Os ecos da barbárie racista estavam no supermercado

Imagem. Fonte: Blog Cláudio Carvalhaes


Ontem, fui a um supermercado em Porto Alegre. Na hora de passar as mercadorias, dirigi-me ao segundo guichê. A moça que estava no caixa, uma jovem negra, sorriu-me e me cumprimentou. Ao seu lado, um jovem mulato fazia as vezes de empacotador.
Como tenho quase um metro e noventa, vi, por sobre a jovem, os sucessivos caixas do supermercado. Vinte ao todo. A moça do caixa seguinte parecia com ela. Afrodescendente. Cabelo crespo e preso por frisos. O quarto caixa, um rapaz, também era afrodescendente. Foi então que me dei conta de que, a perder de vista, todos os caixas ou embaladores eram negros ou pardos. Ao meu lado, esperando para ser atendida, uma senhora de olhos ternamente idosos. Azuis. Atrás dela, uma esportista loira e sua bandeja de iogurte grego light. Passei a verificar os clientes das demais filas. Uma maioria esmagadora de brancos. Nenhum negro.
Saí com os sacos de compras à mão. Olhos atentos até o carro. No balcão da gerência, um homem branco de meia idade. Mas os dois vigias aos seu lado eram mulatos. No penúltimo caixa fui ver a única atendente branca. Pequenina, parecia se esconder nos imensos óculos de grau. Na saída do supermercado, sentados às mesas de um café, idosos conversando. Poderiam, muito bem, estar sentados à margem do Danúbio. Diríamos: “são todos austríacos”.
Ao chegar ao estacionamento, um jovem negro empurrava, ao sol do verão e com dificuldade, uma fila com uns vinte carrinhos de supermercado.
De repente, olhei-me. Um incômodo. A desigualdade racial, diluída no dia-a-dia, de repente pareceu tão clara. Imaginei o que ela me diria:
- Estou aqui. Estou nas práticas sociais! Nessas horas eu salto e grito!
A desigualdade racial é estrutural e se reproduz. Tal reprodução existe não porque há uma superioridade de uma etnia sobre a outra, mas devido a inferiorização histórica dos negros e dos índios. Há, por trás, um longo e tormentoso processo histórico em marcha. O que eu estava vendo no supermercado eram só os ecos da invasão da cultura eurocêntrica que, à força, como bárbara que era, oprimiu outros povos, outras etnias e outras culturas.
A mesma desumana cultura que invadiu estas terras e oprimiu os nativos brasileiros foi capaz de comprar – como se mercadoria fosse – seres humanos de etnia negra. Teve a audácia de subjugá-los e explorá-los, trazendo-os acorrentados para cá. (Re)negou-lhes o tratamento humanitário mais básico: o de serem tratados como iguais em dignidade. Aos negros escravizados foram (so)negando por várias gerações direitos tão elementares como o de ser alfabetizado ou até mesmo de usar calçados.
Mas o processo de inferiorização não parou por aí. Quando libertados formalmente da escravidão, os negros continuaram materialmente presos aos grilhões da miséria, pois lhes foi dado tratamento discriminatório em relação ao europeu. Ao contrário dos imigrantes italianos, japoneses e alemães, ao negro foi proibida a doação de glebas pelo governo, de ajuda de custo ou de qualquer subvenção ou incentivo econômico. Já era a colonialidade do poder ecoando, reproduzindo-se enquanto racismo. Assim, como denunciado por Sartre, essa racismo eurocêntrico – que somente foi alvo de escárnio quando provocou o holocausto dentro de suas próprias fronteiras – há séculos vinha sendo posto em reprodução aqui. E até hoje sem igual reconhecimento ou reparação.
O supermercado era apenas um microssistema que espelhava com extrema similitude uma totalidade milhões de vezes maior. O eco da barbárie europeia se faz ainda presente na sociedade brasileira, está apenas naturalizado. As senzalas viraram favelas, o escravo/servo virou subalterno ou indigente, tudo encoberto pela cotidianidade. E como diz Heidegger, não há nada mais distante de nós, na cotidianidade, do que nossos óculos.
E esse mesmo eco ressoa nos discursos que rejeitam cotas raciais sob os mais diversos argumentos, desde que obstruam o reposicionamento das etnias de maneira menos desigual na nossa sociedade. E são discursos que ferem a Constituição do Brasil em diversas passagens.
Se a nossa geração não der início ao resgate histórico dessa dívida, qual a fará? Trata-se de uma ética intergeracional. A etnia branca precisa assumir suas responsabilidades porque, conjunturalmente, auferiu – enquanto coletividade – vantagens competitivas em razão da desigualdade racial. Não é constitucionalmente e nem eticamente sustentável se escudar no individualismo egoísta e desprovido de consciência histórica.
Conjunturalmente e dentro de um processo histórico que mantém a corrente de injustiça que não se rompeu, a coletividade branca brasileira ocupa os postos mais elevados nos estratos sociais porque já nasceu em vantagem. Essa vantagem foi e continua sendo fruto da reprodução de uma superioridade econômica, intelectual e política de uma etnia sobre outras, séculos a fio. Vai ecoando.
Disse certa vez John Kennedy, “Às vezes é preciso parar e olhar para longe, para podermos enxergar o que está diante de nós”. Outras vezes, acrescento, é preciso olhar para o que está tão perto que não enxergamos, como na metáfora de Heidegger, para podermos enxergar longe.
Você pode até achar que foi tolice o que escrevi. “É assim mesmo e não vai mudar. E, afinal, porque se preocupar com tudo isso?” Ademais, eu não sou nenhum daqueles caixas, empacotadores ou vigias... Mas eles são. E se fossemos nós, o que pensaríamos de uma opinião dessas?
Na próxima vez que for a um supermercado, preste atenção. É preciso estancar o racismo, interromper esse vergonhoso e secular eco que é a desigualdade racial. O basta exige se colocar no lugar da outra coletividade. Por sinal, o eco precisa de um espaço vazio e de um obstáculo distante no qual possa reverberar. O eco da barbárie e do racismo também. Onde está o vazio? Onde está o distanciamento?

