Continuando as reflexões sobre os recentes movimentos populares, é possível enxergar que ainda não há uma confluência das vozes das ruas em torno de reivindicações concretas e pontuais. Ao mesmo tempo, seria pretensioso de minha parte indicar quais as bandeiras que devem ser defendidas. Quero, tão somente, contribuir na formação do senso crítico, para a percepção de que os discursos devem convergir visando sua concretização.
Será uma pena para o amadurecimento de nosso regime democrático se toda essa energia das ruas se perder, se não for canalizada para objetivos que compatibilizem a realização de uma sociedade mais igualitária, justa e solidária. A frustração, nessa dimensão colossal, é perigosa. A história está repleta e exemplos.
A politização do cidadão requer esforço. E ela passa por estudos, diálogos e leitura. Por reflexões. Estamos todos aprendendo juntos. Portanto, neste escrito abordarei o que entendo ser ainda a expressão típica de uma baixa compreensão política. Darei a essa visão o nome de democracia self-service.
Vivemos hoje numa sociedade de consumo, em um contexto de aceleração social. Tudo muito rápido e sob uma ótica de que tudo é consumível, comestível. A democracia, se for vista nessa órbita consumista, torna-se mais um produto. Não há espaço para a cidadania – enquanto exercício dos seus direitos políticos e respeito às regras do jogo democrático. Se o indivíduo se vê como um consumidor, a democracia se transforma apenas em mais uma “coisa” pra ser “comida”.
Vai-se ao restaurante dos interesses pessoais. Os pleitos estão ali no balcão da utopia. Tudo posto. É só passar com a bandeja e pôr no prato, ao gosto do cliente. E gosto, claro, cada um tem o seu. É a democracia self-service. Na democracia self-service os pleitos têm que ser atendidos na hora. Ou que se demita o gerente!
A visão consumista e individualista inverte a ordem da esfera pública. Não são indivíduos que, a partir de ideias e objetivos concretos em comum, formam uma multidão (como nos movimentos sociais politizados).
Dentro da multidão de in-divíduos, defendem-se as próprias causas individualistas, por mais irrefletidas, paradoxais, contraditórias ou desprovidas de exequibilidade real da forma como são exigidas. E, claro, não há espaço para a diferença aí porque, afinal, não há espaço para a história na ordem do consumo.
A democracia deixa de ser um processo, uma construção histórica. Deixa de ser relacional. Vira um conceito solto no vazio dos (sem)sentidos. Não há reflexão sobre as conquistas alcançadas historicamente, sobre a complexidade da vida em sociedade e a necessidade de respeitar as regras do jogo democrático. Muito menos há tempo para se pensar nos riscos do que pode ser perdido em nome de ilusões individualistas.
A moda da estação outono-inverno inclui agora protestar contra “tudo-o-que-está-aí”. Bem que poderia ter sido na “primavera”... Faria todo o sentido. Mesmo assim, quem quer ficar fora da moda?
Quase todas as exigências do cardápio são legítimas. Muitas são até óbvias. É um despertar para a cidadania. E a liberdade de expressão é a mais pura expressão da cidadania. O país tem problemas? Claro. Não são poucos. Há dados que eu mesmo há anos denuncio em meus escritos em relação às desigualdades sociais – principalmente econômicas e étnicas. Mas não podem ser vistos de maneira atemporal e com simplificações. São problemas que não nasceram ontem. São históricos. Grande parte deles, seculares.
Não vislumbro, nessa ótica imatura e ingênua, uma reflexão sobre como se promover mudanças sem que se caia no autoritarismo. Por isso tantos pleitos, ainda que contraditórios, afinal, o cardápio, ilusoriamente, permite tudo. Há um clima de superficialidade e alienação. Na exaltação contra “tudo-o-que-está-aí” vale qualquer coisa. Exigir qualquer coisa, sem investigar que tal solução passa pelo cumprimento de outras etapas.
Resolver questões complexas na hora não dá. E nem até o próximo jantar. Se esse aglomerado amorfo de reivindicações é um problema para uns, é a solução para outros. Há sombras à espreita. O lobo sorri. E também está com fome. Ele é sempre faminto. Se olhar com senso crítico, afastar-se da histeria, dá pra ver os seus caninos nas sombras.
Um ponto identificável nesses tempos de relações virtuais, de medos, de incertezas, de correria, de sensacionalismo midiático, de propaganda: os indivíduos na multidão sentem-se numa pertença, mas, ao mesmo tempo, conservam seu individualismo (e não sua individualidade, que pressupõe enxergar que há o outro – o diferente). Para alguns poucos, tudo não passa de ter motivos para postar no Facebook e no Instagram. É festa. Poderão provar para os outros que estão na moda.
Posicionar-se simplesmente contra “tudo-o-que-está-aí”, sem projeto e sem reflexão, será que é uma forma de contribuir efetivamente para o jogo democrático? Tem algo muito estranho nesse despertar furioso. Algo de irracional e de manipulável.
A democracia não é artigo de consumo. Comer a democracia é fazer uma antropofagia. Ela está em nós. Na medida em que a devoramos nós nos consumimos também.
Bandeiras difusas e utópicas como a do “fim da corrupção” são uma falácia, um engodo. Servem a interesses no jogo político-partidário. Afinal, a corrupção há dez, vinte, trinta, cem, quinhentos anos, não existia ou era menor? E tal slogan, solto como um grito de mal-estar, não é propositivo.
Assim, como a democracia não está à disposição de nossos interesses pessoais e imediatos (ou de quem queira nos manipular), se queremos, efetivamente, protestar e buscar um país melhor para todos, temos que discutir questões estruturais.
Quem tem senso crítico não cai em discursos oportunistas. Enxerga longe e isso implica em refletir e dialogar sobre mudanças profundas, e muito necessárias, que mexam nas estruturas do Estado. Elas serão o alicerce de um país melhor. Torço para que os discursos das ruas se aglutinem e convirjam para esse fim.
Democracia self-service? Não, obrigado.
*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD