Manifestações e manipulações: um alerta e um viva!

São Paulo, 17.06.2013. Fonte: comunidade Juntos, do Facebook
Confesso que estou atônito e buscando refletir sobre a dimensão que essas manifestações populares vêm tomando. De certa forma, alegram-me e me lembram o poema “O Povo ao Poder”, de Castro Alves, quando diz

“A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor!... pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu...
Ninguém vos rouba os castelos
Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.”

Ou, ainda, nessa passagem:

“A palavra! vós roubais-la
Aos lábios da multidão
Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão.”

De outro lado, preocupam-me os rumos da construção de um clima de niilismo, que abre espaço para discursos totalitaristas.
Em todo caso, há algo de novo no ar em relação às manifestações populares que de uns meses para cá vêm tomando conta das grandes cidades. Tudo começou, ao que parece, com um movimento contra aumento de tarifas de transporte (e, claro, sabemos que quem usa transporte público é quem vive no andar de baixo da pirâmide social) passou, posteriormente, a também abarcar a denúncia da truculência policial e, a partir disso, a defesa da própria liberdade de expressão.
A mídia hegemônica fez sua cobertura de sempre, “criando realidades” em suas edições, visando a já comum criminalização desses movimentos sociais e, também, a defesa inconteste e legitimadora dos eventuais abusos das forças repressivas. O velho pretexto de proteção da “ordem”. Esqueceram, porém, de combinar com os russos: não dá mais para ignorar as redes sociais e os flagrantes gritantes de desrespeito, abusos e violência que saltaram na internet.
Ficou insustentável continuar culpando os manifestantes. Seria uma  cobertura jornalística esquizofrênica. Diante da inevitável desmoralização, a grande mídia “aderiu”. Houve quem se desculpasse da postura anterior. Nada melhor, então, do que “pautar” as reivindicações ou dissolvê-las em um caldo confuso. Ao invés de temas sociais (desigualdades, liberdade de manifestação e de opinião, reforma política, diversidade cultural, sexual e religiosa ou até mesmo a dimensão dos gastos com a Copa em face de nossas deficiências), pode-se propagandear o moralismo de sempre. O combate à corrupção. Afinal, passa-se a imagem de que somente há poucos anos se descobriu, convenientemente, que há corrupção por essas Terras de Vera Cruz.
E era preciso uma correção estratégica para tentar manter o controle: de repente, os “baderneiros” viraram “heróis” nos telejornais.
E a tentativa de pautar as massas está se dando por meio de uma reedição do “Cansei”. Um “Cansei 2”. Vários atores, inclusive, passaram a posar com uma maquiagem de olho roxo e cara de velório, em alusão a uma repórter que foi atingida por uma bala de borracha. O slogan não poderia ser mais impactante e vazio: “muda Brasil”. Isso leva a uma ideia de movimento, de mudança. Mas, afinal, será que mudar por mudar é o que importa? Será que nada mudou? Será que toda mudança implica em avanço? Em 1964 tivemos mudanças por aqui... Ou será que, antes, precisamos refletir para onde a mídia hegemônica está querendo nos mudar? Ou somos nós que decidimos para onde devemos ir? As redes sociais devem continuar sendo o espaço em que esse diálogo se instrui e se constrói. É por isso que escrevo este texto. Como uma janela ao diálogo. E um ponto para reflexão.
Pois é o esvaziamento ideológico do discurso do inconformismo que me preocupa. Dentro desse slogan vazio “muda Brasil” – que a grande mídia quer inserir nas reivindicações legítimas populares – cabe tudo. É uma espécie de Royal Straight Flush retórico. A partir dele parece que o jogo está ganho. Mas quem é o dono das cartas? Portanto, uma estratégia que pode estar sendo usada não inclui mais nem reprimir as massas, nem eleger uma ou outra causa, como um moralismo seletivo. Trata-se também de defender todas as causas! A partir daí, forma-se o clima de desassossego, de insatisfação com “tudo-o-que-está-aí”. Manipula-se o medo e a insatisfação. E em determinadas situações o medo é mais perigoso do que a coragem. O medo gera a histeria. O estouro da boiada. Assim, vi gente defendendo até a deposição forçada da Presidente da República, legitimamente eleita, sem fundamento concreto nenhum. Defender isso é defender golpe, cara-pálida. Em 1964 foi assim.
Muito bacana ver o povo nas ruas. Já fui Cara-Pintada. É o poder Potentia. Mas um alerta. É preciso pontuar o que se está defendendo. Há, pelo que entendi, uma pauta de direitos sociais, que inclui a melhoria dos transportes públicos, o direito de reunião, a liberdade de expressão e de manifestação. Isso é ter uma referência. O que a mídia está fazendo parecer é que é um movimento contra “tudo-o-que-está-aí” – sem uma proposta que não seja uma mera “mudança”. E tem gente comprando a ideia. Isso, para mim, é perigoso para a democracia. Cria-se um encobrimento das questões sociais e se perde a referência e a contextualização do que se quer, efetivamente, alcançar.
Ora, o ser contra o “tudo-o-que-está-aí” não leva a nada porque não é propositivo. Sendo mais claro: a melhor forma de dispersar um movimento que tem uma causa é dar a ele todas as causas... Vira niilismo. A negação total. E toda negação é infantilizadora e destruidora. A negação total é a pulsão de morte, diria Freud.
Tem um quê de manipulável em toda insuflação, em todo ato de paixão – em que não há espaço para reflexão. Não há espaço para uma pauta de reivindicações e nem para um diálogo democrático onde está instaurada a histeria. Foi assim que ocorreu com a revolução francesa. Muito sangue derramado da plebe para, ao final, trocarem-se apenas os senhores: do aristocrata para o burguês. Precisamos estar atentos para que as massas não virem, no final, massa de manobra de interesses que não são delas.
Há algo de novo no ar. Algo positivo. Uma tomada de consciência do que seja cidadania e democracia. De que o povo é o poder Potentia (a legitimidade, o poder difuso no povo, do § único do art. 1º da Constituição) e que todo poder Potestas (materializado nas autoridades que o representam) só é legítimo quando obedece ao poder difuso na comunidade. Todo poder institucional é, assim, um Poder Obedencial. Mas que estejamos alertas de que não podemos permitir que: a) se manipule e se desvie das verdadeiras reivindicações sociais e concretas; ou, mais grave, b) que se mande nossa democracia para o espaço em nome de uma “mudança” cuja direção não se sabe qual é. Feito esse alerta, viva ao “Gigante da Calçada”!

