Reincidente sem pena decente?


O ponto cego

Um amigo me questionou sobre o porquê de não aplicar a reincidência, pois seguindo ele, a responsabilidade individual não deve ser desconsiderada, atribuindo-se somente ao sistema. Um outro apontou que o STF já reconheceu a constitucionalidade da reincidência, entendendo que ela não constitui dupla punição.
Vencida a questão do bis in idem pelo STF, afirmo que não sou contra a existência da reincidência. E a aplicarei imediatamente, porém, desde que o condenado tenha cumprido a pena da maneira com que a Constituição e os Tratados internacionais ratificados pelo Brasil assim a determinam.
Parece que há um ponto cego que impede muitos atores jurídicos de perceberem que não se pode considerar reincidente a quem não se possibilitou uma pena decente. A pena tem, em nosso sistema normativo (Constituição, Tratados e leis), a função de ressocializar. Há determinações em textos normativos que precisam ser respeitadas para que essa finalidade seja cumprida.
Assim, não posso aplicar a agravante da reincidência sem faticidade, alienadamente, abstraindo toda a perversidade da prática penitenciária brasileira, que se aparta das determinações legais. A degeneração do sistema penitenciário do Brasil é reconhecida não só por mim, como por todos os profissionais na atuam na seara infracional (aqui incluída também a justiça da infância e juventude), bem como de todos os organismos internacionais, governamentais ou não, ligados aos direitos humanos. Não serei conivente com essa realidade e nem assumirei uma postura formalista cega. 
O Brasil ratificou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (Decreto nº 678/1992), que em seu art. 5º, 6, diz que “As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”. Isso nos obriga normativamente. Ocorre que a execução penal no Brasil se materializa de maneira completamente desumana e violadora dos direitos fundamentais mais básicos. Sendo assim, como ela pode ser fundamento para agravar a pena de quem volta a delinquir?
Se a prisão condenatória, da forma com que é executada no Brasil, assemelha-se a tortura ou a tratamento degradante, não estariam as autoridades do Executivo, incluído aí o Ministério Público, Legislativo e, principalmente, Judiciário, em certa medida, participando de uma tortura em massa? Estamos dando um exemplo de civilização ou barbárie? Ficam aqui os questionamentos.
Sequer a lei 7.210/1984, conhecida como a Lei de Execuções Penais – LEP, autoritária, pois gestada ainda durante o regime militar ditatorial, é cumprida, pois o art. 85, determina que o estabelecimento penal deve ter lotação compatível com sua estrutura e finalidade.
O Relatório do CNJ identificou que no Rio Grande do Norte, em 2013, havia 4.757 presos para um total de 2.539 vagas. Isto é, um déficit de 2.174 vagas, o que representa uma superlotação de 188%. Assim, nosso sistema prisional não cumpre esse requisito. Somente em Natal o déficit foi de 1.037 vagas.  E diz o relatório do CNJ, acerca do Complexo Penal João Chaves:
[...] não há sequer banho de sol. A superlotação é um problema sério [...] A unidade semiaberta mais parece um lixão. Lixo por toda a parte. Só não há ratos porque a quantidade de gatos é enorme devido à comida espalhada pelo chão.
Sobre a Cadeia Pública de Natal:
O estabelecimento está com sua capacidade acima do dobro. As celas estão superlotadas, não possuem ventilação e há falta grave de higiene. [...] Mesmo havendo condenados, a unidade não conta com oficinas ou oportunidades para a remição da pena.
Sobre o Centro de Detenção Provisória da Ribeira:
Esta unidade sequer deveria estar em funcionamento. [...] Assemelha-se a uma masmorra posto que escura, úmida e sem ventilação.
Sobre o Centro de Detenção Provisória da Zona Norte: “Assim como nas demais unidades, a superlotação é fator preponderante”.
Sobre a Penitenciária de Parnamirim:
Mesmo que haja superlotação (...) o problema mais sério é o esgoto de dejeto dos presos que corre a céu aberto e é despejado diretamente na nascente de um rio o qual, inclusive, abastece as cidades de Natal e Parnamirim.
A Penitenciária de Alcaçuz:
A maior unidade do estado, mesmo que possua capacidade máxima para 420 presos, conta hoje com 705, quase o dobro de sua capacidade. [...] retrata bem a realidade de todo o sistema prisional do estado. Superlotação, falta de investimento, abandono, celas escuras, fétidas, sem ventilação, lixo espalhado pelos pavilhões, esgoto a céu aberto, falta de assistência material e à saúde, dentre tantas outras carências.
E prossegue o relatório a descrição dantesca da realidade:
[...] Houve uma morte em que um preso, que já matou cinco na unidade, esfaqueou outro preso, decapitou-o e o estripou, espalhando suas vísceras pela cela e ainda comeu parte do fígado da vítima. Uma total selvageria sem controle ou punição.
Sistema ca(os)rcerário potiguar. Sistema?

