importância" da mídia brasileira. Durante sua entrevista concedida no luxo da sua suntuosa casa na qual encontra-se encarcerada a tal madame mostrou uma enorme pompa, arrogância e deboche contando como havia desfrutado do produto de seu crime (o dinheiro dos precatórios). O que me deixa completamente indignado é tanto ela quanto o bicheiro serem tratados como celebridades ou chefes de estado com tanto respeito e medo quando o rapaz do vídeo aqui mostrado é tratado como a escória da humanidade. Ele é culpado? Sim, pelo menos pelo crime de roubo ao qual confessou, mas também é uma vítima do sistema que o tornou quem é e deve ser tratado de acordo com os crimes que cometeu. Entretanto tanto o bicheiro quando a madame também são culpados como provas comprovam e até admitem (no caso dela), mas eles devem ser tratados como criminosos uma vez que ambos tiveram totais condições de não recorrer ao crime diferentemente do referido rapaz. Se é para se haver justiça nesse país que ela seja igual para todos!

    Leonardo Nobre

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  11. Ótimo texto, Dr. Rosivaldo!
    Sou discente em Direito e, a propósito, vou escrever meu trabalho de conclusão de curso acerca da "Condenação criminal pela imprensa", o qual deverá repudiar, sem dúvidas, o sensacionalismo da imprensa que faz do Direito Penal base para audiência, em detrimento dos direitos fundamentais (intimidade, privacidade, presunção de inocência...) dos sujeitos passivos deste ramo do Direito.

    Atenciosamente,
    Renan Santana

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  12. Texto forte, para refletir sobre o real significado dos direitos e garantias fundamentais encartados num troço chamado Constituição, que muitos teimam em desrespeitar, quando não fingem desconhecer.
    Senti-me humilhado juntamente com esse rapaz, independentemente do crime que ele tenha cometido, e toda a sociedade deveria se envergonhar desse espetáculo triste que as TV's insistem em exibir, e o fazem porque tem grande audiência, a despeito do que a ética social recomenda.
    Lembrei-me do caso de uma detenta em SP, que grávida, foi retirada da cela para dar a luz, e logo após o parto foi novamente algemada, desta vez por fora da jaula, para poder amamentar.
    Enquanto isso, precatórios, cachoeiras, laranjas...todos se divertem às custas do mais inocente espectador, o mesmo que assiste e aplaude o "furo jornalístico" desta "âncora" (nesse último caso serviu para ela afundar) da televisão.
    Abraço.
    Fawller

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  13. Texto magistral!Que mais vozes ponderadas e brilhantes se levantem em nosso país!
    Já está na hora dos órgãos competentes tomarem providência para coibir esse psedo-jornalismo sórdido. O indivíduo nem foi levado à presença de um juiz e já foi sentenciado e punido de forma privada. Sua sentença é ser submetido a essa humilhação escatológica e ter extirpados de si direitos constitucionais.
    Isso não é jornalismo. É o jus puniendi sendo arrancado do Estado pelo interesse privado, é exercício de vingança contra a pessoa humana, uma aberração incompatível com os princípios mínimos de direitos fundamentais.
    É para coibir esse tipo de prática que eu comungo com corrente que defende a necessidade de diploma de jornalismo para exercer a profissão e mais do que isso, deveria ser uma profissão regulamentada para que esse tipo de profissional tivesse seu registro cassado.

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  14. vc. detalhou bem pois eu não vi jornalismo, eu vi uma sordidez dessa Repórter que mais parecia estar se vingando em cima de uma pessoa como se fosse um lixo que estivesse em sua frente, atitude condenada, isso se chama de registro cassado que é o que deveria ter acontecido com ela

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  15. Direto! Que bom, estamos vivos!Viva sempre nossa capacidade de indignação!
    Parabéns!
    Berzé

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  16. Muito boas suas palavras... Todo ser humano merece respeito e ser tratado verdadeiramente como HUMANO

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  17. Simplesmente fantastico suas palavras, pois nao vi jornalismo algum e sim uma humilhaçao de uma reporter para com uma pessoal que até se provar o contrario tem sobre ele o princio da presunçao de inocencia garantido pela constituiçao.
    independentemente de cor, raça, sexo ou posiçao financeira, os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana deve ser garantido a todos!

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