Paraguai: eu sou você amanhã? - Ou em busca da democracia perdida em nós




À parte o que já escrevi na última postagem, que dizer para alguém que entende razoável um prazo de defesa de 16 horas (com uma noite no meio) no suposto impeachment express de um presidente democraticamente eleito? Nem na lua seria razoável se acusar, julgar e se depor um presidente em prazo menor do que o que se dá para se defender, por exemplo, de uma infração de trânsito. Pelo visto, uma boa parte de nossa mídia ainda sente saudades dos tempos eufemisticamente chamados de “revolução”, cujo epíteto mais adequado é ditadura.
Ouvi e li na mídia, depois da postagem, uma defesa do golpe com base em argumentos que expressavam o moralismo mais rasteiro e circunstancial – acerca, por exemplo, das relações amorosas do presidente (houve até quem o chamasse de “Bispo-Reprodutor”!). Sintomático da falta de argumentos (e da permissibilidade com práticas de exceção) é quando o sujeito começa assim: “sem querer ser moralista, mas”, aí deságua na apelação. Cria-se a polarização ideológica. Um a piori que justificaria todo tipo de abuso contra o inimigo. Já vimos isso, Brasil, lamentavelmente. Deu no que deu.
A questão não é, senhores, defender governo A ou B, mas a democracia e a Constituição de um país vizinho que, queiramos ou não, mantém fortes laços históricos, culturais, políticos, econômicos e sociais conosco.
Argumentos circunstancias são falácias. Não gosta de Lugo, da esquerda, de movimentos sociais? Ok. Direito seu. Mas se tem senso crítico, tem que ser coerente. Democracia é respeito à diferença e às regras do jogo preestabelecido. Nunca é vitória vencida na força, mas convencida no voto do eleitor. Na próxima eleição – se você defende tanto a  legalidade” – torça para que os opositores construam argumentos melhores e vençam no voto. Pelo contrário, será a máxima perversa de “aos amigos o autoritarismo e o desrespeito à democracia, e, aos inimigos, o nada”.
O núcleo da cidadania é exatamente o voto. Defenestrar – pois foi isso que ocorreu – um presidente eleito, e em eleições limpas, é golpe. Não há outra palavra e nem permeios retóricos que fujam disso. Quem defende tem postura de golpista também. Dói, mas é verdade. E não adianta racionalizar, transferir ou projetar, pois Freud explica. Fica pior ainda.
Vi jornalista dizendo que seria melhor para os “brasiguaios”. Ótimo. Quer dizer que em nome de interesses pessoais aceitamos a violação da ordem constitucional de um país vizinho? E se fosse o caso de algum interesse norte-americano no Brasil, você aceitaria que eles defendessem o rompimento de nossa ordem democrática ou que nos invadissem?
Muito menos vale a menção à qualidade da gestão do governante, porque não atende a determinados interesses. Vai pelo mesmo caminho antidemocrático. Não há como se defender, em uma democracia, uma solução com um ponto de vista que não seja jurídico, no sentido de respeito à Constituição.
E não se interpreta em tiras, cara-pálida! O art. 225 da Constituição do Paraguai não existe isolado nem do texto e muito menos do contexto do texto. Não se pode invocá-lo isolado do resto do texto constitucional. Isto é, sempre estará implicado com os demais mandamentos constitucionais e com as disposições internacionais a que o Paraguai aderiu, em especial a ampla defesa e com prazo razoável, presente na própria Carta (art. 17, § 7).
Torna-se ingenuamente (ou maliciosamente) infundada a postura de quem defende o golpe sob o argumento de que os conceitos de “ampla defesa” e de “prazo razoável” são fluidos. Ora, vivemos imersos em uma tradição (Gadamer). Não somos mundos estanques. Somos seres no mundo (Heidegger). Estamos inseridos em uma realidade histórica e há constrangimentos semânticos mínimos; há conceitos que são compartilhados dentro de uma comunidade. Se você acha que: a) 16 horas (com uma noite no meio, como já destaquei) é um prazo razoável; b) e diz isso não por conveniência ou por simplesmente não gostar de um governante por alguma razão partidária ou ideológica, o caso é grave. Surgem duas hipóteses: 1ª) você é um extraterrestre que acabou de cair de uma nave espacial; 2ª) necessita de ajuda psicológica, talvez com indicação médico-psiquiátrica acompanhando. Você pode ser um risco à incolumidade pública, arrisco a completar.
Uma outra reflexão advém, a respeito do caso: quem menospreza a Constituição do Paraguai respeita a própria?
Não há democracia fora da Constituição. Os argumentos escapistas (eufemismo para outras adjetivações mais pesadas) ou usam o utilitarismo (“estava muito ruim com o presidente deposto”) ou se baseiam no que entendem ser a solução mais “justa”. O “justo” sempre o é para quem argumenta, já perceberam? Esse é o problema de todo “bom-sensismo” (ou seria “cinismo”?). Vira cabo-de-guerra. O mais forte, violento ou corrupto, vence. Hitler, por exemplo, usou “(in)justo”, “(in)justiça”, “justeza” etc., 63 vezes no seu Mein Kampf. Entenderam como é perigoso?
Cumpra-se a Constituição. Só isso. É simples. 
É difícil, no Paraguai, se pensar sob uma ótica de respeito à CF. Falta costume e sobra “imaginação” por parte dos poderosos... Precisam amadurecer sua democracia, por bem ou por mal. O problema é quando o apoio parte daqui. Parece que há seres ahistóricos ou desmemorizados em boa parte de nossa mídia e até na classe jurídica. Aos que ainda não entenderam a dimensão do que houve no Paraguai: Editorial de “O Globo”, do dia 02 de abril de 1964: “Ressurge a Democracia” (clique aqui e confira o inacreditável texto do jornal). Parafraseio Freud que, em Totem e Tabu, falou com muita propriedade sobre a transgressão, sobre o comportamento desviante das condutas e do risco de ferimento dos tabus. Disse que existe em todo ser humano, mesmo o mais pacato e acima de qualquer suspeita, o igual instinto agressivo e tirânico que há no criminoso que age. Assim, “O que está em questão é o medo do exemplo infeccioso, da tentação a imitar, ou seja, do caráter contagioso do tabu”. Não acredita? Lembre da Alemanha, a mesma Alemanha berço da filosofia moderna e contemporânea, e... do nazismo. Lembremos da Itália dos grandes juristas, do renascimento e... do fascismo. Estou sendo alarmista? Leiam Anna Arendt (Eichmann em Jerusalém). Não acredita ainda? Seria bom assistir ao filme “A Onda”.
Anotem: se nada for feito por parte da comunidade sul-americana, que tenhamos consciência de que estaremos nos responsabilizando pelas consequências de pormos a Bolívia e o Equador na fila... e quem serão os próximos?

