Os perigos do neopentecostalismo jurídico — Parte II - Por Lenio Luiz Streck



Na parte I dos “Perigos do Neopentecostalismo jurídico” (clique aqui para ler), abordei a relação “palavras” e “coisas”, tentando denunciar o distanciamento e o aviltamento que a “pós-modernidade” provocou. Se palavras e coisas dormiam juntos (alusão a um dos meus poemas preferidos, de Hilde Domin), a cisão desse “casamento” proporcionou um pragmati(ci)smo sem controle. Isso pode ser visto nos vários campos do conhecimento. O futebol me pareceu inspirador, para mostrar como palavras e coisas (ou seja, palavras e seus sentidos) ficaram inimigos figadais.
O que fizeram com as palavras? Trata-se de uma pergunta radical. Sim, radical porque vai à raiz da “coisa”, mormente no que concerne ao ensino jurídico e as práticas cotidianas do Direito. João Cabral de Melo Neto, no poema Uma Faca, Só Lâmina, enfoca sobremaneira a lâmina por ser a parte cortante da faca. Essa deve ser a relação — e aqui parafraseio o professor Fernando Brum, especialista no poeta — entre a crítica jurídica e o Direito. A crítica deve ser a lâmina, para ferir e deixar cicatrizes no leitor, que nunca mais será o mesmo depois de ler o texto crítico. Essa é a minha intenção. Vamos, pois, à segunda parte, “a missão” (sem ler a primeira parte, esta ficará sem a integridade necessária, como diz Dworkin ao falar de sua novel chain).
Farfalhos e galhofas jurídicas
Fragmentos e instantaneidades. O Direito também entrou nessa. As provas de concursos são pegadinhas. Isso já está passando da conta, pois não? A “criatividade” dos elaboradores das questões não tem limites. Cada pergunta assinalada errada anula uma correta. E é tudo “de marcar com cruzinha”. Direito virou estatística. Cálculo. Sorte. Armadilhas. Tudo é performático. Já não se estuda; treina-se. As aulas são espetacularizadas. Memorização. Decorebas. Fragmentação. O saber se foi. De há muito. Hoje no Direito há uma competição: quem consegue escrever de forma mais simplificada e mais fácil de decorar.
Trata-se de um círculo vicioso. Os concursos tratam de questões armadilhescas; os cursos de preparação buscam “preparar” o utente para o enfrentamento dessa gincana. Bingo. De todo modo, parece haver aí um “dilema”: os concursos são assim porque as faculdades e cursinhos preparam precariamente ou as faculdades e os cursinhos são do modo como são por causa da mediocridade dos concursos? Por isso, o círculo é vicioso e não virtuoso. Pior de tudo: o material utilizado para o “mundo dos concursos” acaba sendo usado nas práticas forenses. E — e aqui a questão assume ares de dramaticidade — já são vistas citações desse material em decisões em tribunais (inclusive Superiores).
Vejamos como tudo isso tem relação com a espetacularização da informação. Os livros que tratam da matéria “concursanda” acabam seguindo uma espécie de roteiro contendo chaves. Aliás, na verdade, os livros (e as aulas, cada vez mais “pentecostalizadas”) buscam decifrar os “enigmas” da dogmática jurídica (comparem alguns pastores lendo a Bíblia e explicando, com ar inteligente, o que quer dizer, por exemplo, o “filho pródigo” ou “o que quer significar a atitude da mulher de Ló olhando para trás no “episódio Sodoma e Gomorra”, com a explicação do neopentecostalismo jurídico sobre o que é, por exemplo, “erro de tipo” — em que o sujeito se veste de cervo e leva um tiro — ou, ainda, “os pesos na balança ponderativa... e a imagem de duas mãos imitando uma balança”). Só que esse é o território do senso comum, da mera informação. É o reino da imagem. Do dúctil. Do fácil. Como se o mundo fosse um conjunto de “coisas dadas” e a alguns fosse dada a tarefa de fazer uma auslegung (retirar os sentidos assentados em algo).
E, assim, a reflexão fica obnubilada por “palavras que cobrem palavras”. Enfim, uma pororocada de informações. Consequência: a perda da capacidade crítica. É fatal. No Direito, aplaude-se a mera performance do professor-ator-escritor. E o Direito acaba sendo “traduzido” por uma linguagem em que as noções fundamentais são transformadas em “enunciados anêmico-performativos”. Como venho denunciando, o Direito acaba sendo um conjunto de “conceitos sem coisas”. PS: é evidente que a crítica se dirige a um determinado segmento do “mundo jurídico”. O Brasil avançou muito nos últimos anos. Mas, paradoxalmente, quanto mais avançamos em termos de sofisticação, mais regredimos em termos de estandardização.
