GUIA DE SOBREVIVÊNCIA PARA ESSES DIAS

Martin Luther King Jr. Fonte: Power of Love

No discurso, sempre há um emissor por trás.
O lugar de fala do enunciante sempre importa.
São palavras belas? Falam em amor ou paz?
Mas a boca que o enuncia nunca é morta...
O discurso é o lugar do logro... O que ele faz? 
Esconde a vontade de poder que o subjaz.

Adolf Hitler. Fonte: The Huffington Post

Domingo. Termina Espanha x Nigéria. Faustão abre seu programa dominical. Em tom exaltado, discursa. O auditório, em polvorosa grita, aplaude. Lições de moral e slogans. “O gigante acordou!”. Fala no fim da corrupção e cobra imediata solução de vários problemas sociais, boa parte deles seculares. Mas quem tem senso crítico procura os silêncios do discurso: por que não exigiu a democratização dos meios de comunicação em massa? Botão off. Retomo a leitura de Alfredo Culleton e Fernanda Bragato.

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Tenho percebido, de sexta pra cá, uma mudança de postura muito importante, pelo menos entre várias pessoas com quem tenho relações mais próximas fora e na rede (blog, Facebook, Twitter, email etc.). Gente buscando leituras variadas sobre o que está acontecendo. Isso, por si só, já revela o desejo  de ter consciência política. O desejo de sair da alienação. A busca de um sentido para isso tudo diminui o risco de nos tornarmos massa de manobra. 
A postura crítica, nessa dimensão, é essencial.
Nesse momento, acho importante dizer o seguinte: não existem discursos inocentes”. Nem o meu. Todos carregam com eles suas convicções e interesses, por melhores (ou piores) que sejam, embora nem sempre manifestados expressamente. Claro que há pessoas que desejam o poder para si próprios e outras para fins éticos, pensando nos outros também. Mas quem fala, fala algo para convencer, para exercer poder, isto é, fazer valer o seu ponto de vista, sua própria vontade, numa relação social.
Uma relação de imposição é sempre mais cômoda de ser mantida quando é disfarçada. Isso evita um confronto de ideias e impede qualquer questionamento sobre sua existência, limites, legitimidade ou efeitos prejudiciais a quem está sendo a parte submetida. 
Por isso, gostaria de me dedicar um pouco aos meios de comunicação em massa. Àqueles que muitos chamam de “imprensa livre” e que, na verdade, pertencem a um pequeno grupo de famílias (aqui). Sob o pretexto de “liberdade de imprensa”, sequestram essa liberdade para si, como se pertencesse somente a eles, mas disfarçados como interesse do povo, como liberdade de imprensa”. São os donos da verdade”, ou seja, os donos da opinião pública(da). 
Por isso não veremos nas pautas editadas dos grandes telejornais e portais de notícia qualquer questionamento sobre a democratização dos meios de comunicação nas manifestações que estão ocorrendo. Trata-se de um discurso interditado desde a origem.
Esse discurso de poder, disfarçado como notícia e como representação da realidade, visa manipular as pessoas. Atua de modo a desarmá-las, já que as “ajudaria” a se informarem sobre o que estaria “acontecendo” na nossa “realidade”. E, assim, muitas vezes exercem mais poder do que o poder oficial (o Estado). 
Toda informação jornalística é fabricada. É uma produção (e não reprodução), desde a escolha do que vai ser (ou não) noticiado, do que será enfatizado e das conclusões que se quer que sejam tiradas
Essas grandes empresas jornalísticas atuam no jogo político-partidário e se protegem de qualquer investida contra os seus interesses. Ou você acha que elas fariam uma reportagem mostrando que a concentração dos meios de comunicação em massa no Brasil é uma das pautas defendidas atualmente pelos manifestantes? Claro que não.
Essas manipulações acontecem no nosso dia-a-dia. E somente conhecendo sua existência poderemos evitar ser arrastados por interesses contrários à democracia, sem que percebamos. Portanto, sempre é bom se questionar e questionar as “verdades” desses discursos. E, assim, podemos despertar e abrir os olhos para vermos onde (ou em quem) estamos pisando ou se estamos sendo pisoteados. 
Só com isso podemos de perceber o caminho que estamos trilhando e para onde certos discursos querem nos levar. Isso significa amadurecer politicamente.
Você, queira ou não, interfere nesse processo quando age ou se omite. Toda conduta (ação ou omissão) de um cidadão – diante de um fato social – é política. Se seu interesse é puramente individual e egoísta ou se é de respeito ao outro como igual, trata-se de uma decisão ética sua. Mas, pelo menos, saberá que tem responsabilidade nesse processo todo. 
E nesse plano, a atitude correta é ser cético. E o ceticismo tem por característica nunca aceitar as verdades que estão sendo vendidas por aí sem questionamento. A postura cética percebe que todo discurso parte de um determinado lugar de fala” e visa algo.



