A violência como gozo escópico. Civilização ou barbárie?

Tratei a foto original digitalmente para que não se choque (ou se goze)...
Entro no Facebook. Vejo o amigo Manuel Sabino   Pontes criticar, estarrecido, uma postagem oriunda de uma determinada comunidade e que foi compartilhada por um conhecido dele. Na postagem, uma fotografia em cores de um homem dominado, ao chão, pisoteado, algemado e com uma pistola em sua boca. Na mesma foto, os seguintes dizeres:

“Ficou com pena dele? Acha isso um tratamento desumano? Sabe quais foram seus crimes? Leve pra casa e descubra.”

Essa postagem teve muitos compartilhamentos. É a espetacularização do grotesco e o mórbido. Isso vende e rende. Seja a sensação de alívio por não estar ali no lugar da vítima, seja a sanha violenta de se estar ali no lugar do algoz. O primitivo se faz presente. Como caçador ou caça. O sangue. A pulsão de morte grita! 
Civilização ou barbárie? Há barbárie na civilização. Ou seria o contrário? Nossos ternos, vestidos, perfumes, joias, requintes, enfim, escondem esse predador perverso que se alastra como praga pelo planeta, submetendo, dizimando e destruindo tudo e todas as demais espécies (inclusive a própria) por onde passa, em nome de uma pretensiosa superioridade, justificando sua violência em um discurso contraditório de bem-querer e de luta pelo bem comum. Sendo mais claro: em nome de deus(es) e do amor. E não nos enganemos. O ser humano de hoje – que também goza com o consumismo, mata com armas, radiação e lixo tóxico. É o exterminador do futuro.
Na imagem, o algoz diz: “sou o portador do falo (da arma), do poder. Sou mais homem que você”. Melhor dizer isso do que, na verdade, reconhecer ser, tão somente, mais animalesco. Não falta quem bata palmas. Mas quem aplaude a barbárie o que é, senão, um igual bárbaro que goza ao ver seu desejo de sangue sendo gozado, nem que seja pelo gozo do outro? Há um voyeurismo mórbido aí.
A foto é dramática, mas esse drama humano é ofuscado pela banalização da violência: “ficou com pena dele? Acha isso um tratamento desumano?”. 
Ao mesmo tempo, a violência e a morte viram algo íntimo, que amedronta e alivia, pois é a violência ou a morte do outro. No imaginário, a morte do outro fascina como fascina a manada de zebras que olha, aliviada, para aquela que foi feita presa dos leões. “Não fui eu, por enquanto, foi o outro”. Alívio fugaz e sensação de medo constante. A morte está à espreita. Para alguns mais fragilizados, o pânico. Para outros, o desejo de ser algoz. O desejo de linchar. De fazer (in)justiça pelas próprias mãos. Cerram-se os punhos, inconscientemente. Exterioriza-se. Tinha que sair. 
Se não dá para usar as próprias mãos, simbolize-se nas palavras gritadas na voz ou, se não der, no papel ou na tela do Facebook. “Curtir”. Toda pulsão tem, ao mesmo tempo, dizia Freud, pulsão de vida e pulsão de morte. São os olhos, nesse caso, como fonte de libido. Há o prazer em ver. É o gozo escópico. Mas como o gozo é fugaz (pois é a busca da coisa perdida), busca-se o novo. Há sempre uma nova imagem a ser gozada. O novo para o velho olhar mórbido. Há sempre um programa policial na TV ou no rádio à disposição. E na busca do gozo escópico, racionaliza-se: é notícia, é informação! Muitos desses programas são no horário do almoço. São comidos pelos olhos.
A imagem acima mostra, claramente, uma cena de tortura praticada por agentes do Estado. Para quem pratica o ato, uma completa corrupção da função pública. A despeito de fazer cumprir a lei, viola-a. A pretexto de perseguir pretensos criminosos, pratica crime tão grave, em frontal violação à lei, em desrespeito ao sistema judicial e à Constituição (art. 5º: “III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”). Enfim, é uma cena de covardia. Mas para isso servem os mecanismos de defesa - projeção, racionalização, negação, identificação... Freud explica.
Portanto, há quem, mesmo assim, goze em fotos como essa, reforçando esse comportamento criminoso do pretenso agente da Lei. “Sabe quais foram seus crimes?”. Só sei de um: é tortura. “Leve pra casa e descubra”. A foto revela o flagrante de um crime. Mas o ódio cega. Por isso, há quem não o veja... Onde está a barbárie? Está na foto. E o bárbaro? Na foto ou no olhar? Em alguns casos, em ambos... E a civilização?



*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito no RN e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

Comentários

  1. A barbárie está instalada no própro Estado que chancela a violência do capitalismo contra a maioria que trabalha. O resto, infelizmente, é detalhe da barbárie principal. O direito e a justiça são instrumentos desse Estado explorador. É a razão técnica sem a razão crítica. É a vitória de Kant e a derrota de Hegel e de todo humanismo.

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  2. Recebi há pouco comentário anônimo. Um desabafo, tão somente. Mas para publicá-lo e respondê-lo, preciso que seu autor se identifique. é porque a política que adoto aqui é de não aceitar o anonimato.
    Peço, apenas, que se identifique. Aí poderemos dialogar.