Vê-se, portanto, que o sistema ca(os)rcerário potiguar viola os mais básicos preceitos de direitos humanos, sem falar na literal do respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios (art. 40 – LEP). 
O art. 41 da LEP, que trata dos direitos dos presos, é violado, pois não há alimentação suficiente e vestuário (inciso I),  atribuição de trabalho e sua remuneração (II), proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação V), exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena (VI), assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa (VII).
Cabe salientar que os presos provisórios se encontram em situação ainda pior.
Viola-se, igualmente, o art. 45, § 2º, que veda o emprego de cela escura. Desrespeita-se, igualmente, o art. 83 da LEP, em seu caput, que impõe aos estabelecimentos penais conter em suas dependências áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva, e ensino profissionalizante.
O preso provisório fica junto do condenado, bem como o preso primário cumpre pena na mesma cela que um reincidente (art. 84 e §§).
O art. 88 da LEP, que trata da penitenciária, onde devem os condenados a regime fechado cumprir suas penas, é violado, pois o condenado não é alojado em cela individual com banheiro. As celas não são salubres, com os “fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana”, exigidos pela lei. Que dizer da área mínima de 6m².
Em termos de controle de convencionalidade, o Pacto de São José da Costa Rica também é violado no respeite à integridade física, psíquica e moral do preso (art. 5º, 1). A situação caracteriza trato cruel, desumano e degradante, sendo tratamento sem o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano (art. 5º, 2).
Por fim, a Constituição da República é flagrantemente afrontada quando determina em seu art. 5º, que “III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; “XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; (...) e) cruéis”; “XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”; “XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Burocracia e barbárie

O cenário bárbaro acima narrado, porém, é francamente desprezado, velado, esquecido ou ignorado no habitus da prática forense criminal. É posto como natural, no ser-no-mundo do juiz submetido ao senso comum teórico. E assim, tal realidade gritante, imersa na cotidianidade, é menosprezada em sua dimensão de violação do Estado Democrático de Direito. O problema da cotidianidade é que ela tem a capacidade de anestesiar, de naturalizar, de embrutecer. Como diz Heidegger, não há nada mais distante de nós, na cotidianidade, do que... nossos óculos.  O juiz preso na cotidianidade, no dia-a-dia, perde o referencial da normatividade e da necessária atribuição de sentido dos textos legais aos casos concretos e à realidade social que o atravessa. E assim, promotores de justiça pedem e magistrados aplicam a agravante da reincidência, desconsiderando a flagrante inconstitucionalidade do seu fundamento, no caso, da pena anterior que o reincidente cumpriu ou está cumprindo, que viola os requisitos mais básicos para que pudesse ser considerada “cumprimento de pena reeducadora”, nos termos que os textos normativos exigem.
Uma explicação, talvez, esteja no fato de que as responsabilidades legais e éticas individuais terminam por se diluir nas Corporações que formam o Judiciário e o Ministério Público, em que cada ser humano se funcionaliza, transforma-se em uma espécie engrenagem dentro da grande máquina. Assim como Hannah Arendt aponta em Eichmann in Jerusalem, é o espaço da burocracia que desumaniza o homem e dessignifica a barbárie.

* Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito no RN e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

Comentários

  1. Um brilhante texto, que trata da realidade carcerária do nosso estado e do país e com sólidos argumentos deixa evidente a inconstitucionalidade da aplicação do instituto da reicidência. Parabéns grande mestre, é um privilegio conhecer a ciência do direito usando como suporte acadêmico textos tão esclarecedores, uma verdadeira aula de direito.

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  2. Caro Rosivaldo, seu blog é muito bom. Interessantíssimo.
    No entanto, neste caso da reincidência, fico com uma certa dúvida dogmática. Como fundamentar a inconstitucionalidade da regra? Seria uma inconstitucionalidade condicionada? Me parece meio esquisito, um improviso.
    Talvez a solução do problema não seja esta, porque de certa forma atinge o direito à segurança social. Talvez a responsabilização criminal, administrativa e civil daqueles que cuidam do sistema penitenciário seja uma resposta mais adequada...
    No mais, parabéns pelos textos!
    abs

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