A DEMOCRACIA SEQUESTRADA
Manchete no Estadão: “Doações de
campanha somam R$ 1 bilhão”[1]
(aqui). Isso é sintoma de
que a democracia foi sequestrada. As eleições se tornam, na prática, a mera chancela
formal do abuso do poder econômico – este, sim, quem elege. As eufemisticamente
chamadas “doações de campanha” são um acinte permitido e naturalizado.
Não é factível que corporações – que
são entes voltados para a geração de lucros aos seus dirigentes e acionistas –
de repente, em um ato de ingênua bondade, resolvam doar a fundo perdido milhões
e milhões de reais a candidatos. Alguém já viu alguma multinacional
distribuindo seus lucros nas ruas? Trata-se de investimento privado visando
lucros futuros, quando já não é o simples acerto de lucros pretéritos. A
sociedade, óbvio, é quem paga os prejuízos. Somente em uma democracia
sequestrada é que tal situação permanece ano após ano, eleição após eleição. O
investimento privado em campanhas eleitorais é o maior cinismo da República.
O resgate da democracia impõe, entre
outras coisas, o financiamento público, com valores reduzidos e prestação de
contas compatível, de modo a barrar o abuso do poder econômico e diminuir o uso
do marketing como ferramenta de
impedimento do debate real. É preciso valorizar o confronto de ideias e a
paridade de armas.
Não é tarefa fácil porque há todo
um mercado bilionário criado e que se mantém em torno do processo eleitoral
(agências de publicidade, indústria gráfica e de mídia visual, locadoras de
veículos, cabos eleitorais pagos, etc.) e há interesses não só econômicos, mas
político-ideológicos para que se mantenha a simulação de um processo
democrático. E a grande imprensa, aliada ou controlada pelas dinastias
políticas, está a postos com o discurso de que não se deve dar dinheiro público a políticos. Deixem que as grandes corporações
e sua filantropia eleitoral completamente desinteressada tome conta.
Assim, o mercado sequestra a
democracia definitivamente quando o voto tem preço. Seja comprado diretamente
pela captação ilícita do sufrágio, seja pelo efeito da propaganda massiva que
ocupa os espaços públicos com outdoors,
faixas, cavaletes, carros de som, camisetas e cabos eleitorais pagos para hastear
a bandeira dos candidatos apoiados por poderosos grupos econômicos. Há cálculos atuariais sobre quanto custa eleger um candidato. Basta ter o dinheiro.
O resto, deixa-se para o marketing e a
compra do voto.
Na democracia sequestrada, a
representação popular é uma falácia. A
elite forja e investe nas candidaturas dos seus próprios membros. Sintoma disso:
a metade da composição do Congresso Nacional é da bancada empresarial (sem contar
os ruralistas e a bancada dos médicos).[2] E, claro, a elite que compra a eleição também
cobra a respectiva lealdade do eleito.
Na democracia sequestrada, quase não
há negros e nem lideranças verdadeiramente construídas nas bases da sociedade,
dos que estão entre dos extratos desfavorecidos porque não há como competir contra
os concorrentes lastreados pelos recursos financeiros do empresariado.
Na democracia sequestrada, a grande mídia,
sob o pretexto de informar ao público, sabatina os então candidatos, subjugando-os,
colocando-os em posição vexatória, humilhados aos seus pés. Trata-se de mandar
um recado, de antemão, sobre quem efetivamente irá mandar. E na pauta do
interrogatório dos candidatos, claro, tem que estar a defesa da pretensa
liberdade de imprensa que é a liberdade de somente poucas famílias monopolizarem o discurso da verdade
às massas. Por óbvio, esses grupos midiáticos interferem no processo eleitoral.
Produzem notícias favoráveis aos candidatos aliados aos seus interesses e
constrangem ou chantageiam os que lhes contrariam.
Na democracia sequestrada, a política
é profissão que tem por finalidade atender aos interesses econômicos dos grupos
que se mantêm no poder. O patrimonialismo chega a um ponto tão extremo na ocupação
dos cargos públicos que se confunde com o direito de herança. Os filhos das
oligarquias já nascem predestinados a ocupar e utilizar dos cargos eletivos
para o próprio clã.
Na democracia sequestrada, o atavismo
político se beneficia e se nutre do curral eleitoral e, para mantê-lo, faz-se
necessário deter sempre um cargo eletivo para que as trocas de favores possam
se manter. Assim, é comum um detentor de um cargo eletivo concorrer a outro,
mas manter a candidatura de um parente próximo para o cargo ocupado. Se perder,
continua, por via indireta, detentor do cargo.
No horário de propaganda eleitoral,
vê-se Fulano da Dinastia A, Beltrano da dinastia B, Sicrano da dinastia C,
Melvio D, Ticio E. Os mesmos patronímicos dominam o cenário
político-partidário. Na democracia sequestrada, as oligarquias familiares tornam-se
grifes. Elas organizam o prêt-à-porter
eleitoral e excluem o verdadeiramente novo do processo. Essa estrutura privilegia
a manutenção dos clãs, de famílias instaladas no poder de modo tão arraigado
que a divisão entre o público e o privado se torna borderline.
Essa estrutura, de certa maneira,
reproduz uma sociedade de castas. A classe política é, informalmente, uma
nobreza. É o estamento denunciado por Faoro,[3] no qual seus
membros, tal qual detentores de títulos nobiliárquicos (duques, condes,
príncipes e reis), não trabalham efetivamente. Essa é tarefa para os servos,
sempre sub-representados. A nobreza vive na Corte e da Corte, seja a local, a estadual
ou a federal. Como vampiros, vivem sempre do sangue alheio. Na democracia
sequestrada, as eleições se tornam apenas um pretexto para manter o feudalismo
eleitoral.
Os rostos jovens das dinastias sempre
propagam o slogan da renovação, mas atrelados aos seus patronímicos e suas
práticas oligárquicas bem antigas... E surgem no cenário de repente, sem
história, a não ser a familiar, e sem lutas, a não ser a de manter as benesses do
poder sob o jugo do clã. São os candidatos instantâneos, naturais, atávicos das
dinastias políticas. Sua renovação é apenas física, pois seu o DNA é, democraticamente,
jurássico.
Sinceramente, se convivemos e
repetimos, eleição após eleição, isso tudo, podemos estar diante de qualquer
fenômeno, mas não se trata, materialmente, de democracia.
*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito no RN, mestre em direito, doutorando em direitos humanos, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB, e da Associação Juízes para a Democracia - ADJ.
[1]
Claro, esse valor astronômico não inclui o caixa 2.
[2]
CAVALCANTI, Hylda. Poder econômico
investe no Congresso e pode encolher bancada de trabalhadores. Rede Brasil
Atual. Aba Política. Edição de 5 out 2013. Disponível em : < http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2013/10/camara-podera-ter-renovacao-de-61-dos-deputados-e-reduzir-bancada-de-trabalhadores-2066.html>.
Acesso em 19 set 2014.
[3]
FAORO, Raymundo. Os donos do poder:
formação do patronato político brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Globo, 2012.
Muito bom! Parabéns pela crítica.
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