Para entender a guerra na Ucrânia – há um vencedor
















"Pense como um império: uma guerra prolongada de um adversário poderosos contra um terceiro é do interesse imperial e deve ser estimulada sempre que possível porque é altamente eficiente. Baixo custo e altos resultados. Chama-se “guerra por procuração”."


    Não confunda a antiga União Soviética com Rússia. A Rússia é capitalista. Muito menos Putin com Lênin. O viés de Putin é conservador e de direita e, em alguns aspectos, próximo ao fascismo, reprimindo minorias (gays, mulheres e algumas minorias étnicas). Cada dia, aliás, mais Putin se liga à igreja ortodoxa russa. Contudo, na política externa ele é (assim como os últimos presidentes dos Estados Unidos - EUA) pragmático. Por isso, dialoga de A a Z, desde que haja interesses em comum; Putin trabalhou por muitos anos no serviço secreto russo e não chegou ao Kremlin à toa. 
    O que Putin tem de afinidade com a esquerda? É contra a política externa imperialista dos Estados Unidos, que comanda a OTAN para impor seus interesses até à Rússia. A Rússia quer a multipolaridade para ter relevância e ter um quintal como os Estados Unidos têm na América Latina.
    Na prática, as afinidades de Putin com a esquerda não vão muito além disso. Aliás, o Partido Comunista russo é seu maior opositor (aqui). O mentor estratégico de Putin, Alexandr Dugin é de viés fascista e influencia também Steve Bannon, o mentor de ultradireita de Trump (recomendo, para tanto, o livro “Guerra pela Eternidade”, de Benjamin Teitelbaum).
    Nessa briga de cachorros grandes, os EUA feriram um acordo feito durante a reunificação da Alemanha, de que não iriam inserir na OTAN nem retirar da zona de influência russa os demais países da antiga URSS ou os aliados russos do Leste Europeu. Foi o que mais os EUA fizeram nas últimas décadas.
    A Ucrânia compunha a antiga União Soviética e, mesmo após sua dissolução, fazia parte da zona de influência da Rússia até 2014, quando os EUA promoveram um golpe de estado por meio da técnica das “revoluções coloridas”, usadas com sucesso também na América Latina e na África. Conseguiram derrubar o presidente eleito democraticamente Viktor Yanukovych, mas que era alinhado a Moscou. 
    Após o golpe de estado, uma junta governou a Ucrânia por uns meses até as novas eleições, vencidas pelo bilionário Petro Poroshenko, antecessor do atual presidente. Há investigações na Ucrânia envolvendo Poroshenko e o filho de Joe Biden, Hunter Biden. Biden tem, em tese, motivos bem pessoais para não querer a deposição do atual presidente.
    A fronteira da Ucrânia fica muito perto de Moscou. Apenas 450 km em linha reta. O ingresso da Ucrânia na OTAN possibilitará mísseis balísticos a apenas 5 minutos de Moscou. Séria ameaça. Por muito menos a antiga União Soviética instalou mísseis em Cuba nos anos 1960. O motivo imediato da invasão é tentar recolocar um líder aliado a Moscou e evitar o ingresso da Ucrânia na OTAN. Em médio prazo, evitar “primaveras” nos países vizinhos aliados como a Bielorrússia, e, a longo prazo, na própria Rússia.
    Imagine se o ótimo humorista Tom Cavalcanti um dia se candidatasse e fosse eleito presidente do Brasil. Foi mais ou menos o que ocorreu na Ucrânia. O presidente da Ucrânia é vendido pela mídia ocidental (aliada dos EUA-OTAN) como um grande líder e não como um ótimo humorista, mas inexperiente e inábil na política e nas relações internacionais, e cuja intransigência (talvez fruto da inexperiência aproveitada pelos EUA-OTAN) no diálogo com o vizinho poderoso ajudou a causar a guerra.
    Pense no que ocorreria se o México ameaçasse fazer parte de uma aliança militar claramente opositora dos EUA que pretendesse instalar bases russas e chinesas com mísseis balísticos na fronteira. É isso que significa a Ucrânia na OTAN para Rússia. São centenas de quilômetros de fronteira entre os dois países e um imenso poder de contaminação pelo método de revoluções coloridas engendradas pelo Pentágono. A questão é tratada como de segurança nacional para a Rússia.
