Cotas raciais em concursos para o Judiciário?
Recentemente, o Ministro Carlos
Ayres Britto, em entrevista ao CONJUR, afirmou que as políticas afirmativas
podem atingir também postos de trabalho. E falou em promover a “igualdade
aproximativa” entre negros e brancos. Pouco depois, vi notícia dando conta de que o Conselho Nacional de
Justiça – CNJ – deliberará, ainda este mês, acerca de um pedido de cotas raciais nos concursos para o Judiciário.
Há vozes contrárias a qualquer
tipo de cota. A alegação principal é de, acreditem, racismo. Os principais
argumentos estariam em dois dispositivos da
Constituição Federal. Eis o que dizem:
“Art. 7º São direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social: (...) XXX – proibição de diferença de salários, de exercício
de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,
idade, COR ou estado civil;
“Art. 39, § 3º Aplica-se aos servidores
ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII,
XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer
requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir”.
O argumento contra se fundamentaria na isonomia. Com as cotas, estar-se-ia criando favorecimento indevido. Se estimularia a preguiça dos que não se afeiçoam aos
estudos e desestimularia a salutar livre concorrência.
Promover-se-ia, assim, um paternalismo indesejável e prejudicial ao progresso
da sociedade. E há os que ataquem a viabilidade das medidas, sob o argumento de que não há como definir o público-alvo; afinal, quando se é contra, qualquer desculpa serve.
Primeiramente, acho melhor traçar
o panorama atual para, depois, buscar as razões dessa desigualdade e, tão
somente, concluir com meu entendimento sobre a questão. Vou limitar a abordagem aos afrodescendentes, sob pena de escrever um texto inadequado para uma postagem de blog. Mas adianto que, em relação aos índios, não há muitas diferenças em termos de exploração e opressão.
Fazendo uma reflexão sobre os
afrodescendentes no mercado de trabalho e na vida social, uma constatação local
foi fácil: na magistratura do Rio Grande do Norte, por exemplo, em um universo
de cerca de duzentos magistrados, identifico como afrodescendentes apenas seis.
Isso equivale a três por cento, apesar dos afrodescendentes (os
pretos e os mulatos – a maior parcela dos pardos) representarem, seguramente, quase metade da população
brasileira. Dentro da classe política, a sub-representação também é
gritante. Estudos recentes dão conta de que apenas 8% dos 513 deputados
federais são afrodescendentes. O salário médio dos negros no Brasil é praticamente a metade do recebido pelos
brancos; os negros são 70% dos pobres e 70% dos indigentes do brasil (vide aqui). E na USP, a mais prestigiada
Universidade do país, nos cursos de ponta, os
negros representam apenas, 0,9%. Isso mesmo. Menos de um por cento. Como
disse Bob Fernandes, “não faltam
números. Mas números são até desnecessários. Basta olhar em volta; nas boas
escolas privadas, nos ótimos shoppings, nos belos restaurantes… na Mídia”. Não
dá para mantermos mais essa tremenda e histórica desigualdade.
Aproveito para fazer uma breve viagem no tempo.
Ao contrário do que o senso comum
imagina, para cá veio, acorrentada, a elite pensante de muitos povos africanos.
E atravessaram o Atlântico, humilhados e famintos, nos porões infectados de
ratos e pulgas, alguns grupos, incluindo os malês, que sabiam ler e escrever em
árabe, fato inusitado em um Brasil em que a maioria da população, incluindo a
elite, era analfabeta. Nações inteiras aqui aportaram tão somente pelo fato de
terem sido vencidas em batalhas. Era costume da época que o povo vencedor
sobrepujasse e escravizasse os vencidos, da mesma forma com que narra a Bíblia
sobre o povo Judeu no antigo Egito. Mas bastaram algumas poucas gerações
nascidas no cativeiro para que o mesmo povo que um dia conheceu a álgebra e a
astronomia involuísse para uma condição pré-histórica, afinal de contas, era proibida a educação formal do escravo.
Com a abolição da escravatura
negra (cuja tardança nos fez assumir o desonroso posto de último país do mundo
a fazê-la), sabem qual foi a única “política pública” implementada
pouco mais de um ano depois? Um novo Código Criminal que dedicou o Capítulo XII
à punição dos “Mendigos e Ébrios” (e nem preciso dizer que os negros
“libertados” saíram das senzalas, literalmente, com uma mão na frente e outra
atrás) e o XIII, aos “Vadios e Capoeiras”, punindo (art. 402) quem praticasse
a conduta de “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e
destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem”. Os negros continuaram
escravos da sua condição pré-histórica. Não sabiam exercer qualquer arte ou
ofício além do trabalho desumano e braçal que aprenderam à força, sob o chicote dos capitães-do-mato.