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Muita presunção de minha parte dar a esse texto o título de “Guia de Sobrevivência para Esses Dias”? Pode ser. Mas eu consegui fazê-lo chegar até aqui, mesmo tendo sido honesto, alertando que estou tentando exercer o poder por meio do discurso. Lembre-se que, ao se deparar com outros textos (escrito, reportagem, diálogo etc) nos quais o emissor omite isso, pode ser que ele tenha outros interesses escondidos em meios às palavras e, principalmente, em meio aos seus silêncios. Interesses nada louváveis para nossa democracia e para o seu futuro também. Muitas vezes o que não é dito é, exatamente, o que mais importa. 
Assim, nesses tempos de manifestações, procure fazer leituras variadas, tanto de direita quanto de esquerda. Questione qual a intenção do emissor do discurso. Esse é o ponto de partida de uma postura de senso crítico. E nesse momento, quanto mais informação crítica, melhor. Liberdade é saber que sempre existe um outro lado. 


*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

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Comentários

  1. Parabéns Dr. Rosivaldo,

    Talvez a única forma de se pautar nesse dias seria a total ausência de qualquer pauta pessoal.

    Seria focar exclusivamente no outro. Foi impressionante ver milhares de pessoas, com bandeiras e sem bandeiras, com cores e sem cores... passando por um mendigo embrulhado em trapos na fria calçada da paulista. Como se fosse apenas um invisível, ou um adereço da urbis.

    Vi com meus olhos...

    Mas acredito que se nos esforçamos para observamos tudo com atenção, poderemos captar todas as mensagens.

    Muito obrigado pela advertência da mídia.

    Abraços,
    Rafael

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  2. Rosivaldo, análise absolutamente lúcida.

    Tem uma frase que vem a calhar quando o assunto é a concentração dos meios de comunicação: "Ditadura é quando você manda em mim. Democracia é quando eu mando em você".

    Abs.

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  3. sobre a parcialidade da imprensa Noam Chomsky detalhou cinco filtros pelos quais a informação tinha que passar para chegar ao leitor da grande mídia; aqui esta parte do que ele disse em tradução (ruim é claro) do google:
    Ao explicar o primeiro filtro, a propriedade, ele observa que a maioria das grandes empresas de mídia são de propriedade de grandes corporações. O segundo, financiamento, observa que as saídas de derivar a maior parte do seu financiamento a partir de publicidade, não leitores. Assim, uma vez que são empresas com fins lucrativos que vendem um produto - os leitores e público - para outras empresas (anunciantes), o modelo espera que publicar notícias que reflete os desejos e valores dessas empresas. Além disso, os meios de comunicação são dependentes de instituições governamentais e grandes empresas com fortes preconceitos como fontes (o terceiro filtro) para grande parte de suas informações. Flak, o quarto filtro, refere-se aos vários grupos de pressão que atacam a mídia por suposto viés. Normas, o quinto filtro, referem-se às concepções comuns compartilhados por aqueles que a profissão de jornalismo

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  4. Não nos conhecemos, mas por meio do link do professor Stenio cheguei ao seu.... parabéns pelo texto... como o mundo seria outro se as pessoas soubessem só aquele trecho básico : que todo discurso carrega um interesse ! boa sorte na divulgação !

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  5. Encotrei um exemplo e tanto para o texto:
    Pouco tempo depois de duas bombas atômicas aniquilarem Hiroshima e Nagasaki, o "New York Times" publicou em sua primeira página um artigo que afirmava que a radioatividade proveniente das explosões nucleares era "uma mentira da propaganda japonesa".

    O texto foi assinado pelo redator de temas científicos William L. Laurence (1888-1977). A revelação rendeu a Laurence o Pulitzer. Ele também recebia dois salários --um do jornal norte-americano, outro do orçamento militar dos EUA.

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