Watergate, *"Waterfall" e Midiagate




Há quarenta anos, mais precisamente no dia 17 de Junho de 1972, arapongas entraram na sede do Comitê Nacional Democrata, no Complexo Watergate, na capital dos Estados Unidos. Cinco pessoas foram detidas quando tentavam fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta no escritório do Partido Democrata. Dois repórteres do Washington Post iniciaram uma investigação que culminou estabelecendo o elo entre a violação da sede do Partido Republicano e o então presidente Richard Nixon (que, na época da invasão, era o candidato democrata), ocasionando sua renúncia. Foi um marco do jornalismo investigativo.
Por aqui, porém, os últimos acontecimentos envolvendo o senhor Carlos Augusto de Almeida Ramos, mais conhecido como Carlinhos Cachoeira, tem revelado uma postura completamente diferente da mídia. Primeiramente, repórter de uma famosa revista semanal tenta violar a intimidade de um ex-ministro, mediante o ingresso indevido no seu apartamento em um hotel de Brasília. O ingresso no apartamento se encaixaria, em tese, no crime de violação de domicílio. Alegou-se liberdade de imprensa. Meses depois, interceptação telefônica revela a suspeita de que o senhor Carlos Cachoeira teria influência em vários veículos de comunicação de âmbito regional e até nacional, incluindo a referida revista. Não fosse pouco, em diversas passagens há indícios de que veículos de comunicação teriam sido utilizados para premeditadamente se chantagear, constranger ou derrubar um governador de estado, ministros e membros do alto escalão do Governo Federal. E o que também é eticamente muito sério. Ele teria o poder de estabelecer matérias, plantar notícias, mesmo falsas, isto é, pautar veículos de comunicação, como se editor fosse. Segundo informações que saíram na blogsfera, haveria cerca de 200 ligações telefônicas entre a suposta quadrilha e o diretor de uma sucursal da revista. As relações perigosamente próximas de grandes veículos de comunicação social com um grupo suspeito da prática de 15 crimes diferentes, cujas extensões, de tão amplas, ainda não estão sequer dimensionadas, exigem que discutamos a legitimidade do atual sistema de comunicação social do país.
Um sintoma que reforça essa constatação é o de que, estranhamente, a mesma mídia que tanto cobra legalidade e ética, faz-se de desentendida no momento em seus pares flertam com abusos de forte colocação antiética e até mesmo criminal. Quando a voz cala, o silêncio fala. Pois bem. Forma-se um não-lugar, um hiato. Uma reveladora autocensura. Ao invés de uma reflexão, um desviante discurso único em que o mantra é o mesmo: proteção à liberdade de imprensa.
Dia desses, lendo a tese doutoral do jornalista e blogueiro Daniel Dantas Lemos, gentilmente por ele cedida, encontrei, ao citar Adilson Citelli, as técnicas de persuasão que podem identificar o discurso da mídia hegemônica. A primeira delas é o uso de estereótipos, um reducionismo, ao criar etiquetamentos, como o de atribuir a uma determinada agremiação politica uma essência de  arbitrariedade e autoritarismo, que desejaria exercer o “controle” da mídia. O segundo artifício é exatamente o de substituição de nomes para valorar positiva ou negativamente. Assim, a “democratização” vira “controle”. A mudança do significante gera forte contraste no significado, uma vez que a palavra controle remete a autoritarismo e é antagônica ao significante “liberdade”. Surge, então, a figura dos inimigos da liberdade de imprensa. E é exatamente a criação de inimigos o terceiros estratagema denunciado por Dantas Lemos em sua tese. Isto é, quem pensa diferente, tentando a democratização, passa a ser chamado de inimigo da liberdade de imprensa, alguém desprovido de razão ou ética. Por fim, o apelo à autoridade. Não por menos logo se viu a difusão de pronunciamento do Presidente do Supremo em favor da Liberdade de Imprensa (e como ele haveria de ser contra?), como se ela estivesse sendo, efetivamente, ameaçada. Assim, o que são “interesses” dos grande grupos da mídia vira “liberdade” de imprensa. Fala-se de cara, em liberdade como expressão da democracia. E se repete e se reverbera o mantra, cumprindo o último artifício previsto por Citelli e descrito por Dantas.
A comunicação social é poderosa. E a cada dia mais, pois vivemos uma realidade mediatizada. Entra em nossos lares diuturnamente, em nossa intimidade, em nossos corações. Se má utilizada, cria realidades, distorce, manipula. Enfim, é estratégica. Por isso a preocupação da Constituição da República que impõe que os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio. Outrossim, de que políticos não podem ser titulares e nem sócios de meios de comunicação de rádio e televisão.
Levantamento do site “Os Donos da Mídia” demonstra que, no Brasil, 271 políticos são sócios ou diretores de 324 veículos de comunicação. Sem falar dos casos em que há mando ou influência indireta, através de familiares ou amigos. Ademais, os veículos de comunicação de maior alcance fazem parte de conglomerados que chegam a ter 74 veículos. Os dez maiores possuem, juntos, nada menos que 327 veículos. Com ampla dominação das audiências de teevisão e rádio. Não temos, assim, uma comunicação social democrática no Brasil.
E os recentes acontecimentos, que trazem indícios de instrumentalização da imprensa para atividades criminosas, faz-nos refletir. Em que sentido se deve tomar a liberdade em uma democracia? E em que medida existe liberdade na ditadura? Respondendo à segunda questão, se a liberdade for fazer o que se quiser, impunemente, existe sim. E é limitada. Mas, ao contrário da Democracia, restringe-se ao ditador, seus asseclas e os que compactuam ou colaboram com o regime. Mas numa democracia, pelo contrário, liberdade tem também um conteúdo de correspondente responsabilidade. E pelo que a própria Constituição apregoa, até a liberdade tem limites, inclusive a de expressão. Isso para que ela não seja utilizada para ferir direitos fundamentais e muito menos o próprio regime democrático.
A comunicação social não pertence aos donos dos veículos de comunicação e nem pode ser utilizada para cumprir os interesses deles e dos seus amigos. É uma concessão pública. Pertence a todos nós. E como tal, não pode subverter a ordem constitucional, não pode ser utilizada para proteger determinados interesses e perseguir opositores. Assim, fere o conceito de liberdade de imprensa a utilização do veículo para ardis, lobbys e/ou manipulação da opinião pública. E não cabe, nesses casos, o veículo de comunicação se escudar no pretexto de exercer liberdade de imprensa, pois o limite de qualquer liberdade, num regime democrático, está no respeito às regras do jogo democrático, à isonomia e à legalidade.
Talvez tenhamos, assim, que ter um Midiagate para podermos, então, cumprir um grande valor da Democracia: o de que tudo tem limites. E não se trata, como alegam, de censura ou limitação de conteúdo. Mas de regulamentação e democratização. Precisamos  investigar as ligações entre mídia e criminalidade, e regulamentar a finalidade e a legitimidade dos veículos de mídia, principalmente os de rádio e televisão, pelo seu amplo alcance. A imprensa pode até ser uma arma. Mas jamais podemos deixar que ela seja utilizada para fomentar ilicitudes. E nem apontada e disparada contra a Democracia.


*Waterfall - cachoeira, em inglês.

Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito no Rio Grande do Norte e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD


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