....o medo do juiz diante do réu.... (Blog do Marcelo Semer
Uma belíssima crônica do amigo e colega da AJD, Marcelo Semer (clique no nome e acesso o blog dele)
Minha intranquilidade cresceu e com ela a vontade de terminar logo a audiência
Da série, "Crônicas do Crime": O medo do juiz diante do réu
Ainda estava no começo da carreira, quando fiz a audiência de Júlio.
Lá se vão mais de vinte anos e a imagem não me sai da cabeça. O bom é que isso hoje me ajuda a perguntar primeiro, antes de suspeitar; e suspeitar primeiro antes de ter certeza...
Júlio estava sentado na cadeira do réu, bem na ponta da mesa de audiências. Eu, no centro da mesa superior, que fica sobre um espaldar acarpetado, fazendo um T com aquela mesa em que se sentam as outras pessoas.
Dizem que a mesa do juiz está no tablado elevado para que as partes possam fiscalizar melhor os trabalhos da Justiça. Mas muitos colegas acreditam demais na superioridade aparente destes quinze centímetros. Maior o tombo, em algum momento da carreira.
Ouvi a primeira testemunha e tudo transcorria na maior tranquilidade. O próprio Júlio já tinha sido ouvido antes, para explicar a briga no bar em que se envolvera.
Veio, então, a vítima e depois o dono do bar, que narraram a agressão que ele, já embriagado e a altas horas da noite, praticou, depois de quebrar um copo no balcão. A vítima saiu-se com ferimentos leves no braço.
Quando ouvíamos a última testemunha, o policial militar chamado depois da briga, começo a ouvir Júlio resmungar.
A princípio, penso que murmura com seu advogado e procuro me concentrar no policial.
Aumenta o som e meus olhos se viram para o réu. O advogado interfere rapidamente e fala em nome dele.
-Excelência, o senhor podia arrumar um pouco de água para meu cliente?
Respiro fundo e mando o escrevente interromper a datilografia do depoimento para buscar água.
Voltamos à testemunha e os resmungos continuam. Mais altos agora.
Faço cara feia para o advogado, em busca de uma explicação, quando me deparo com uma cena que acende a luz de emergência. Júlio, além de murmurar, segura forte e balança o copo nas mãos.
O copo!
O escrevente deu ao réu um copo de vidro –mais ou menos como aquele que Júlio é acusado de ter quebrado na mesa do bar e depois usado para ferir seu amigo. Agora está ele ali, perdendo o controle novamente, a poucos centímetros da cadeira do promotor.
E com um copo, o copo, nas mãos.
Minha intranquilidade cresceu e com ela a vontade de terminar logo a audiência.
Fico entre mandar que Júlio se cale e exigir a devolução do copo. Haverá reação? Na dúvida, opto por esperar, porque tudo está quase acabando.
Mas é justamente nesse momento que meu coração se acelera. Júlio solta um grito, uma cara de revolta, e bate o copo fortemente na mesa.
É o que basta.
Ordeno ao escrevente que saia imediatamente para chamar um policial.
-Doutor -falo tão firme quando consigo- vou mandar prender seu réu se ele fizer mais um único gesto.
O advogado, atônito, tenta me dizer algo, mas estanca sem palavras. Hesita entre argumentar comigo e segurar Júlio que, em um movimento brusco, joga a cadeira para trás e se levanta, derrubando o copo no chão.
O escrevente não chega a tempo com o policial e em altos brados, eu decreto a prisão do acusado que, a essa altura, completamente desesperado solta um grito ainda mais potente.
O advogado se agarra a ele e assim que o policial adentra a sala com a mão no coldre, só tem tempo para me dizer em pânico:
-Doutor! É um ataque, é um ataque doutor.
Fomos salvo pelo policial que desbarata a tempo a armadilha que me apavora e me constrange.
Era mesmo um ataque. Epilético.
Guardei a voz de prisão e a suspeita de que Júlio fosse agredir alguém com o copo, cujos cacos só ameaçam a ele mesmo, quando se esparrama pelo chão.
Quinze minutos se passam até que os corações paulatinamente se desaceleram. Acho que
o meu demorou mais do que o de Júlio para voltar ao normal.
Depois de ter sido seguro pelo policial, no corpo para não se bater, na boca para não se morder, Júlio se recupera.
Vagarosamente, senta-se de novo na cadeira dos réus. De cabeça baixa, com uma voz cortada e embargada, cheio de medo e de respeito, fala escolhendo as palavras:
-Doutor, peço que me desculpe. É que eu fiquei muito nervoso com a situação. Estou envergonhado.
