"Doutor, me prenda, por favor"



Estava eu em meu gabinete na 2ª Vara Criminal, quando ainda atuava em Mossoró, há poucos anos. Alguém bateu à porta.
- Pode entrar.
Deparei-me com uma senhora já bastante idosa. Cumprimentou-me, pediu licença para entrar e, com um andar cansado, aproximou-se. Junto com ela uma jovem e um rapaz que trazia uma trouxa de roupas. Perguntei:
- Em que posso ajudá-la, minha senhora?
- Prenda meu neto, doutor.
Imediatamente imaginei que ele a havia agredido. Diante da inusitada solicitação, perguntei a razão de tal solicitação.
- É que ele é viciado em drogas e está vendendo tudo de casa. Ontem foi o televisor. Não tenho dinheiro para dar a ele e as coisas de casa vão acabar, e ele vai ser morto pelos traficantes se não pagar as dívidas.
- E onde ele está?
- Aqui.
O jovem, então, colocou a trouxa de roupas sobre uma cadeira se aproximou, dirigindo-se a mim.
- Doutor, sou eu. Sou viciado em crack e não consigo largar. Já estou com dois processos na Justiça e um deles é aqui. Não quero ter mais outro. Como não quero mais levar coisas de casa e nem tenho dinheiro pra pagar tratamento e o governo não dá um de graça pra mim, o melhor é eu ser preso logo pra evitar que eu continue roubando e tendo mais processos.
A jovem, que era a irmã, reforçou o pedido e disse que não queria ver o irmão ainda mais enrascado. Surpreendido pela bizarra solicitação, ponderei:
- Olha, meus senhores, as coisas não são assim. Nem mesmo um juiz pode prender uma pessoa sem um motivo.
- Mas o senhor tem um motivo, doutor. Eu quero ser preso e já tenho um processo aqui com o senhor. Doutor, me prenda, por favor. É só o que lhe peço – suplicou o rapaz.
- Mesmo o senhor querendo eu não posso fazer isso. Pelo processo que o senhor responde aqui não dá. Foi um pequeno furto. Nesse momento o senhor só seria preso se estivesse cometendo um crime.
- Quer dizer que se eu roubasse uma pessoa lá embaixo eu seria preso?
- Seria porque estaria em flagrante delito.
- Pois eu vou fazer isso! É só como eu vou poder parar de roubar as coisas de casa pra manter o vício e nem ser morto por um traficante se não pagar! – e fez menção de sair.
- Pelo amor de Deus não faça isso! – eu disse já me levantando para evitar que ele fizesse uma estupidez. E diante da seriedade do caso e do desespero daquela família, continuei:
- Me dêem uns minutos. Por favor, aguardem nas cadeiras lá fora que farei umas ligações e os ajudarei. Agora não faça nenhuma loucura, tá? Uma prisão só pioraria sua situação, pois nosso sistema carcerário é caótico, desumano e inadequado para qualquer tipo de tratamento, muito menos para recuperar dependentes químicos, até porque é um dos lugares em que mais se utiliza drogas. – Disse, olhando para o rapaz. 

Perguntei se eles tinham ido a algum local em busca de tratamento. Falaram que sim, a uma instituição da Igreja Católica, mas que era pago e não tinham condições. Fiz algumas ligações telefônicas. Falei com várias autoridades, mas graças à intermediação da Secretaria de Saúde de Mossoró, consegui uma vaga gratuita na mesma clínica da Igreja Católica, cujo sugestivo nome era “Fazenda Esperança”, se não me falha a memória, localizada num município próximo.
Desde então passei a questionar o paradigma eminentemente punitivo no trato da questão das drogas. O drama dessa família era apenas um caso. E quantas centenas de pessoas são presas todos os dias por crimes contra o patrimônio em razão da dependência química, quando deveriam estar sendo internadas para tratar a causa? E o pior: quantas saem depois sem nenhum tratamento e voltam ao vício e à prática de subtrações? Quando acordaremos para essa realidade?

Comentários

  1. Nossa Dr. Rosivaldo, que estória!
    Espero que esse rapaz tenha uma boa recuperação e parabéns pela maneira como conseguiu resolver a situação.
    O problema das drogas é uma realidade crescente e assustadora. Infelizmente os dependentes químicos que muitas vezes estão detidos ao invés de internados em clínica de recuperação não possuem a devida assistência do Governo. A lei antidrogas é muito recente e carecedora de efetividade no que toca a prevenção, atenção e reinserção dos usuários. Lástima.

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  2. além de prevenir com campanhas e um trabalho de repressão mesmo, tem que se saber o que fazer agora com as milhares de pessoas que já se viciaram e que não tem como sair dessa sem um tratamento especializado... pra família é um batalha diária e pro dependente então, né? uma tristeza, realmente!

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