Comentários

  1. Ótima abordagem, diga-se de passagem que a revista Veja publicou uma entrevista, em suas páginas amarelas, com o atual presidente do Paraguai em que também defende o procedimento "constitucional" utilizado.
    Abs.

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  2. O Paraguai é uma democracia e possui uma Corte Suprema de Justiça, que referendou o ato de deposição do ex-presidente Lugo. A informação consta no site da Corte. O próprio Lugo acabou aceitando o ato. Ademais, o julgamento foi político, e o citado artigo 17 diz respeito a garantias do acusado no PROCESSO PENAL, vejamos. "Artículo 17 - DE LOS DERECHOS PROCESALES. En el PROCESO PENAL, o en cualquier otro del cual pudiera derivarse pena o sanción, toda
    persona tiene derecho a: (...) 7. la comunicación previa y detallada de la imputación, así como a disponer de copias, medios y plazos indispensables para la preparación de su defensa en libre
    comunicación;"

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  3. Caro comentarista Anônimo, é pífio o argumento de que um país é uma democracia porque tem uma corte suprema. O III Reich tinha uma corte suprema. A Itália de Mussolini e a URSS de Stalin também. E, aliás, foram muito importantes para a manutenção dos regimes ditatoriais.
    O pretenso fato de Lugo ter aceitado ou não o golpe não o legitima. