Muito mais que uma Audiência de Custódia – Por Rosivaldo Toscano Jr.

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É sabido por todos que a banalização das prisões provisórias é um fenômeno há muito ocorrente em nosso país. Sendo assim, no intuito de tratar melhor a questão sob uma ótica de uma Estado de Direito, adveio a lei 12.403, de 2011. A lei surgiu visando reduzir a quantidade de prisões provisórias que até então superlotavam os estabelecimentos prisionais por meio da adoção de medidas alternativas que, cautelarmente, obtivessem os resultados instrumentais buscados por uma tutela processual penal efetiva e que respeite as garantias constitucionais da pessoa investigada ou acusada criminalmente. Mas os resultados foram pífios até agora, apesar do verdadeiro escarcéu e das previsões apocalípticas (aqui) feitas por muitos atores jurídicos quando da promulgação da referida lei.
Os números continuaram altíssimos. E crescendo. Há um ano, já eram 715.655 presos (aqui). Ignorando por completo o princípio constitucional da presunção de inocência, a prática processual penal no Brasil continuou invertendo a ordem no sentido de transformar em regra a prisão antes do cumprimento da pena. Não raro, aqui ocorrem casos nos quais o condenado chega até a passar mais tempo preso provisoriamente do que a pena que a ele lhe é aplicada. Pune-se ex-ante. O pretexto formal é a prisão preventiva. Como anota Zaffaroni,
Desde el punto de vista formal, esto constituye una inversión del sistema penal, pero desde la realidad percibida y descripta por la criminología, se trata de un poder punitivo que desde hace muchas décadas ha preferido operar mediante la prisión preventiva o medida de contención provisoria convertida en definitiva con la práctica. Dicho más claramente: casi todo el poder punitivo latinoamericano se ejerce en forma de medidas, o sea que todo se ha convertido en privación de libertad sin sentencia firme y por presunción de peligrosidad. [1]
Outras vezes, sob o apoio do discurso alarmista e histérico da “guerra contra as drogas”, dependentes químicos em situação de porte para uso de drogas também com frequência passam dias ou até meses trancafiados nas celas superlotadas e insalubres dos cadeiões e das delegacias de polícia por todo Brasil, pois pior do que o sistema penitenciário é o sistema ca(os)rcerário dos que cumprem pena provisória.
Em igual medida, também os condenados posteriormente por tráfico minorado e beneficiados por penas restritivas de direitos, mas que passaram tanto tempo presos que já estariam até em livramento condicional antes mesmo do tempo que provisoriamente passaram detidos.
Essa situação dramática é aliada também ao abuso policial. Missões da ONU que aqui estiveram no Brasil, não só recentemente como também outras vezes em nosso passado,  todas relataram a gravidade e o caráter crônico dos abusos físicos e da tortura pelas polícias e por agentes do sistema carcerário, tudo ocorrendo sob as barbas do Ministério Público, instituição encarregada de velar pelo regime democrático e pelos direitos fundamentais, ente eles o devido processo legal e dignidade da pessoa humana; e do Judiciário, muitas vezes inerte para tutela de direitos fundamentais e tão ativista quando se trata de posturas inquisitivas e de patente expressão de Estado Polícia. Resultado: como já tinha dito na coluna da semana passada (aqui) é mais fácil vermos alguém morrer atingido por um raio do que sendo condenado a tortura no Brasil.
Muito disso é culpa do formalismo. O distanciamento e a burocratização dele decorrentes desumanizam o processo e funcionalizam os homens. O acusado, nessa lógica, deixa de ser parte e se torna objeto do processo, engolido por presunções e pelo imaginário inquisitivo. Dentro da seara da burocracia formalista estatal, os direitos dos flagranteados e, posteriormente, dos acusados, passam a ser empecilhos ao fim grande fim desde antes estabelecido: castigar. Puna-se o homem. O recebimento da denúncia evoluiu: deixou de ser um carimbo de tinta e passou a ser uma folha pré-impressa em impressora a laser. Nada como uma pitada de progresso! Não há faticidade na decisão. Ela fica nas bancadas das escrivanias, com os acusados soltos ou os familiares dos acusados presos clamando informações sobre o andamento dos feitos. Kafka. No gabinete chegam enquanto os números e “fulanos”. Não são ouvidos. São olvidados.