(Per)sigo. E (pro)sigo. Tudo vira imagem. Há alguns anos, acho que registrei isso em algum texto, vi no Programa do Jô (Soares) uma cena espantosa. Três jornalistas — muito conhecidas — comentavam os assuntos da semana. E não é que a nossa Constituição veio à baila? Elas diziam que era muito extensa. Jô, o apresentador, chegou a comparar o peso da nossa Constituição com a dos EUA. Pegou uma em cada mão (fiquei pensando que ele queria fazer uma “ponderação”). E todos riram. Muito engraçado. Eu me atirei no chão de tanto farfalhar (estou sendo sarcástico!). Mas as galhofas não pararam por aí. Uma das jornalistas foi explicar as razões dessa “diferença de peso e tamanho” das “Cartas”. Segundo a expert, a dos EUA é sucinta porque é da família germânica; a nossa é extensa porque é da família romana. Pronto. E a plateia, recheada de estudantes de Direito, cada um provavelmente com um manualzinho de quinta categoria debaixo do braço, aplaudiu entusiasticamente. E ficou por isso mesmo. E eu pensei: o que fizemos com as palavras? Já não valem mais nada? Definitivamente, fracassaram.
Não surpreende, portanto, que, sem DNA, palavras e coisas andem inimigas. Andam se escondendo umas das outras. Quem estaria mais envergonhada? A palavra ou a coisa? Quem não quer nem encontrar a outra? Vejamos... Um partido político se apresenta como “o partido da decência”. Vi a propaganda, mas a “coisa” chamada “decência” não apareceu. Apareceu apenas a palavra “decência”, como flatus vocis (que quer dizer “palavras esvaziadasdesignificadoinventadaspara predicar coisas reais”; a frase é de Roscelinode Compiègne, no século XI; essa questão é retomada, quase dois séculos depois, por Guilherme de Ockam, para fazer, como seu nominalismo, a primeira grande oposição ao essencialismo). Espero, de todo modo, que eu seja bem compreendido nessa metaforização da cisão (abismo gnosiológico) “sem volta” entre palavra e coisa. Mas, enfim, nesta fragmentação pós-moderna — voltando ao “caso” do “partido político” — “decência será aquilo que os líderes do partido dizem que é”. E ponto.
Na mesma linha, outro partido político (o que é mesmo, um “partido” Seriam “coisas partidas”, “es-patifadas” — que viriam de patifes, patifamentos?) diz: somos o Partido da População (para fazer bom uso dos P’s da sigla). OK. Mas, o que é “população”, cara pálida? População é aquilo que o tal “partido” diz que é? Assim, de forma impune? No “seco”? E o que quer dizer “insignificância”? Sei que não há um conceito primordial-fundante (ou universal) acerca do que seja isto “a insignificância”... Mas, com certeza, não é o que está sendo dito por aí! E qual é a dimensão da palavra hipossuficiência, quando o STJ concede Habeas Corpus, impetrado por defensor público, a indivíduos que contrabandearam mercadorias de valor superior a R$ 20 mil? E defensor público é para isso?! Esses sujeitos não possuem condições de contratar um advogado? O que quero colocar em pauta é: qual é o significado de hipossuficiente, aquela expressão que está lá na Constituição definindo as pessoas que têm direito à assistência judiciária gratuita? Sei que a palavra tem um sentido no seu contexto (o contexto não ficou claro no julgado). Mas pelo menos o STJ poderia ter solicitado que os autodenominados hipossuficientes comprovassem a sua situação de hipossuficiência. Ou “hipossuficiente” é aquilo que o sedizente “hipossuficiente” diz que é? Meu alerta objetiva a evitar que a palavra hipossuficiência não se torne ela também “hipossuficiente de sentidos”, se é que me entendem!
A inimizade entre palavras e coisas se acelera. Briga de foice no escuro. Outro exemplo de açoitamento do sentido de uma palavra nos vem de notícia dando conta de que um importante professor da UNB disse que o que houve no Paraguai foi “ruptura política e não golpe”.[1] Segundo o ilustre professor brasiliense, a queda de Lugo seguiu as normas do país. Ah, bom. Que coisa, não? E a Constituição do Paraguai começa e termina no artigo 225? Esse artigo é uma ilha no meio de tantos outros? Ora, existe outro artigo do texto, o 17 — que o Doutor não deve ter lido — que impõe que a todos os acusados se garantirão meios e prazos indispensáveis para se defender. O Paraguai é engraçado. O sujeito comete uma multa de trânsito e tem dois dias para se defender. Mas o presidente da República tem menos tempo do que isso para se defender da acusação de impeachment...! Fantástico! Um orientando meu (Rosivaldo Toscano) escreveu um ácido artigo (“Paraguai: eu sou você amanhã? - Ou em busca da democracia perdida em nós”) no qual ele relembra que não se pode interpretar em tiras, expondo o que lhe interessa (no caso, o art. 225) e escondendo o que não lhe é favorável (o art. 17). Muito menos existe interpretação de um texto por “amostragem”. Não se pode tirar conclusões do todo com base em uma parte, assim como não se pode ler um livro pelo que se tem na “orelha”.
Sendo mais claro — e sem abandonar a discussão do “caso Lugo”: o Direito não está ao nosso dispor. Ou seríamos pequenos tiranos, ao estilo le droit c'est moi. Interpretação não é ato de vontade. Os sentidos dos textos não estão ao nosso dispor. A interpretação é um encontro. Uma fusão de horizontes (o do texto — inteiro alerte-se — e o do intérprete). Isso sem contar que vivemos imersos em uma tradição, como salientado por Gadamer. E há constrangimentos semânticos mínimos. Conceitos que são compartilhados dentro de uma comunidade. Como bem acentuou meu aluno, se alguém acha, sinceramente, que 16 horas (com uma insólita noite no meio) é um prazo razoável para se apresentar uma defesa, avise-me do seu endereço. Terei receio de passar por perto. Um sintoma de como aqui em terrae brasilis o conceito de democracia ainda não foi bem assimilado foi o editorial de jornal de grande circulação justificar (pasmem!) o seguinte: “Apesar de cercear direito de defesa, impeachment de Lugo foi constitucional”. Uau: “apesar de cercear... foi constitucional?” Por isso, digo eu: “O inferno são os outros”. Achamos que o mal está sempre no jardim do vizinho. E nem reparamos que a cerca é vazada!
Que coisa, não? E o que o professor da UNB acharia se nossos congressistas, previamente aliados (e mancomunados), introduzissem na nossa Constituição dispositivo idêntico ao da Constituição do Paraguai (igualzinho, igualzinho) — e isso não levaria mais do que alguns dias (uma vez que já “pré-arranjados”) — e, baseados nisso (isto é, na própria emenda constitucional), derrubassem a presidente Dilma?[2] Isso valeria? Se, sim, cuidado. A ideia é perigosa! Não quero polemizar a queda do presidente Lugo, mas essa argumentação do professor de Brasília vai contra uma necessária leitura da ciência política com o Direito. Ou seja, não é possível “fazer” ciência política desindexada do Direito (isto é, de uma leitura que constitucional). Não há teoria política sem Estado, sem Constituição, sem direito. O que são instituições? Uma ruptura política é uma ruptura institucional. Isso tem nome: golpe! É contra o Estado Democrático de Direito. Ah, o Itamaraty não falou em golpe? OK. Baita informação, essa do Itamaraty. Sem ela, o mundo não seria “o mundo”! Os “procedimentos” (sic, sic ... e mais um sic) seguiram a Constituição? Está bem. Façamos um pequeno teste para saber o “coeficiente de positivismo” (falo, aqui, do positivismo mais simples, o exegético) que habita a tese do professor. Vamos colocar na lei que “congressistas e professores serão chicoteados ao amanhecer, uma vez por mês, por colonos albinos, antes do nascer do sol”. Pronto. Está na lei. Vale? Podemos iniciar os chicoteamentos? Podemos já proceder a licitação para a compra dos chicotes? E um concurso para contratar “colonos albinos”? E unguento para passar nas costas dos congressistas e dos professores? Mas, vamos a mais um exemplo, para um teste tipo blind review: se uma lei proibir que se leve cães na plataforma do trem, pergunto: o doutor poderia levar um urso? Se a resposta for afirmativa, então Lugo não foi deposto. Foi só (sic e mais um sic) uma ruptura institucional. Só porque o Paraguai é pequeninho. O personagem Humpty Dumpky, de Alice Atrás do Espelho, também dava às palavras o sentido que mais lhe convinha. Por isso, “ruptura” não é “golpe”.