A imigração europeia em
massa seguiu um caminho bem diferente. Com o fim da escravidão, o Brasil se
tornou um país de extremos. De um lado, o baronato das usinas de cana-de-açúcar
e os grandes cafeicultores; do outro, a massa pré-histórica e faminta de
ex-escravos, desprovidos de recursos de qualquer natureza, sem terra, sem cidadania,
sem dignidade. No meio, uma escassa classe média de pequenos comerciantes e dos poucos servidores públicos. O plano do governo era, por um lado, fomentar,
através da imigração europeia, a construção de uma classe média relevante. Oportuna
a imigração em razão da crise na Europa. Ademais, a mão de obra imigrante era
qualificada, com costumes e religiosidade semelhantes à da antiga matriz. E
havia a necessidade de povoar a região Sul do país, sempre ameaçada de ocupação
pelas nações vizinhas.
Artesãos e agricultores europeus
aportaram em nossas terras, fugindo da fome provocada pela revolução
industrial. A política governamental foi a da distribuição de terras e deveriam
vir com as famílias, para promover a eugenia, a difusão da etnia branca. Cabe
acrescentar que aos negros e índios era vedada a distribuição de terras. Assim,
o mesmo escravo que aqui nasceu e que sofreu no pelourinho, sequer tinha o
direito a um pedaço de chão. Já o branco estrangeiro que imigrava tinha a
política governamental de incentivo agrário a seu favor. O darwinismo social e a
eugenia racial se efetivavam, com o fim de “branquear a população”.
Assim, cara pálida, saiba que a
representatividade deficiente do afrodescendente na sociedade brasileira não se dá por culpa dele, muito menos por preguiça ou incapacidade. Trata-se de uma
condição de opressão histórica que os afeta hoje como reflexo do passado. Ou
você já parou para pensar que há menos negros nas universidades porque eles
frequentam menos escolas privadas porque seus pais também já são legatários de
uma triste herança de desigualdade? E que isso é um círculo vicioso que não
terá fim sem ações afirmativas?
Trata-se de uma violência
sistêmica, que não é compreendida facilmente porque já foi introjetada em nossa
normalidade. Termina sendo vista como algo corriqueiro, naturalizado no cerne
das relações sociais. Essa violência é ideológica, passando ao largo da
percepção dos que as sofrem e, muitas vezes, também dos que as exercem.
Caracteriza-se pela fabricação, através do discurso, de falsas crenças que
induzem o indivíduo a acreditar, a consentir e a se comportar de acordo com os
padrões desejados pelo estamento.
E imersos nessa violência que atua como ideologia, até mesmo os submetidos a
ela começam a crer que se tratam de fatos naturais ou inevitáveis, etapas de um
processo civilizatório evolutivo ou constitutivo do mundo.
E assim: a) as abissais
desigualdades econômicas e sociais do Brasil são “naturais”; b) o mercado dá
iguais oportunidades a brancos e negros e que não temos que responder por fatos
ocorridos no passado, porque os negros se encontram em tais situações por
“culpa própria”, “inaptidão” ou “preguiça” (ou mesmo inferioridade racial,
acreditem, pois ainda há quem, em pequenos círculos, pense assim). Dessa foram, não se atenta para o
fato de que o déficit de representatividade econômica, social e política dos
afrodescendentes decorre de práticas que, por inúmeras gerações, os discriminaram negativamente. E não existe o explorado sem o explorador.
Os tempos exigem um olhar com
alteridade, partindo de lá, além das nossas fronteiras individualistas e de
conveniência, que somente uma viagem ao encontro do outro pode permitir. E quem
sabe, reconhecendo o outro, possamos nos conhecer melhor, estranhando e
evitando as posturas de apartheid.
Por fim, respondendo à objeção de
pretensa violação de princípios constitucionais que vedariam a existência de
cotas, trata-se de argumentação sem fundamento normativo.
Cotas não são critérios para
admissão. Não se estará restringindo a admissão a afrodescendentes. Pelo
contrário, estar-se-á permitindo que haja uma representatividade social
compatível com o contingente que representa na população brasileira. Isso se
chama isonomia. É o mínimo que podemos fazer, ainda que com tanto atraso, para
promover esse resgate histórico. E não será nenhuma novidade uma possível
regulamentação afirmativa por parte do CNJ. Cotas em concursos públicos já
existem, atualmente, para portadores de necessidades especiais.
O que temos hoje, materialmente,
é “cotas” para brancos, ainda que sub-repticiamente impostas. Ou, talvez, até, “critérios discriminatórios” que se exercem e se depuram nas práticas
sociais mais comuns e diuturnas. Apenas não existem na ordem do discurso. Elas se reafirmam nas listas de vestibular e de
aprovação em concursos públicos. Ou todas as estatísticas mentem?