O formalismo, entretanto, é apenas o meio do caminho. A deficiente (ou nula) firmação universitária, pautada pela ênfase mercadológica e acrítica das abordagens, no estilo decoreba, vasilha de conteúdo, dispensa de saberes, na verdade, deforma o estudante. Os deformados ganham as ruas.  Caso praticamente perdido. Melhor assim para as cúpulas, pois o papel de questionador não é bom para estruturas extremamente desiguais e assentadas em discursos míticos. São frágeis. Melhor abafar desde cedo o desvelamento. O senso crítico é a primeira vítima. Formar o gado para depois conduzi-lo à domesticação comportamental.
Assim, de antemão advertimos que não cremos em nenhuma mudança profunda e duradoura no funcionamento do sistema penal e dos seus atores (são eles que o manipulam, quer tenham consciência disso ou não) sem um trabalho educativo e de base. Só ele liberta mais facilmente da Matrix. Mas são válidas todas as tentativas que, pelo menos pontualmente, consigam promover avanços, até para se contrapor à tendência barbarizante do sistema penal. Uma delas é a hoje chamada audiência de custódia.
Seu fundamento normativo está previsto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”, de 1969, promulgado aqui por meio do Decreto nº 678/92.
Aliás, há quatro anos, diante de situações em que vislumbrávamos a possibilidade da concessão da liberdade provisória, mas questões de fato não nos faziam sentir seguros o bastante para pormos em liberdade o flagranteado (dúvidas sobre possível fuga, ameaças a testemunhas ou às vítimas, destruição de provas, insuficiência de dados sobre a pessoa detida ou o endereço dela), isto é, quando o caso ficava numa zona cinzenta entre a concessão da liberdade ou a decretação da prisão preventiva, determinávamos a presença da pessoa detida em flagrante. Fazíamos isso com base no referido Pacto, no seguinte dispositivo, para sermos mais preciso:
Art. 8º (…)                                                                                                                                                              5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Dávamos o nome de “audiência de apresentação”. Fizemos dezenas de audiências dessa natureza. Em muitas dessas audiências conseguimos suprir as deficiências do auto de prisão em flagrante em relação a algum ponto que nos fazia temer pela concessão da liberdade, superando nossas desconfianças. Em outros casos, mantínhamos a prisão ou a convertíamos, isso porque em razão da demora para a escolta trazer o preso, muitas vezes tínhamos que convertê-la antes em preventiva e tornar a audiência a oportunidade de uma reavaliação da prisão.
Recentemente, o atual presidente do Supremo Tribunal federal encampou o projeto das “audiências de custódia”, cujo fundamento é o mesmo. E os objetivos são: a) avaliar com mais segurança a questão do status libertatis da pessoa presa; b) prevenir e punir a prática de abusos físicos.
Se como diz Honoré de Balzac na obra A Estalagem Vermelha, “na raiz de toda grande fortuna existe um crime”, as cadeias estão cheias apenas de pobres. São o Outro da história.  Ou, quando muito (e de maneira extremamente rara) por alguma eventual condenação duplamente oportuna, seja porque serve ao jogo de guerra político-partidário, seja porque serve como bode-expiatório que cumpre o estratégico papel de iludir as massas, fazendo-as crer na ilusória punibilidade dos membros dos estratos próximos do poder financeiro e político (ou dos dois). Os tipos penais não foram feitos para a elite por um motivo simples: foram feitos por ela.
Assim, em uma sociedade extremante cindida, o Outro (o pobre) é um distante, mais difícil de sensibilizar o ator jurídico da sua humanidade, notadamente com o bombardeio diuturno do discurso midiático “homens de bem versus marginais” do qual nenhum promotor de justiça e nenhum juiz deixa de ser, de algum modo, afetado. Não vivemos em bolhas em tempos de uma sociedade de homo videns, no dizer de Giovanni Sartori. A realidade é mediada. Para usar um trocadilho, non est in mídia non est in mondo. Alia-se a isso a baixa formação humana dos atores jurídicos, incluindo os estatais, que passaram pela peneira do decoreba acrítico nos concursos públicos – são suas vítimas também – e se adaptam darwinianamente ao formalismo do ambiente da burocracia. Logo, foram projetadas uma série de objeções às “audiências de custódia”. Algumas, aliás, pertinentes, há que se reconhecer, mas não obstativas de sua efetividade.
Refletiremos sobre algumas delas. deixaremos de lado os argumentos meramente utilitaristas, baseados em alegações de mero “excesso de trabalho”. A estes falta ter lido o básico sobre direitos fundamentais até em um desses manuais de auto-ajuda de direito constitucional para concurso resumido-explicado-dissecado-mastigado.
A primeira objeção real diz respeito à falta de previsão legal. Não obstante estar em um Tratado sobre direitos humanos promulgado aqui, que tem força de texto normativo com hierarquia supralegal, [2] muitos objetores alegam que não há norma processual a respeito. São como o Explicadinho de um antigo programa humorístico. “Gosto das coisas muito bem explicadinhas, nos seus mínimos detalhes!”. Isto é, tem-se um tratado, que é o mais, mas não vale nada sem uma lei, que é o menos. Porque “faltam os detalhes” e não conseguem preencher o sentido.
Outros apontam que falta, por exemplo, uma autorização ou regulamentação do tribunal a que estão vinculados. Certamente não conhecem o controle de convencionalidade ou estão tão presos ao formalismo ou ao discurso da hierarquia funcional que não se sentem capazes ou livres para enunciarem por si mesmos. Isto é, o ator jurídico não cumpre um tratado enquanto não houve um provimento do seu tribunal a respeito. Um ato administrativo (que feriria a reserva de lei federal para legislar sobre processo judicial – art. 22, I, da Constituição da República) supriria um tratado!
Há quem alegue que fere a imparcialidade do juiz ter contato com o preso antes da instrução do processo ou conhecer da matéria. A estes cabem as considerações acima sobre o formalismo e a burocracia. Não compreenderam que na audiência de custódia não se aborda questão de mérito, senão a instrumentalidade da prisão e a incolumidade e a segurança pessoal do flagranteado, quando pairam indícios de maus-tratos ou riscos de vida sobre a pessoa presa. Não é o contato pessoal do juiz com o preso que o contamina. O distanciamento que é contamina de preconceitos, no sentido de conceitos prévios, sem maiores fundamentos. A presença do preso permite avaliar muito melhor o cabimento ou não da prisão. Traz a faticidade.
Há uma terceira objeção. Cremos que essa tem, de certa maneira, respaldo normativo. Ao que parece, no Espirito Santo é o juiz quem está sendo levado ao preso. O Tratado não prevê isso. É claro ao informar que“Art. 8º (…) 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz (…)”“Se Maomé não vai à montanha…” Não! Levar o juiz ao preso não é acesso à Justiça. É violação de disposição normativa. Nenhum utilitarismo pode superar isso.
Uma quarta talvez seja a mais tosca de todas. Seja a de entender que a autoridade policial poderia suprir a presença do preso ao juiz, sob a alegação de que ela cumpriria, no nosso ordenamento, “funções judiciais”. Para tanto, remeto à leitura do texto de Nicolitt, Cleuder e Rodrigues (aqui). Mas em todo caso, somente em caráter suplementar, é bom se ler pelo menos alguma nota de rodapé sobre reserva de jurisdição, indelegabilidade da função judicial e princípio da legalidade. Ou será que é tão difícil diferenciar um juiz de um delegado? Sintoma de quê? Há quem diga que alguns juízes confundem-se na própria atuação sobre que arquétipo seguir: juiz ou policial? Bem, mas esse é um outro assunto, deixemos quieto por enquanto.
Podemos avançar para além da Audiência de Custódia?
Pois bem, vejamos um último argumento que abre portas a um avanço sem retrocessos nas garantias constitucionais. O de que a audiência de custódia fere o princípio da razoável duração do processo. Primeiramente, tal ferimento precisa ser em concreto. Jamais em abstrato. Pois vamos aproveitar o ensejo para explanar aqui o que ocorreu na data de ontem (26 de maio de 2015) na Vara criminal onde atuamos como juiz titular. O fato foi noticiado na mídia local [Portal G1 – (aqui) e na filiada da Globo no RN (aqui)].
Fizemos mais do que uma audiência de custódia. Presente o preso, a Representante do Ministério Público e o Defensor Público, inicialmente nós perguntamos se o flagranteado tinha condições de constituir um defensor. Ele respondeu que não, oportunidade em que o Defensor Público se legitimou a atuar.
Ouvimos a Representante do Ministério Público sobre a prisão. Opinou pela concessão da liberdade provisória com medidas cautelares. Lemos, então, para o acusado, as medidas cautelares diversas da prisão que entendíamos cabíveis. Ele as aceitou. Concedemos a liberdade provisória mediante medidas cautelares. Foi tudo gravado.
Em seguida, questionamos se a representante do Ministério Público entendia que, com o auto de prisão em flagrante, havia os elementos suficientes (ela já tinha recebido cópia do auto de prisão em flagrante no dia em que aprazamos a audiência de custódia) para o oferecimento da denúncia. Disse que sim e a apresentou.
Avaliamos naquele instante a denúncia e a recebemos. Imediatamente, o flagranteado ainda presente à audiência recebeu a cópia do texto da acusação, pelo que ocorreu sua citação. Teve a oportunidade de tirar dúvidas sobre a acusação que sobre ele pesava naquele instante com a própria Representante do Ministério Público.
Como o Defensor Público estava presente, conversou com o preso. Perguntamos se o defensor se sentia instruído (ele já tinha recebido cópia do auto de prisão em flagrante no dia em que aprazamos a audiência de custódia). O defensor público entendeu que estava apto a ofertar resposta à acusação em face da conversa pessoal que tinha tido com o preso e a ofertou.
Recebemos a resposta à acusação. Não havia elementos que justificassem a absolvição sumaria ou extinção da punibilidade. Entendemos pela manutenção da acusação e marcamos audiência de instrução e julgamento para o dia 23 de junho.
Claro que não dá para fazer isso em todos os casos, mas em boa parte sim.
Não houve ferimento de nenhum princípio constitucional. Pelo contrário, a Defensoria Pública louvou a oportunidade de ter contato pessoal com o preso antes mesmo do oferecimento da denúncia. Via de regra, pelo menos no Rio Grande do Norte, a defensoria Pública tem contato pessoal com o réu preso quando da audiência de instrução e julgamento. Por falta de estrutura e de pessoal, não há como o defensor Público se deslocar até onde estão presos. O contato ou é nenhum ou indireto, via familiares.
Em suma, o formalismo, lamentavelmente, também ensina. “Educa”, no sentido de burocratizar situações que, em si, nada têm de complexas e cuja demora corre contra a efetividade da tutela penal almejada pelo Ministério Público, titular da ação penal, e contra a razoável duração do processo, notadamente em se tratando de réus presos – que ficam em regime de prisão o mais precário possível: o “provisório”, dos cadeiões.
Somente uma baixa compreensão da constituição (controle de constitucionalidade) e dos tratados sobre direitos humanos (controle de convencionalidade) dá azo a que se imagine que um Tratado sobre direitos humanos carece de regulamentação por uma lei ou, pior, um mero ato administrativo. Assim, não é questão de inovar, mas de meramente enunciar o que desde sempre lá esteve.

Notas e Referências:
[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo en el derecho penal. Madrid: Dynkinson, 2006, p. 68.
[2] RE 349.703.

Rosivaldo Toscano Jr. é doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.

Imagem Ilustrativa do Post: Rain in the Matrix // Foto de: Steve Jurvetson // Sem alterações

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