    Os EUA são o império midiático. Vendem o discurso da democracia contra os não-alinhados para, na falta de resistência interna, poderem influenciar livremente os processos eleitorais na busca de candidatos aliados e pressionarem os líderes eleitos desses países a aceitarem imposições que favoreçam suas multinacionais. 
    Caso não dê certo, causam desestabilização interna usando seus tentáculos na mídia, as empresas de tecnologia e as demais empresas multinacionais estadunidenses (por exemplo, para que elas promovam e financiem a imprensa interna alinhada aos interesses imperialistas através de anúncios) para a criação de uma narrativa que favoreça os interesses imperialistas. Usam  as redes sociais de suas multinacionais para coletar dados e aptos a direcionar tendências nas mensagens sempre que necessário e gerar mudanças de opinião nas centenas de milhões de pessoas-alvo que as acessam todos os dias. Além disso, formam e cooptam lideranças opositoras, geralmente jovens, por meio de intercâmbios e bolsas. Isso é política permanente de estado. Após, já modeladas, essas lideranças voltam aos países de origem e são favorecidas pela inteligência estadunidense, que usa a mídia alinhada internamente para construir uma imagem positiva delas e facilitar seu acesso à cúpula do poder, onde servirão como porta-vozes dos intereses econômicos das multinacionais estadunidenses.
    Se não conseguirem, escalarão a uma guerra econômica, com bloqueios e sanções, negando acesso a itens essenciais inclusive à saúde do povo do estado não-alinhado. A invasão, por ser cara e gerar desgaste, é a última ferramenta porque implica um processo muito prolongado de demonização do líder opositor e do país em geral, não só a nível interno, mas a nível internacional (como Sadam Hussein que, de mocinho contra o Irã, virou o demônio das armas de destruição em massa que nunca existiram porque contrariou o establishment). Nesse sentido, recomendo a leitura de "A História Secreta do Império Americano", de John Perkins. A Operação Freedom (Liberdade), por exemplo, matou mais de um milhão de iraquianos e deixou o país destruído em todos os aspectos até hoje. Afeganistão, Siria, Vietnã, a conta é longa e custosa.
  Tem outro ponto importante. pax americana está seriamente ameaçada pela China, que, em paridade de moeda, já é a maior economia do mundo e lidera tecnologias disruptivas como o 5G (e 6G), além de estar no mesmo nível ou até um pouco acima em inteligência artificial e computação quântica. É preciso entender também o conceito de guerra híbrida. Os EUA estão em guerra contra a China já há alguns anos porque seus estrategistas observaram que a ultrapassagem iria ocorrer. No que os EUA são melhores e muito mais experientes? Em fazer guerras acontecerem. Mas contra um gigante nuclear é necessária uma guerra híbrida; guerra econômica, financeira, eletrônica, cultural e midiática. Guerra de exércitos só se for por procuração porque uma escalada direta poderia transformar a terra em um imenso cemitério nuclear.
    Mas, mesmo assim, os EUA estão perdendo a hegemonia para os chineses e buscam uma forma de virar o jogo através da manipulação da opinião pública ocidental para que pressionem seus líderes a assumirem lado em uma espécie de Guerra Fria 2.0. Os russos são dos BRICS (enfraquecido com o estratégico esfacelamento interno do Brasil) e os maiores parceiros estratégicos da China hoje. Derrubar Putin e colocar um líder alinhado seria uma grande vitória para isolar e vencer a China, e reinstalar a unipolaridade.
    Pense como um império: divida para imperar. Para a política externa dos EUA não é bom um término rápido da guerra da Ucrânia, seja por um acordo de paz, seja pela capitulação ucraniana. Manter a guerra tem várias vantagens: a) gera desgaste para Putin fora e dentro da Rússia; b) incentiva a oposição interna na Rússia, abrindo caminho a uma "revolução colorida" lá, que não feche as portas para uma expansão das multinacionais estadunidenses lá ou em quaquer lugar do mundo e que se sujeite às regra do jogo nas quais os EUA jogam como banca; c) gera pretextos para ganhos de mercado na competição com a Rússia no mercado internacional; d) a sensação de insegurança que causa aumenta o mercado de armas, a maior indústria interna nos EUA hoje. Cria ondas de choque.