Sigo. Andante. E o que é (ou seria) “na moral”? O apresentador do programa com esse nome é o mesmo de Big Brother Brasil. É. Pois é. O Big Brother Brasil é bem “na moral”... Dá para fazer “tese de doutorado” sobre ele, algo do tipo “Por uma Epistemologia do Edredom”! Mesmo que o “na moral” (talvez) queira dizer outra coisa. De todo modo, depois de notícias que dão conta de que o programa BBB teria sido comparado à Guimarães Rosa, a solução parece mesmo ser a de estocar comida. E construir um bunker. Para me proteger contra isso tudo. Ou seja, “agora vai”. PS: gostei da chamada do programa: “tamu junto, na moral”. Uau! Sim, ele disse mesmo “Tamu junto”... Ei ouvi! Isso é bem BBB, pois não? Bem “intelectual”! Como diria Nelson Rodrigues: tão profundo que "uma formiga atravessaria com água pelos tornozelos". E a malta assiste. Logo, logo, as Faculdades de Direito farão fila para assistir ao vivo. Ups. Agora que falei, temo que a ideia vingue.
Em que se transformou a televisão? Parece haver uma conspiração contra qualquer manifestação de cultura. Invoco-me, mesmo, com a mesma maneira com que todas as reportagens são feitas. O trigo sobe de preço... e o repórter lá está no trigal. Preços das mensalidades escolares... A reportagem inicia na casa de uma mãe, que tem dois filhos. E logo vem um “especialista”, que tem exatos 20 segundos para dar a sua “opinião”. Bingo! Trata-se de uma espécie de “esquizofrenia comunicacional”. Tudo fica “ao pé da letra”, afinal, os esquizofrênicos em surto não conseguem simbolizar. No futebol, é impossível noticiar algo sem fazer gracinha. O time está “voando” e a o repórter ou está no aeroporto ou filma um passarinho “no voo”. Quem é que ensina essas pessoas nas faculdades? Tem um kit “reportagem padrão”? Aposto que nesse meio televisivo existem livros do tipo Reportagem simplificada ou Estudos esquemáticos de comunicação visual. A Revista Veja traz a entrevista do autor da novela Avenida Brasil. Veja o diagnóstico do autor: “No Brasil, além dos pobres-pobres, agora temos os pobres-ricos. (...) As pessoas agora querem saber é da vida dos jogadores de futebol, cantores sertanejos e atores de TV — aquele pessoal de origem humilde que enriqueceu e mora em condomínios na Barra da Tijuca.” Que genialidade, não? O que ele quis dizer com “as pessoas”? Isso explica o sucesso da novela? Ou é a baixa cultura da malta brasileira que explica o sucesso desse “produto”? PS: ninguém vai falar que o autor da novela copia, em um dos núcleos, A Novela do Curioso Impertinente, que faz parte do Dom Quixote, de Cervantes? Sem nota de rodapé? Se tem, não a vi.
Finalizando. Tudo isso é virótico ou bacteriano? Como é possível ver o zíper do monstro. Ao persistirem os sintomas, a Constituição deverá ser consultada. Enfim: porque, diferentemente do Google, o direito não é uma ferramenta.
Enfim, é o triunfo da estandardização. Talvez tenhamos perdido a batalha. A bactéria “linostoculus pastofurus” está liquidando a cultura (e o direito é uma manifestação da cultura, pois não?). É uma bactéria. Não é um vírus. Este tem um ciclo e sai sponte sua. Aquele, só com intervenção externa. É aí que nós entramos. Ou não. Por isso, retomo João Cabral de Melo Neto: a crítica deve cortar. Deixar cicatrizes no leitor. E aqui faço um pequeno parêntesis: minhas reflexões nos últimos 15 anos (no mínimo) buscam fazer o diagnóstico desse quadro todo (me refiro à especificidade da crise paradigmática que atravessa inapelavelmente o Direito). Como enfrentar essa crise? Em vários livros e artigos procuro apresentar soluções, para superar a crise de paradigmas de dupla face (crise de modelo e crise de compreensão) que fragiliza a teoria do Direito e, consequentemente, as práticas judiciárias. A falta da compreensão acerca do significado do positivismo (os juristas ainda acham que o grande problema é o positivismo exegético e, para tanto, simplesmente contrapõem-lhe vulgatas voluntaristas) e a proliferação de mixagens teóricas têm contribuído sobremodo para o não avanço da discussão. Não basta “superar” o positivismo exegético; isso é velho demais (embora ainda haja nichos fortes de resistência desse setor); é necessário superar as diversas formas de positivismo que foram colocadas no lugar das formas de positivismo do século XIX. Isso é muito sério. O uso da “ponderação” é um forte sintoma dessa baixa compreensão acerca da passagem do racionalismo para o voluntarismo, que, mutatis, mutandis, é tão ou mais pernicioso que o velho formal-exegetismo. E o que dizer das reformas processuais, ambas (CPP e CPC) apostando no “velho” solipsismo? Portanto, temos que enfrentar essa problemática a partir da tese de que o Direito é, efetivamente, alográfico. Ele necessita de uma teoria coerente para ultrapassar os obstáculos que impedem o avanço das conquistas constitucionais. Ou seja, não dá para sair falando sobre o Direito “de qualquer jeito”! Esse mundo de abstrações e estandardizações é um “enredo de filme trash”, em que dá para ver o zíper do monstro (como se sabe, filmes trash são aqueles que o diretor leva “a coisa” a sério, como, por exemplo, Os Tomates Assassinos). Por isso, urge uma (re)tomada de posição. Os problemas do Direito — ou da teoria do Direito — não serão resolvidos a partir de teses voluntaristas ou soluções ad hoc. É aí que deve entrar em campo um pesado investimento simbólico na “alografização” do Direito, isto é, mostrar que não se pode confundir a mera instrumentalização do Direito (Direito como uma simples ferramenta, produto de tecnificações e decorebas) com um conhecimento que é complexo, muito complexo. Fecho o parêntesis.