*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

Comentários

  1. conheci seu site pelo link do (excelente) blog do professor (e juiz) Alexandre Morais da Rosa. Parabéns pelo texto de grande erudição.
    Meu comentario é que os jovens manifestantes não conhecem o suficiente sobre a causa de sua situação econômica precária para direcionar sua insatisfação. A inflação monetária (aumento de passagens) foi o estopim para a ação mas apenas com um efetivo estudo de economia seriam eles capazes de identificar as correções a serem feitas nos incentivos e regulações que influem na alocação dos recursos economicos escassos tanto em cada uma das atividades quanto ao longo do tempo... Culpar os gastos com os estadios pela inflação não deixa de ter fundamento mas é uma decisão difícil de ser alterada (a copa) nesse momento. Pessoalmente creio em defesa da concorrência e maior separação entre o publico o privado. Falta aos manifestantes apontar correções oportunas para os rumos da economia, que, s.m.j esta sendo conduzida de forma imediatista a muito tempo...

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  2. Prezado Rosivaldo, há quem aponte 5 causas para as manifestações. Uma delas seria a não aprovação da PEC 37 (PEC da Impunidade). Ver http://www.youtube.com/watch?v=v5iSn76I2xs

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    1. Olá, Paulo. Assisti ao vídeo. Muito obrigado.
      Vamos lá.
      A Democracia pressupõe o respeito às regras do jogo democrático. Me pautarei com base nisso. Vejamos cada uma delas.
      1. Não à PEC 37. Concordo. Não há democracia e Estado de Direito sem uma fiscalização independente. E não existe o "Poder Policial" tal como querem criar. Não pode existir monopólio de investigação como quer a PEC 37.
      em 2. Saída imediata de Renan Calheiros do Senado. É golpe. Depor vai contra as regras do jogo democrático. Ele foi democraticamente eleito. Não pode ser retirado sem o devido processo legal.
      3. Imediata investigação e punição de irregularidade nas obras da Copa pela Polícia Federal e MP Federal. Só concordo se for com respeito ao devido processo legal.
      4. Corrupção no Congresso Crime Hediondo. é ingênuo acreditar que isso resolve. O que resolve não é a quantidade da pena, mas a certeza da punição. O certo é investir as energias numa reforma política que proíba o financiamento por corporações. Financiamento público e paritário.
      5. Fim do foro privilegiado. Assino embaixo!

      Minha preocupação é das massas serem pautadas pela mídia por meio de um discurso moralista contra a corrupção, como se ela fosse recente e atávica a apenas um determinado partido político - o que termina sendo a conclusão subliminar.

      Abraço.

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    2. Rosivaldo, excelente análise!

      Realmente toda a discussão relacionada à corrupção reconduz à necessidade de se debater, com seriedade, o financiamento de campanha. Adiro integralmente.

      Faço uma ponderação quanto a outro ponto.
      A hediondez da corrupção significaria um interessante temperamento a um direito penal que ideologicamente se concentra nos crimes contra o patrimônio individual, olvidando a violência simbólica que emana dos colarinhos brancos.