    Pense como um império: uma guerra prolongada de um adversário poderosos contra um terceiro é do interesse imperial e deve ser estimulada sempre que possível porque é altamente eficiente. Baixo custo e altos resultados. Chama-se “guerra por procuração”. É do interesse bloquear o caminho do diálogo e municiar o governo ucraniano com as armas mais antigas de seu arsenal (para renovar os estoque imperiais com arsenal de ponta) e torná-lo devedor de favores, para que seu povo mate e morra contra os russos por meses ou anos a fio, sem que os EUA tenham desgastes com perdas humanas de seus exércitos. Além disso, mais mortes na Ucrânia significa mais munição para a guerra midiática contra a Rússia e a China, reflexamente. Se Putin cair, a China fica a um passo do isolamento.
    Mas em se tratando de países europeus, guerra no quintal do vizinho tem também seus prejuízos. O presidente da França sabe e, por isso, adota um tom mais conciliador. Mas ao demonizarem a Rússia, frente à forte propaganda já estabelecida (inclusive com bloqueio aos sites russos que se contrapõem à narrativa maniqueísta já estabelecida) os governantes internos ficam em xeque: obtêm ganhos eleitorais porque aderem a uma causa vendida como óbvia da luta do bem contra o mal e ficam em situação difícil se não põem a mão e ajudam a apertar o torniquete. 
    O passo seguinte do império será fazer o mesmo em Taiwan. A criação de um clima de tensão e medo na população de lá já vem sendo entabulada há alguns anos, movendo a opinião pública a, em breve, um pedido de ruptura. Depois é ir controlando midiaticamente o desenrolar dos fatos em relação aos políticos da ilha. Ganhos econômicos já ocorreram. Bilhões em compra de armas.
    Observe que: a) a narrativa de defesa “dos direitos humanos” serve para a Ucrânia ou para a China, mas não para os negros nos EUA nem para a prisão de Guantánamo, a aliada Arábia Saudita, a Somália ou os sofridos palestinos; b) a narrativa de defesa “da democracia” igualmente exclui, convenientemente, a Arábia Saudita, Kwait, Emirados Árabes e tantos outros regimes ditatoriais aliados ao longo do tempo; c) na narrativa da “soberania” não cabem o Iraque nem o Afeganistão - que foram ocupados por muitos anos, muito menos a Síria, constantemente alvo de bombas e mísseis estadunidenses.
    Ao fim e ao cabo, trata-se de uma guerra provocada. No jogo de xadrez geopolítico, Washington sabia que ao instigar o presidente ucraniano a assinar o pacto de inserção na OTAN, apesar dos apelos contrários da Rússia, colocaria Moscou em xeque: apequenar-se com a diminuição de sua zona de influência, aceitar mísseis balísticos e a contaminação da narrativa midiática ocidental em sua porta ou invadir o vizinho para evitá-los Duas escolhas trágicas. Jogo perde-perde.
    Os membros europeus da OTAN, principalmente os fronteiriços, também não conseguem grandes vantagens ao trazer a instabilidade para perto, como é o caso da Alemanha, dependente do gás russo. Depois dos EUA, talvez, entre os membros da OTAN, o maior interessado no conflito seja o enfraquecido primeiro-ministro britânico Boris Johnson, cujo país, por estar distante e ser uma ilha, não receberá a pressão do fluxo de refugiados em sua fronteira e que precisa de uma narrativa que una a população em torno dele. Para Biden, com menos de 40% de popularidade nos EUA, a crise da Ucrânia também se tornou uma manobra diversionista importante e altamente oportuna.
    Os interesses em jogo nessa guerra são econômicos, envolvendo hegemonia mundial. Não há mocinhos e vilões. Mas há um país que está por cima, mexendo os fantoches que se odeiam e se matam, iludindo o cidadão comum do mundo que fica na torcida por um ou outro lado. Esse país é o único ganhador.
    Esse país é o Império do Mal? Todo o Império quer imperar sobre os outros. A desvantagem de um mundo unipolar é que não há concorrente com quem possamos barganhar uma exploração menor por parte dele. Havendo pelo menos dois impérios, enquanto eles brigam, nós, na periferia, vamos escapando.
    Como disse certa vez Carl von Clausewitz, na afamada obra “On War” (“Sobre a Guerra”), “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Quanto à guerra? Claro, torço sempre pela paz. Mas já vivi anos o suficiente para entender que a questão é muito mais complexa do que o simplismo do bem contra o mal que os filmes de Hollywood e a mídia ocidental vendem lá e aqui nestas terras latinas.


*Rosivaldo Toscano é mestre e doutor em Direito, autor de A Guerra ao Crime e os Crimes da Guerra.

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