Controle difuso na primeira instância – pode o juiz “declarar a inconstitucionalidade” ou somente “afastar a aplicação” de uma lei inconstitucional?




Um amigo advogado e professor de direito constitucional de uma das faculdades de direito de Natal viu uma decisão interlocutória minha e se insurgiu contra um determinado trecho que assim dizia:
Ante o exposto, declaro a inconstitucionalidade, com redução de texto, do art. 44 da lei 11.343/2006, para invalidar a expressão "liberdade provisória", mantendo-se as demais frases do mesmo artigo, e concedo a liberdade provisória a [NOME DA PARTE], devendo, antes da soltura, dar sua ciência e concordância acerca das medidas cautelares diversas da prisão que lhe foram impostas, conforme termo em anexo.
Segundo o referido amigo, um juiz de primeira instância não pode declarar a inconstitucionalidade, mas apenas afastar a aplicação da norma inconstitucional. E isso decorreria do art. 97 da Constituição Federal, que trata da reserva de plenário nos tribunais. A minha decisão seria nula(!) segundo ele. Eu deveria ter dito apenas algo do tipo “afasto a aplicação da expressão ‘liberdade provisória’, por entendê-la incompatível com a Constituição”.
Essa divergência foi um sintoma de que a questão ainda suscita dúvidas e confusões em boa parte da doutrina e da jurisprudência. Realmente, há quem defenda que o juiz deveria se limitar a “afastar a aplicação da norma”, mas nunca declarar a inconstitucionalidade, com base em três fundamentos diversos: a) isso seria prerrogativa exclusiva dos tribunais; b) declarar a inconstitucionalidade seria retirar a vigência da lei, o que só cabe no controle concreto, no processo objetivo; c) determinadas peculiaridades da declaração de inconstitucionalidade nos tribunais autorizariam essa distinção de tratamento e a interdição do discurso do juízo de primeira instância. E onde estaria, basicamente, o fundamento dessa proibição? No art. 97 da Constituição da República – CR e nos arts. 480 a 482 do Código de Processo Civil, que tratam da declaração de inconstitucionalidade nos tribunais. Esse texto visa demonstrar que qualquer que seja o fundamento, a diferença de tratamento entre os juízos de primeira instância e os órgãos de segunda instância, no tocante a quem tem ou não a prerrogativa de “declarar a inconstitucionalidade” no controle difuso, não tem fundamento normativo. Trata-se de um fetiche.
Diz o referido texto da CR:
Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.
Primeiramente, há constrangimentos semânticos e pragmáticos que não permitem, salvo por meio de ativismo judicial, extrair da interpretação do artigo acima a seguinte norma: “os juízos de primeira instância não podem declarar a inconstitucionalidade de uma norma, mas apenas afastar sua aplicação”. Ao invés de ser uma regra que impõe tratamento privilegiado aos tribunais em relação aos juízes singulares (que sequer são referidos, direta ou indiretamente), o art. 97 da CR constrange e alerta os tribunais para a presunção de constitucionalidade das leis, exigindo quórum especial para qualquer declaração de inconstitucionalidade. O Poder Legislativo deve ser respeitado nos tribunais.
Em segundo lugar, apostar nessa interdição do discurso do juízo de primeira instância é não atentar para as peculiaridades do nosso sistema de controle de constitucionalidade. Na tradição europeia, ele é, via de regra, concentrado (nas cortes constitucionais) e direto, como ocorre, por exemplo, na Itália (em relação à Constituição italiana – pois em relação às normas comunitárias, é difuso) e na Alemanha. Na tradição norte-americana, é difuso (entre todos os graus de jurisdição).
No Brasil, temos a fusão das duas tradições e, assim, o significante “declaração de inconstitucionalidade” precisa também ser compreendido dentro da especificidade do tipo de controle exercido. Dependendo se concentrado ou difuso, o significante também possui significados diferentes, com efeitos e alcances diversos. No primeiro caso, retirando a vigência da lei, com efeitos erga omnes. No segundo, retirando apenas a validade da norma e no caso concreto, apenas (efeito inter partes) com um acréscimo no caso dos tribunais: embora que com efeito inter partes, a declaração de inconstitucionalidade é também uma manifestação direcionada apenas aos seus órgãos fracionários, no sentido de saberem a atual posição do pleno ou do órgão especial acerca daquela questão constitucional, autorizando o relator, em feito do órgão fracionário e em decisão singular, a negar seguimento a recurso que vise contrariar tal declaração. Não se pode chamar isso de efeito erga omnes e nem vinculante. Vou explicar melhor a questão da pseudovinculação em seguida.