 

*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD


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Comentários

  1. Rosivaldo, sei que dificilmente vc vai liberar este comentário, mas seu texto me fez lembrar uma canção de Rogério Skylab, que, em forma de poesia e sátira, diz talvez o mesmo que o artigo. Feliz natal. Aqui vai o link: http://www.youtube.com/watch?v=-KpfpUxj8KA

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  2. Caro Rosivaldo, a nossa sociedade está de olhos vendados para a escravidão que não acabou. Todos os dias me deparo com situações semelhantes com as quais você relatou, são faxineiras, seguranças. Como sou militar do exército, olho para os jovens que estão prestando o serviço militar e me deparo com negros e pardos, como eu. Os cidadãos que vão para os cursos de formação de oficiais temporários, CPOR e NPOR, são todos de origem abastada e em sua esmagadora maioria, brancos. Estes últimos têm a possibilidade de "engajar" e receber um soldo superior a cinco mil reais, enquanto os primeiros concorrem a vencimentos com valores cinco vezes menor. Não é minha intenção criar uma guerra étnica, mas temos que lutar pela oportunidade que deve ser dada a todos, indistintamente.

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    1. Sobre o artigo de um Juiz de Natal/RN que desconhecia assunto que escreveu sobre racismo no RS:

      Caro Dr. Rosivaldo Toscano. Não lhe conheço. Apenas hoje vi comentários a seu respeito. Parece ser um bom homem, dedicado a uma causa nobre de proteção aos mais fracos na sociedade. Mas não posso de forma alguma concordar com seu artigo sobre os negros trabalhando em um supermercado em Porto Alegre. V Exa não sabe, ou ao menos transparece não saber que o Estado do Rio Grande do Sul é o Estado que mais respeitou os negros no Brasil desde o império. Tivemos aqui governador negro, Alceu Collares. A primeira Mis Brasil negra Deyse Nunes. Desembargadores negros Sejalmo Santos e outros. O primeiro jogador negro do Brasil, Tesourinha. E segundo o IBGE temos o maior número de casas de religião afro do Brasil. Maior do que a falada Bahia, que jamais teve um governador negro ou um negro expoente social. Temos aqui no dia 20 de setembro todos os anos um desfile sobre a revolução Farroupilha, onde negros são homenageados com muita emoção e gratidão. Na revolução tiveram um esquadrão chamado de " lanceiros negros" até hoje idolatrados por aqui. Músicas nativistas homenageando os negros e as belas e guerreiras negras tocam nas rádios todos os dias. Grandes artistas nativistas cantam os negros todos os dias exaltando suas virtudes. V. Exa tem conhecer mais o Estado do RGS e informar-se mais antes de escrever e irradiar um ódio inexistente entre as raças. Por aqui um supermercado ( rede Zaffari/Bourbon ) foi acionado certa vez pelo movimento negro porque tinha poucos caixas e empacotadores negros e muitos caixas e empacotadores brancos. Foi obrigado a contratar mais caixas negros e pardos. Portanto seu artigo não reflete a verdade sob hipótese alguma. Antes que diga que sou mais um branco conformado e favorecido pela raça clara, digo-lhe que sou afrodescendente de mãe negra e pai branco. Tenho irmão negros ( muito negros mesmo ) e irmãos brancos. Sempre fomos pobres mas estudamos e vencemos. O sucesso independe de cor, raça ou religião. Parem de plantar a discórdia entre as raças. Querem o quê ? Uma revolução, uma matança? Uma briga de classes sociais ? Quem tem o estudo que o senhor tem e o estudo e conhecimento que eu tenho, não pode ficar divagando e fomentando a discórdia racial. Por aqui vivemos e convivemos em plena harmonia, com oportunidades iguais para todos que querem melhorar. Se assim não fosse eu não seria um advogado por aqui bastante conhecido, pois vim de família muito pobre e afrodescendente. Se duvidar mando-lhe minha carteira de identidade ( está escrito cor parda ) e da minha falecida mãe. Esclareço que por aqui temos um exército de brancos na extrema pobreza, assim com temos negros em dificuldades, mas com uma vida digna. Pobre que não se esforça não sai da pobreza, esta é a questão. O resto é conversa fiada de ONGs e instituições desonestas que se locupletam com dinheiro público, causando ainda mais pobreza.