    Abraço.

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  3. Doutor, não quero me identificar. E confesso que nem tenho algum motivo relevante para tal. Apenas fiel ao conteúdo da mensagem (ou "desabafo, tão somente") anterior (o tal descrédito em tudo e todos) acho que o anonimato "está de bom tamanho". Ademais, também não acho esse debate produtivo. O senhor é homem de muitas letras, muito estudo e de habilidade ímpar com as palavras. Facilmente superaria meus singelos argumentos com a retórica brilhante que lhe é peculiar, e que me faz vir aqui de vez em quando.
    Para que o senhor tenha ao menos uma ideia de quem vos escreve, tenho 43 anos, sou estudante de Direito no 7o período e, como postei na mensagem anterior, pai de família, esposo e filho. E honesto. E trabalhador. E pagador assíduo (e com muito sacrifício) de contas, impostos, etc.
    Sou mais um daqueles injusta, dolorosa e constantemente inclusos no rol do que chamam de "sociedade opressora", "capitalista", "acomodada". Não uso terno nem muito menos perfumes caros. Em minha casa jamais se ligou e nunca se ligará a TV para ver um lixo desses programas que espetacularizam a violência.
    Mas doutor, eu confesso: dá uma sensação boa, um alívio, um sentimento de "enfim JUSTIÇA" ao saber que do lado lá, do lado do mal, algum dia, alguma vez, um criminoso foi espancado, humilhado, agredido, seja por agentes do Estado, seja por quem for. Melhor ainda se foi morto! Menos um!
    Outrossim, causa indignação, sentimento de INJUSTIÇA, impotência, apreensão e desilusão ao ler uma defesa, por mais simplória que seja, em favor dos direitos (dos criminosos) humanos. Direitos daqueles que matam, estupram, violentam, acabam com um patrimônio amealhado com tanto trabalho e tem como punição máxima (quando tem) dias de férias em penitenciárias, com direito a celular, televisão, banho de sol, visita íntima e tantas outras regalias. Dói, doutor!

    Aliás, estava lendo um texto no Conjur - http://www.conjur.com.br/2013-jun-05/stj-aplica-direito-esquecimento-primeira-vez-condena-imprensa/c/1 - e me identifiquei com o comentário de um leitor que reproduzo abaixo. Lembrei-me, na hora, do seu post.

    Disse o leitor:

    5/06/2013 10:29 Juarez Araujo Pavão (Delegado de Polícia Federal)
    No Brasil o crime compensa
    É impressionante como o judiciário brasileiro é dócil com criminosos. Quer dizer que, que a sociedade não pode lembrar da violência sofrida pelos seus concidadãos, por outro lado, quem pratica a violência tem o pleno direito de ser esquecido, compulsoriamente, pela sociedade. Por essas e outras, é que o traficante tem razão: " Quem é violento e mata é respeitado, se for mole, morre ou é desmoralizado". Do jeito que as coisas vão, vamos chegar, logo, logo, a uma guerra civil. Aí, será necessária uma reação forte da sociedade organizada, para reformular as instituições, porque, estas, perderam eficácia e finalidade. Atualmente, os valores estão invertidos, pois quem trabalha e paga tributo, não tem voz e vez, por outro turno, que escamoteia, tripudia, engana, mente, rouba, furta, mata, pratica extorsão, etc..., tem atenção da mídia, dos grupos de direitos humanos, dos teóricos do direito e dos academicistas sociais, enfim, para se viver bem, praticando o bem, tem-se que, buscar um lugar do bem!

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  4. “Para quem usa óculos, por exemplo, que, do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os ‘trazemos no nariz’, esse instrumento de uso, do ponto de vista do mundo circundante, acha-se mais distante do que o quadro pendurado na parede em frente.”

    MARTIN HEIDEGGER.


    Não pretendo vencer ninguém com retórica. Não entendo porque o anonimato. Publiquei porque me sensibilizei com o que já escreveu nesta e na outra mensagem.
    Confesso que tenho muita desconfiança de qualquer discurso que apregoe "pessoas boas" de um lado e "pessoas más" ou "monstros" de outro. Os regimes totalitaristas usam muito isso.
    Já que você é estudante de direito, gostaria muito que lesse, na ABA "Artigos" (lá em cima, canto esquerdo), o texto abaixo:

    http://www.rosivaldotoscano.com/2010/03/discurso-sobre-o-sistema-penal-uma.html

    Garanto que não vai doer nada. Quem sabe abra nossos horizontes para um diálogo produtivo. Por isso a citação dos óculos lá em cima. Se não quiser se expor nos comentários, não há problema, pode me mandar email: rosivaldotoscano@hotmail.com
    Pode dizer o que quiser no email. Respeitarei sua liberdade de expressão. Afinal, mesmo com tantos problemas, ainda vivemos em democracia.

    Tem uma outra postagem que acho muito interessante:

    http://www.rosivaldotoscano.com/2012/03/violencia-e-criminalidade-o-essencial-e.html


    Abraço,

    Rosivaldo.

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