Assim, um dos argumentos utilizados pelos que entendem que há uma interdição do discurso no sentido de não poder um juiz de primeira instância “declarar a inconstitucionalidade”, mas apenas afastar a aplicação, é o de que “declaração de inconstitucionalidade” feita pelo pleno ou órgão especial seria vinculante para os órgãos fracionários. E, por isso, teria um efeito também abstrativizante. Ora, isso não desnatura o tipo de controle de constitucionalidade. Continua sendo difuso e jamais erga omnes ou vinculante, ainda que autorize o relator do órgão fracionário a negar seguimento a recurso sobre questão já declarada inconstitucional pelo pleno ou órgão especial, onde houver. Tanto é que não vincula os próprios juízes de primeira instância correlatos ao referido tribunal. Ou, então, ter-se-ia que admitir que a regra do art. 52, X, da Constituição da República é letra morta. E o mais grave: que qualquer tribunal de justiça ou regional federal pudesse se substituir ao STF em suas decisões sobre inconstitucionalidade em sede difusa. Aliás, a Constituição da República restringe o efeito vinculante às ADI, ADC, às súmulas vinculantes e às ADPF (essa, por força do § 1º do art. 102 da CR e da lei 9.882/99), que se impõem “aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (CR, arts. 102, § 2º e 103-A).
Portanto, os que advogam que a primeira instância não pode declarar a inconstitucionalidade no caso concreto criam uma espécie de interdição do discurso, sem fundamento normativo: o juiz poderia “afastar a aplicação da norma” em razão da “incompatibilidade com a Constituição”... Ora, o que é isso senão a declaração da sua inconstitucionalidade no caso concreto? E o pior: os tribunais poderiam.
No contexto do controle concentrado (ADI, ADC ou ADPF, p. ex.), o STF dizer “declaro a inconstitucionalidade” tem um alcance e um efeito bem diverso do que falar o mesmo em um recurso extraordinário ou em um HC, típicos casos de controle difuso – todos sabemos e o 52, X da CF, que o diga. O mesmo penso em relação ao controle difuso nos tribunais e nos juízos de primeira instância. Assim, como as palavras não carregam essências, o contexto (difuso ou concentrado) revelaria o sentido da expressão “declaro a inconstitucionalidade” quanto à sua extensão e efeitos.
Arrematando, acho que a confusão que boa parte da doutrina vem fazendo tem a ver, também, com o comum atrelamento de três coisas diversas e do esquecimento de uma outra hipótese. 
As três coisas diversas que são erroneamente atreladas
a) a exigência do full bench em todas as apreciações de inconstitucionalidade (incidentais ou concretas); b) a existência de órgãos fracionários nos tribunais; c) um incidente específico em casos de inconstitucionalidade levantada nos órgãos fracionários, em controle difuso, a ser resolvida pelo full bench.
A hipótese esquecida
Boa parte das argumentações contrárias à declaração de inconstitucionalidade pelos juízos de primeiro grau partem do art. 97 CF conjugado com o 481 CPC, que são os casos em que o questionamento acerca da inconstitucionalidade de uma norma é oriundo de um órgão fracionário, ocorrendo um incidente perante o pleno ou órgão especial que seria uma protoquestão principal. Mas essa seria apenas uma das hipóteses que envolvem a inconstitucionalidade em controle difuso no tribunais. Não avaliam como se dá nos casos em que a inconstitucionalidade em sede difusa é levantada em feitos de competência exclusiva do próprio pleno ou do órgão especial. Sem fazer isso, universaliza-se uma questão que é apenas parcial na relação entre os três elementos acima. Universaliza-se um paradigma, algo perigoso em uma democracia.
Digo isso porque em feitos de competência originária do tribunal pleno ou do órgão especial (onde houver), quando ocorre a alegação de inconstitucionalidade (isto é, sem o que o senso comum teórico chama de “deslocamento horizontal de competência”), decide-se da mesma forma com o que se dá na primeira instância: no bojo da própria decisão de mérito, sendo a apreciação da inconstitucionalidade uma mera questão preliminar, resolvendo-se, depois, o mérito e se lavrando acórdão único.
O paradoxo
Assim, vincular o poder de declarar a inconstitucionalidade à existência de um incidente que seria questão protoprincipal, cai por terra ao se pensar em feitos originários. Ou então se teria que admitir que somente quando houvesse o incidente é que poderia o pleno declarar a inconstitucionalidade (em todo caso, onde estaria essa vedação dentro do nosso sistema normativo?). Nos processos originários do pleno, paradoxalmente, deveria ele usar outras expressões, como “afastar a aplicação”, “deixar de aplicar a lei” ou coisas do tipo. Paradoxal.
Assim, não há fundamentos normativos que justifiquem a alegação de que um juiz de primeira instância, no controle difuso, não possa usar a expressão “declaro a inconstitucionalidade” no caso concreto (e com o efeito de apenas afastar a aplicação para aquele caso) e um pleno de um tribunal, também no controle difuso e com os mesmos efeitos entre as partes, sim. Não há como se sustentar, com argumentos de princípio, tal diferenciação.
Entendo, entretanto, para evitar qualquer mal-entendido, que em sede do controle concreto-incidental a declaração de inconstitucionalidade tem o condão, apenas, de afastar a incidência da norma viciada. Mas não há vedação a que o juiz (ou o tribunal, desde que respeitada a regra do 97) a declare. Muito menos que isso torne a decisão nula. O tipo de controle exercido trará, consigo, o significado, e, consequentemente, o alcance da expressão “declarar a inconstitucionalidade”.
Um último ponto seria admitir que a Constituição não foi técnica na redação do art. 97. Que não deveria ter dito que qualquer tribunal declara a inconstitucionalidade, ainda que no controle difuso. O problema é que ela disse isso. Assim, minha insurgência não é contra a tecnicidade da expressão, mas sim com o tratamento diferenciado sem fundamento normativo entre a primeira e a segunda instâncias.
Portanto, não há vedação a que o juiz singular (ou o tribunal) “declare” a inconstitucionalidade incidentalmente e no controle difuso. Por óbvio, porém, que terá o condão de apenas afastar a aplicação da norma no caso concreto, em se tratando de primeira instância, ou de autorizar relatores dos feitos nos órgãos fracionários do respectivo tribunal a de plano rejeitarem o recurso que contrarie à orientação firmada em relação à inconstitucionalidade pelo pleno ou órgão especial, sem se vedar uma mudança de posicionamento pelo full bench em casos futuros. Pensar diferente é aceitar um dogma, incidir numa tradição inautêntica.

Comentários

  1. Respondeu minha dúvida!

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  2. Respondeu minha dúvida.

    Att,

    Rodrigo Diniz

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  3. Professor, excelente artigo. Mas, na minha ignorância de estudante, surge uma dúvida:

    A CF não veda, no exercício da jurisdição constitucional, juízes singulares de afastarem a incidência de uma norma (indiretamente, a declara). Mas, com base no Princípio da Legalidade, qual seria o fundamento normativo-constitucional que atribua tal competência ao juízo singular?

    Só consigo visualizar o Princípio da Inafastabilidade Jurisdicional para tanto, mas: (a) Ao estatuir uma condição de eficácia da declaração aos Tribunais no Art. 97, indiretamente a CF estaria atribuindo a competência aos mesmos (não mencionando o juiz singular). (b) A intenção do legislador constitucional não foi a de dar maior segurança a tais questões, obrigando o quórum absoluto? Assim, a suscitação pelo juízo singular não ensejaria a ratificação colegiada?

    Ou a resposta para tal questionamento seria teórica, e não normativa?

    Att.,
    Diogo B.

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  4. Excelente blog, parabéns! Se tiver oportunidade, visite também o meu: www.blogdoblum.wordpress.com. Grande abraço.

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