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    2. Olá, Leandro. Não é um artigo sobre racismo no Rio Grande do Sul. Talvez sua leitura tenha sido um tanto quanto emotiva. Poderia ser em qualquer outra cidade brasileira. Por acaso, eu estava em Porto Alegre. Poderia ser em Londres. Recomendo ler o texto sem espírito defensivo e sem bairrismos. Abraços.

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  3. Caro Dr. Rosivaldo Toscano. Não lhe conheço. Apenas hoje vi comentários a seu respeito. Parece ser um bom homem, dedicado a uma causa nobre de proteção aos mais fracos na sociedade. Mas não posso de forma alguma concordar com seu artigo sobre os negros trabalhando em um supermercado em Porto Alegre. V Exa não sabe, ou ao menos transparece não saber que o Estado do Rio Grande do Sul é o Estado que mais respeitou os negros no Brasil desde o império. Tivemos aqui governador negro, Alceu Collares. A primeira Mis Brasil negra Deyse Nunes. Desembargadores negros Sejalmo Santos e outros. O primeiro jogador negro do Brasil, Tesourinha. E segundo o IBGE temos o maior número de casas de religião afro do Brasil. Maior do que a falada Bahia, que jamais teve um governador negro ou um negro expoente social. Temos aqui no dia 20 de setembro todos os anos um desfile sobre a revolução Farroupilha, onde negros são homenageados com muita emoção e gratidão. Na revolução tiveram um esquadrão chamado de " lanceiros negros" até hoje idolatrados por aqui. Músicas nativistas homenageando os negros e as belas e guerreiras negras tocam nas rádios todos os dias. Grandes artistas nativistas cantam os negros todos os dias exaltando suas virtudes. V. Exa tem conhecer mais o Estado do RGS e informar-se mais antes de escrever e irradiar um ódio inexistente entre as raças. Por aqui um supermercado ( rede Zaffari/Bourbon ) foi acionado certa vez pelo movimento negro porque tinha poucos caixas e empacotadores negros e muitos caixas e empacotadores brancos. Foi obrigado a contratar mais caixas negros e pardos. Portanto seu artigo não reflete a verdade sob hipótese alguma. Antes que diga que sou mais um branco conformado e favorecido pela raça clara, digo-lhe que sou afrodescendente de mãe negra e pai branco. Tenho irmão negros ( muito negros mesmo ) e irmãos brancos. Sempre fomos pobres mas estudamos e vencemos. O sucesso independe de cor, raça ou religião. Parem de plantar a discórdia entre as raças. Querem o quê ? Uma revolução, uma matança? Uma briga de classes sociais ? Quem tem o estudo que o senhor tem e o estudo e conhecimento que eu tenho, não pode ficar divagando e fomentando a discórdia racial. Por aqui vivemos e convivemos em plena harmonia, com oportunidades iguais para todos que querem melhorar. Se assim não fosse eu não seria um advogado por aqui bastante conhecido, pois vim de família muito pobre e afrodescendente. Se duvidar mando-lhe minha carteira de identidade ( está escrito cor parda ) e da minha falecida mãe. Esclareço que por aqui temos um exército de brancos na extrema pobreza, assim com temos negros em dificuldades, mas com uma vida digna. Pobre que não se esforça não sai da pobreza, esta é a questão. O resto é conversa fiada de ONGs e instituições desonestas que se locupletam com dinheiro público, causando ainda mais pobreza.

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