E, assim, retomo o fio da meada, para finalizar.
Não podemos nos entregar para o “imaginário Google” (falo do Google, aqui, como uma metáfora que simboliza um conhecimento “sem coisas”, sem contexto). Direito não é um conhecimento lexicográfico. Direito é texto e contexto, sem cisão. Quanto ao Google, qualquer néscio alimenta essa ferramenta. Sim, porque é uma ferramenta. Para o bem e para o mal. Mas o Direito, ao contrário do Google, não é uma ferramenta! Tenhamos claro isso. Ele — o Direito — não é “para o bem e para o mal”. Ele deve ser para o bem. Para buscar um “ideal de vida boa”, como prometido na Constituição.
No Google, quase nada “fecha”. Já demonstrei que há mais de 20 mil incidências da palavra ponderação como “princípio” e menos de 500 para a palavra “regra”. Se você pensa que a maioria tem razão... danou-se. E feio. De todo modo, parece que nas salas de aula dos cursos de direito os professores (voltamos à palavra “professores”) opta(ra)m por prestigiar a maioria do Google, porque parece que estão ensinando que a malsinada “ponderação” é um “princípio” (afinal, o que significa essa palavra “princípio”)? Aliás, sobre “princípio”, o constitucionalista e meu Amigo Alexandre Bahia enviou-me um novo, recentemente saído daFábrica Panprincipiológica Inc.: é o “princípio” da lealdade processual da parte para com o Estado-juiz. Foi o CNJ o inventor. Interessante, porque o dever de lealdade, ao invés de ser via de mão dupla, só vai na direção da parte para o juiz. Mais um produto do Direito made in Brazil. O CNJ deveria zelar pela aplicação do Direito e não incentivar a “fabricação” de conceitos sem coisas... E voltamos ao início da discussão...
Como se lê no quadro da Nau dos Insensatos: rumo à estação “Insensatolândia”. E retomo a agora já famosa citação do “filósofo” (neo)ludopedista Big House: “e aí, vamos lá?” Ou a chamada para o programa “Na Moral”: “Tamu junto?”
E eu respondo aos dois: — Mas não vou, não! E tampouco “tamu junto”. De jeito nenhum!

[1] Quero avisar que, particularmente, considero o ex-presidente Lugo um chato. Portou-se, ao tempo em que governou o Paraguai, como mais um dos representantes de “presidencialismos imperiais” típicos na América Latina. Mas, como hermeneuta, a minha opinião não importa. Gostemos dele (de Lugo) ou não, trata-se de discutir a sua deposição à luz do constitucionalismo contemporâneo e do paradigma do Estado Democrático de Direito, em que o direito alcançou um elevado grau de autonomia. Não se trata de misturar “esquerdismos” e “direitismos” nessa discussão. Direito não é ideologia. Não é política. Não é filosofia. Não é sociologia. Embora se abebere de todos esses elementos. Mas sobre isso já falei em outras colunas, ad nauseam.
[2] Imagine-se a cena: uma ampla maioria de mais de 4/5 do Congresso trama o golpe. Propõem uma PEC. Aprovam-na em rápidos dias (há precedentes disso, pois não?). Teríamos um texto como o da “democracia paraguaia”. E os congressistas brasileños dariam também 24 horas (afinal, estariam seguindo a Constituição) para a Presidente se defender... Que tal? Haveria também um editorial de grande Jornal dizendo “apesar de cercear o direito de defesa, a derrubada da Presidente seguiu os ditames da Constituição...” Ora, ora. E ora. Façam-me o favor!

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2012

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