Eu também.
Ainda estava no começo da carreira, quando fiz a audiência de Júlio.
Lá se vão mais de vinte anos e a imagem não me sai da cabeça. O bom é que isso hoje me ajuda a perguntar primeiro, antes de suspeitar; e suspeitar primeiro antes de ter certeza...
Júlio estava sentado na cadeira do réu, bem na ponta da mesa de audiências. Eu, no centro da mesa superior, que fica sobre um espaldar acarpetado, fazendo um T com aquela mesa em que se sentam as outras pessoas.
Dizem que a mesa do juiz está no tablado elevado para que as partes possam fiscalizar melhor os trabalhos da Justiça. Mas muitos colegas acreditam demais na superioridade aparente destes quinze centímetros. Maior o tombo, em algum momento da carreira.
Ouvi a primeira testemunha e tudo transcorria na maior tranquilidade. O próprio Júlio já tinha sido ouvido antes, para explicar a briga no bar em que se envolvera.
Veio, então, a vítima e depois o dono do bar, que narraram a agressão que ele, já embriagado e a altas horas da noite, praticou, depois de quebrar um copo no balcão. A vítima saiu-se com ferimentos leves no braço.
Quando ouvíamos a última testemunha, o policial militar chamado depois da briga, começo a ouvir Júlio resmungar.
A princípio, penso que murmura com seu advogado e procuro me concentrar no policial.
Aumenta o som e meus olhos se viram para o réu. O advogado interfere rapidamente e fala em nome dele.
-Excelência, o senhor podia arrumar um pouco de água para meu cliente?
Respiro fundo e mando o escrevente interromper a datilografia do depoimento para buscar água.
Voltamos à testemunha e os resmungos continuam. Mais altos agora.
Faço cara feia para o advogado, em busca de uma explicação, quando me deparo com uma cena que acende a luz de emergência. Júlio, além de murmurar, segura forte e balança o copo nas mãos.
O copo!
O escrevente deu ao réu um copo de vidro –mais ou menos como aquele que Júlio é acusado de ter quebrado na mesa do bar e depois usado para ferir seu amigo. Agora está ele ali, perdendo o controle novamente, a poucos centímetros da cadeira do promotor.
E com um copo, o copo, nas mãos.
Minha intranquilidade cresceu e com ela a vontade de terminar logo a audiência.
Fico entre mandar que Júlio se cale e exigir a devolução do copo. Haverá reação? Na dúvida, opto por esperar, porque tudo está quase acabando.
Mas é justamente nesse momento que meu coração se acelera. Júlio solta um grito, uma cara de revolta, e bate o copo fortemente na mesa.
É o que basta.
Ordeno ao escrevente que saia imediatamente para chamar um policial.
-Doutor -falo tão firme quando consigo- vou mandar prender seu réu se ele fizer mais um único gesto.
O advogado, atônito, tenta me dizer algo, mas estanca sem palavras. Hesita entre argumentar comigo e segurar Júlio que, em um movimento brusco, joga a cadeira para trás e se levanta, derrubando o copo no chão.
O escrevente não chega a tempo com o policial e em altos brados, eu decreto a prisão do acusado que, a essa altura, completamente desesperado solta um grito ainda mais potente.
O advogado se agarra a ele e assim que o policial adentra a sala com a mão no coldre, só tem tempo para me dizer em pânico:
-Doutor! É um ataque, é um ataque doutor.
Fomos salvo pelo policial que desbarata a tempo a armadilha que me apavora e me constrange.
Era mesmo um ataque. Epilético.
Guardei a voz de prisão e a suspeita de que Júlio fosse agredir alguém com o copo, cujos cacos só ameaçam a ele mesmo, quando se esparrama pelo chão.
Quinze minutos se passam até que os corações paulatinamente se desaceleram. Acho que
o meu demorou mais do que o de Júlio para voltar ao normal.
Depois de ter sido seguro pelo policial, no corpo para não se bater, na boca para não se morder, Júlio se recupera.
Vagarosamente, senta-se de novo na cadeira dos réus. De cabeça baixa, com uma voz cortada e embargada, cheio de medo e de respeito, fala escolhendo as palavras:
-Doutor, peço que me desculpe. É que eu fiquei muito nervoso com a situação. Estou envergonhado.
Eu também.
"...isso hoje me ajuda a perguntar primeiro, antes de suspeitar; e suspeitar primeiro antes de ter certeza...", em uma palavra: EXTRAORDINÁRIO!!!
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