O Judiciário bem que poderia dar o
exemplo de como pormos fim a esse violento e secular círculo vicioso. E me
pergunto agora: quantos dos 15 conselheiros do CNJ, que decidirão essa questão,
são afrodescendentes? Seria um bom começo para uma reflexão do próprio colegiado
sobre o tema.
Minha última palavra é sobre a
foto. Para quem não me conheça e possa imaginar que argumentei em causa
própria, o menininho loiro sou eu, aos três anos.
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de
direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
Ótimo texto! A crítica apresentada é totalmente pertinente. Parabéns pelas sábias palavras.
ResponderExcluirParabéns, Dr. Rosivaldo Toscano.
ResponderExcluirTexto magniífico e corretíssimo sobre o motivo da necessidade das ações afirmativas de que tanto o nosso país precisa. Somadas todas as nossas forças, deixando de lado a discriminação e o racismo poderemos então fazer a nação que queremos para todos nós. Igualitária e forte. Terra rica como é o nosso, o Brasil do futuro.
Caro Rosivaldo,
ResponderExcluirPensando apenas nos concursos jurídicos, pela experiência de estudar em um curso noturno, em uma faculdade privada, não vejo a menor necessidade de cotas para negros. Dada a popularidade e as facilidades para se cursar Direito (baixa mensalidade e financiamentos diversos, por exemplo), qualquer um que trabalhe durante o dia, mesmo que com dificuldades, consegue frequentar uma faculdade de Direito. Claro, não será a melhor de todas; mas é um meio termo, como 95% das faculdades privadas. A minha faculdade, por exemplo, é uma dessas. Tem brancos e negros, claro. Classe média alta e baixa e pobres brancos e negros. O que diferencia é a vontade e o afinco de cada um na hora do concurso. Existem inúmeros casos de pessoas pobres, brancos e negros, que com muita dedicação e esforço, passaram nos concursos mais disputados. O senhor ilustra minha afirmação. Veja a história de Manoel Pastana. É de arrepiar.
Evidentemente, se pensarmos na Usp, a diferença é gritante. Tão gritante quanto o absurdo de ser bancada com o imposto de pobres e, pasmem, NEGROS! Por que não, então, acabarmos com as universidades públicas? Não seria uma forma de minorar as desigualdades, já que os ricos estudantes uspianos teriam que bancar seus estudos?
A título de provocação, se o senhor alega ser branco, logo não defenderia a tese das costas em causa própria, eu poderia alegar que só a defende por já ter sido aprovado em concurso importante. Contudo, isso é o de menos, é uma brincadeirinha apenas. Um abraço,
Dr. Rosivaldo,
ResponderExcluirÉ de conhecimento geral que os orientais prestam concursos públicos. Observa-se, portanto, uma falha nessa argumentação.
Onde se encaixam os imigrantes asiáticos (japoneses)?
Caro Marcelo,
ExcluirO que você chama de falha se dá em razão de seu raciocínio desconsiderar exatamente o fundamento das cotas: a histórica desigualdade e inferiorização a que os negros e mestiços foram submetidos.
Prezado,
ExcluirMesmo que se considere o fundamento das cotas, ainda assim não foi demonstrado o impacto para os brasileiros orientais deste país. Basta procurar os dados sobre esses brasileiros nos estudos do IPEA ou no site do SEPPIR. A nossa sociedade não é constituída somente de negros e brancos.
Caro Marcelo,
ExcluirConvido-o a comprovar os dados que citou e que os orientais foram, historicamente, submetidos a um processo de inferiorização.
Abraço,
Rosivaldo.
Dr. Rosivaldo,
ResponderExcluirPrimeiramente, não encontrei a publicação do comentário anterior.
Sabe-se que as cotas no serviço público segregarão os BRASILEIROS orientais desse país. Não ponderar sobre as minorias é um ato RACISTA.
Caro Marcelo,
ExcluirLeia sobre projeção em psicanálise. Lhe será útil.
Abraço,
Rosivaldo.
Prezado,
ExcluirAcreditei no texto inicial do blog "Por trás da magnificência de uma toga há, na essência, sempre, um homem, igual a qualquer outro, repleto de anseios, angústias, esperanças e sonhos." pelo visto estava enganado.
Caro Marcelo M.,
ExcluirAcusa-me de cometer um ato racista. Aponta-me um dedo e não olha para onde outro três se voltam. E ainda assume uma postura moralista.
Cordialmente,
Rosivaldo.
Rosivaldo, pessoas como você engrandecem nossa Magistratura e nos deixam orgulhosos. Assino embaixo. Marcelo Varella.
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