Então é Natal... do Capital!




Período natalino. Viajo para proferir uma palestra. Problemas de última hora fizeram a organização do evento contatar um táxi para fazer o transfer até o local do simpósio. Ao sairmos, o taxímetro é posto na bandeira dois. Embora o custo da corrida fosse arcado pela organização, questionei:
- Amigo, por que é bandeira 2?
- Porque é período natalino.
Isso me remeteu a outro fato, ocorrido em Porto Alegre uma semana antes. Prestes a retornar a Natal após mais de um ano morando fora, passei em uma chocolateria. Minha intenção: atender ao pedido de levar uma caixa com os famosos “chocolates de Gramado” para os servidores da Vara da qual sou titular. Perguntei, então, ao vendedor da loja:
- Tem desconto à vista?
- Não no Natal.
O mercado raptou o Natal do cristianismo
O Natal, que hoje ainda é relacionado em boa medida com o cristianismo, tem, na verdade, origem pagã. Identificava-se com o solstício de inverno, que no hemisfério norte ocorre em dezembro. A celebração visava pedir à natureza que trouxesse o sol de volta no momento mais difícil de sobrevivência na fria – e em boa parte nevada – Europa.
A relação com o nascimento de Jesus Cristo é fruto de sincronismo religioso. No império de Constantino (século IV), quando Roma oficializou o cristianismo, fixou-se o dia 25 de dezembro como suposta data do nascimento de Jesus e o significado do festejo do solstício de inverno foi mudado para o de Natal. Mas o capital raptou o Natal do cristianismo. Explicarei.
Ainda dentro da tradição cristã, a entrega de presentes rememora os Reis Magos que presentearam o recém-nascido Jesus. Porém, o ato de dar presentes indistintamente (e não só às crianças) assumiu seu lugar de destaque dentro da sociedade de consumo, a ponto de agora ultrapassar a dimensão religiosa cristã.

Feliz Coca-Cola!
Muitos hoje vinculam o Natal à figura do Papai Noel sem saber que há não muito tempo o presépio era o grande símbolo do Natal. Mas hoje nas propagandas comerciais só aparece o “Bom Velhinho”. Aliás, a imagem do Noel de hoje também é recente. Até o século XIX, as representações de Papai Noel (que remontam a São Nicolau) vestiam trajes marrom ou verde. O cartunista Thomas Nast criou a versão de um velho de barba vestindo roupa em vermelho e branco e com um cinto preto, em meados do século XIX. Mas foi na década de 1930 que a Coca-Cola, para estimular as vendas do refrigerante, pois caíam na época natalina, criou uma campanha publicitária que aprimorou o modelo de Nast e difundiu a imagem que temos hoje: a de um velhinho de olhos azuis, sorridente, rechonchudo e bonachão – sempre em trajes aliados às cores da marca.
Por sinal, a reprodução massiva da figura do Papai Noel em pesados trajes e em seu trenó de neve em pleno verão brasileiro, revela-o não como representação do nascimento de Jesus, mas como ícone do modelo consumista eurocêntrico e da nossa condição de colônia cultural.
Presente: o preço do amor?
Volto à corrida de táxi. Da janela do veículo eu assistia à noite luminosa da cidade enfeitada de vermelho e branco, de luzes piscando e outdoors incentivando o consumo. E, claro, a figura do Noel sempre presente. Presente(ie)! O Natal é para ser consumido até o último centavo do décimo terceiro. E sempre há, claro, uma financeira generosa disposta a lhe presentear com empréstimos rápidos, mas cuja conta será paga por um longo tempo e a custos altíssimos.
Por trás do Natal também se encobrem as contradições da sociedade e da economia de Mercado. No mesmo instante em que tanto se fala em solidariedade, fraternidade e caridade, mais ocorre a exploração da fragilidade alheia. É a hora em que a ganância de alguns aproveita os corações amolecidos e as carteiras abertas de outros. Resultado: sem dó e piedade – dois sentimentos tão pretensamente cristãos e natalinos –, aumentam-se os preços de todos os produtos e serviços. É época de celebrar a morte dos descontos. Viva o lucro.
No Natal, a carga de trabalho crucifica os trabalhadores subalternos. Os horários no comércio em geral são estendidos, e os dias de descanso esquecidos. Tudo em nome dos interesses do mercado. E, claro, em uma cultura na qual o ter substitui o ser e o afeto é substituído por bens materiais, a conclusão é fácil: quanto mais presentes, mais amor. E o valor deles passa a regular, em certa medida, o tamanho do sentimento. O amor passa a ser mediado financeiramente.
O caridoso sazonal
A caridade para com os que sofrem também é símbolo do Natal. Até mesmo uma leitura cético-filosófica do Novo Testamento reconhece a caridade como um dos maiores ideais da figura de Jesus Cristo. A narrativa bíblica o revela, acima de tudo, como um pensador revolucionário que fazia da caridade uma prática social de redistribuição da riqueza. A solidariedade – de reconhecimento do outro como igual em direitos e em dignidade – é um dos pilares do seu pensamento.
Mas para alguns, em meio a uma sociedade marcada pela extrema desigualdade e cegueira para o sofrimento do outro, ocorre, tão somente, uma trégua natalina. Por alguns dias, os insensíveis veem os invisíveis sociais como seres humanos e não mais como coisas incômodas ou desagradáveis. É hora, também, da caridade hipócrita. Embora melhor do que caridade nenhuma, a caridade hipócrita é aquela que não sai do coração, mas sim do fundo do armário, das roupas da estação passada. É o ato que, internamente, nada sacrifica. É, antes de tudo, desfazer-se do lixo, do inútil. Do que não mais se quer ou se tem onde guardar, até porque é preciso espaço para os novos presentes natalinos da sociedade de consumo.
Natal versus Deus Mercado
Essa caridade sazonal natalina é também comumente realizada como bondade aos “inferiores” e tem seu lado sombrio: o encobrimento da falta de solidariedade durante o resto do ano... até a próxima trégua de Natal. Essa caridade dá com uma mão – a esmola – e tira com a outra – a aceitação das desigualdades como inevitável ou até salutar, afinal, “os melhores vencem”. E o discurso sai fácil quando se está do lado dos “vencedores” e do Deus Mercado.
Para o caridoso sazonal, o indigente, aquele mesmo que no mês anterior só era notado quando sujava visualmente a cidade, passa a ser alvo de uma compaixão temporária. Pelo menos até o Dia de Reis (para alguns, nem isso). Essa caridade oportunista abre espaço para o discurso da naturalização da desigualdade social. Cai bem para os que veem os empobrecidos como inferiores. Afinal, não obtiveram sucesso por inaptidão pessoal. No Natal, os “bons”, os “superiores”, ajudam – até para reforçar a ideia de sua pretensa bondade e compensar a eventual culpa pelo individualismo do resto do ano.
Encobre-se o fato de que a inferiorização não é circunstancial e pessoal, mas que é decorrente de um modo de produção que gera relações desiguais de poder – que cria vítimas e é genocida. A prática do ato caritativo só no Natal impede a reflexão de que as relações sociais devem ser de equilíbrio e não de imposição e de que a solidariedade deveria ser praticada todos os dias.
Aliás, para o caridoso sazonal deve ser difícil ser cristão. Ainda mais no Natal. Pois como reverenciar a figura daquele que – dentro da tradição ocidental – talvez tenha sido a primeira grande figura a pensar, difundir e praticar o comunismo e os direitos humanos como razão de vida?


*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD


GOSTOU? COMPARTILHE!


Insira seu email para receber as atualizações do blog automaticamente


Comentários

Postar um comentário

IDENTIFIQUE-SE E FIQUE À VONTADE PARA COMENTAR. SOMENTE COMENTÁRIOS ANÔNIMOS NÃO SERÃO ACEITOS.