O genocídio potiguar e a reserva do possível: de que lado estamos?
“Barbárie é pensar que nada faço para que o outro morra, mas também nada faço para que ele viva.” Adorno
Semana de correição na Vara Criminal da
qual sou juiz titular. Durante a pausa para o almoço, leio na internet que o
Rio Grande do Norte chegou a absurdos 2.015 homicídios sem investigação (aqui). Ao voltar ao
trabalho, minutos depois, chegam ao meu gabinete dois autos de prisão em
flagrante oriundos de operação policial contra... camelôs que vendem CDs e DVDs
piratas! A ligação entre os dois fatos foi inevitável.
Não é difícil concluir qual mensagem
estamos dando à sociedade quando temos um verdadeiro genocídio[1] em andamento nas
periferias de nossas cidades e fazemos operações policiais contra... violação
de direitos autorais. Isto tudo é muito insólito. Penso que só podemos estar
vivendo um momento de descolamento da realidade, uma espécie de esquizofrenia
no funcionamento dos órgãos encarregados da investigação e da persecução penal.
Para agravar essa situação, o próprio
poder público está imerso no discurso eficienticista quantitativo-numérico. A
criminalidade ordinária patrimonial, há que se reconhecer, é bem mais fácil (e
menos perigosa) de ser investigada, denunciada e julgada (enfim, de gerar
números na produtividade) do que a de homicídios, notadamente os cometidos por organizações
criminosas.
Será que estamos de tal maneira
capturados pela cotidianidade[2] que nos tornamos interditados de entender
nosso papel de produtores em um processo violento de negação do direito à vida
de membros de determinado estrato social?
Foi criada uma Câmara de Monitoramento dos homicídios. Porém, a lógica de funcionamento do sistema continua a mesma. Nessa ótica, podemos trabalhar com a
ideia de reserva do possível como meio de produzir resultados que protejam de
modo mais efetivo a vida humana.
A concepção de reserva do possível, no caso
que lhe deu origem no direito alemão (“numerus clausus”), conduz a uma
escolha sobre o que é mais razoável de ser protegido dentro de uma situação de
impossibilidade de suprimento de interesses que não podem ser compatibilizados
em razão de circunstâncias concretas.
Dentro de uma ideia de reserva do
possível, as instâncias competentes do sistema de investigação criminal – à frente
o Ministério Público – atuam cientes de que sempre estão fazendo escolhas, de
modo a perseguir prioritariamente determinadas infrações penais em detrimento
de outras, que devem, inclusive, ser estancadas ou arquivadas, e que não se trata de prevaricação, mas de racionalidade
político-administrativa visando a efetivação dos direitos fundamentais de maior relevo.
Trata-se de enxergar a segurança
pública não como mera questão de combate aos crimes individualmente
compreendidos, ou apenas da criminalidade patrimonial ordinária e banalizada (e
da histeria contra as drogas), mas como política pública que, necessariamente,
precisa eleger a vida como prioridade e atuar com base nessa priorização.
desta forma, não é difícil chegarmos à conclusão de
que quando: a) não houver violência ou grave ameaça à pessoa; b) sequer haja
prejuízo patrimonial emergente ou ele não afete a subsistência da vítima e da
sua família; c) trate-se de interesses exclusivamente patrimoniais disponíveis
de grandes corporações de mídia,[3] que deveriam ser tutelados pela via civil e não
pelo insuficiente aparato repressivo-criminal, sob uma ótica material, um
direito exclusivamente patrimonial só estará dentro do mínimo existencial
quando o direito à vida tiver sido efetivamente tutelado, o que não ocorre
atualmente no Rio Grande do Norte (e, provavelmente, ainda e que em menor
escala, na maioria dos estados brasileiros).
Diz o criminólogo Garcia-Pablos de
Molina, com acerto, que “cada sociedade possui a criminalidade que produz e
merece”. Não podemos fechar os olhos e nem tapar os ouvidos para os números. Eles
gritam:
- Genocídio!
Esses dois mil corpos não surgiram do
nada. Eles são o resultado das escolhas políticas que fizemos no passado e estamos
fazendo diuturnamente, quando investigamos, denunciamos e sentenciamos determinadas
infrações que não compreendem o mínimo existencial, mesmo sabendo que não
podemos dar conta de toda a demanda. Cada bem a mais é uma vida a menos. E cada
um de nós dá sua contribuição nessa política criminal homicida.
Duas mil mortes sem investigação... Tal
número reflete com fidedignidade o baixo comprometimento de nossas instituições
(Executivo, Legislativo, Judiciário e MP) com a vida humana dos habitantes das
periferias pobres.
Ficaremos assistindo ao (e
assistindo o) genocídio potiguar? Está na hora de mudarmos isso. Já descobrimos
que, enquanto membros de poder ou agentes públicos, cada um de nós é parte do
problema. E da solução também. De que lado estamos?
*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito no RN, membro da
AJD e da Comissão Nacional de Direitos Humanos da AMB , mestre em direito pela UNISINOS e doutorando em Direitos Humanos pela UFPB.
[1]
A ideia de genocídio
se apresenta como factível em razão das características estereotipadas das suas
vítimas: jovens do sexo masculino, mestiços, residentes das periferias pobres e
com predomínio de dependência química e/ou histórico de crimes contra o patrimônio.
[2]
O problema da
cotidianidade é que ela tem a capacidade de anestesiar, de naturalizar, de
embrutecer. Como diz Heidegger, não há nada mais distante de nós, na
cotidianidade, do que nossos óculos: “Para quem usa óculos, por exemplo, que,
do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os ‘trazemos no nariz’,
esse instrumento de uso, do ponto de vista do mundo circundante, acha-se mais
distante do que o quadro pendurado na parede em frente.” (HEIDEGGER, Martin. Ser
e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 8. ed. Petrópolis: Vozes,
1999. p. 155).
Homo sacer
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