      Só vejo um problema: culturalmente se esquece da figura do corruptor, tão nocivo quanto o agente corrompido.
      E é nesse esquecimento que, segundo penso, se forja todo o discurso moralista contra a corrupção.

      Forte abraço.

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  3. Prezado.
    Identifiquei uma falha de princípio no argumento. As manifestações não são "contra tudo". São pró alguns direitos sociais, e identificam algumas causas que, no sentir dos manifestantes, impedem que ditos direitos sejam implementados. Eu listaria rapidamente: a) gastos com a copa; b) gastos dos políticos em altos salários e inúmeras benesses concedidas a eles mesmos; c) inexistência de representação política - os que foram eleitos governam e legislam para interesses próprios, esquecendo-se do povo.
    O apartidarismo que se verifica deixa claro que se está pouco ligando para quem ocupa, ou ocupará o poder. Se os direitos sociais forem transformados em algo real (e não somente "promessas da modernidade") pouco importa se o governo for de direita, esquerda ou centro.
    Cordialmente,

    Ricardo Canan

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  4. Obrigado pelo comentário, Ricardo Canan,

    Mas olha o que eu falei: "Há, pelo que entendi, uma pauta de direitos sociais, que inclui a melhoria dos transportes públicos, o direito de reunião, a liberdade de expressão e de manifestação. Isso é ter uma referência. O que a mídia está fazendo parecer é que é um movimento contra “tudo-o-que-está-aí” – sem uma proposta que não seja uma mera “mudança”. E tem gente comprando a ideia. Isso, para mim, é perigoso para a democracia. Cria-se um encobrimento das questões sociais e se perde a referência e a contextualização do que se quer, efetivamente, alcançar."
    Minha preocupação é com a mídia querendo pautar as massas. E as massas não são politizadas, infelizmente. É com um misto de admiração e receio que enxergo o que está havendo. Essa energia precisa ser canalizada para algo construtivo e dentro das regras do jogo democrático. Nada de deposição de governantes à força. Isso é golpe. A resposta tem que dada nas urnas. E o recado está dado agora. Todos os políticos, todos, acredito, estão, de certa forma, apreensivos. Mesmo os da oposição nacional que, inicialmente, comemoraram a chance de uma virada de mesa. O medo deles é que nos politizemos. Politizar-se não é exigir, como alguns estão fazendo, a deposição dos governantes, isto é, fora do devido processo legal ou o fim da corrupção. Ela não acaba com gritos. Ela diminui a partir de uma reforma política que bloqueie o abuso do poder econômico nas eleições. Aí, o político vai ter que ser eleito com base em uma plataforma real, e não por meio da compra da cadeira representativa, como temos hoje, uma verdadeira democracia delegativa. O assunto é longo. Na minha opinião, seria um começo. No mais, vira argumento circunstancial.

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    1. Como dar resposta nas urnas quando o que ainda podemos fazer é optar pelo "menos ruim" ?

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    2. "A resposta tem que dada nas urnas."
      Como a resposta tem que ser dada nas urnas se o máximo que podemos fazer é optar pelo "menos ruim"?

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  5. Tinha algo em minha mente sobre os últimos acontecimentos e manifestações no Brasil, mas me sentia isolada no meu posicionamento e assim, não soube exteriorizá-lo. Já o senhor, dr., parece que fez transparecer toda a minha opinião, com maestria e clareza que almejo um dia conseguir. Parabéns pelo posicionamento, com o qual concordo plenamente, e pelo texto bem posto.

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  6. Dr. Rosivaldo

    Obrigado pela resposta.

    Tocaste em dois pontos importantes.

    Primeiro, a influência (manipulação) da mídia. Ela existe é real. Na internet é possível encontrar milhares de fotos de cartazes contra o Lula. Mas ninguém na TV os mostra. Gostaria de saber a razão.

    Penso, entretanto, que a mídia já não tem tanta força. A Globo tentou esconder os protestos e fixar a pauta de reivindicações aos preços do transporte público. Teve, entretanto, que render-se e noticiar a coisa por inteiro. As redes sociais foram (e são) o canal de comunicação dos organizadores. A "primavera árabe", em países onde a mídia e totalmente controlada pelo estado (será que aqui também não é?) foi organizada a partir de mensagens de celular.

    As redes sociais podem não politizar, mas transmitiram as informações de forma viral. É um bom começo. Para que o povo fosse para a rua bastou o estopim.

    Segundo, Collor, FHC, Lula e Dilma, todos prometeram a reforma política. Está claro que não virá pela vontade dos parlamentares (que o povo deixou claro que não são "nossos"). Há, nas passeatas, um recado claro, a democracia representativa no Brasil, hoje, foi rechaçada. A tomada dos prédios estatais é emblemática.

    Estaremos a viver o início de um movimento de derrubada do poder? O futuro nos dirá.

    Um forte abraço.

    Ricardo Canan

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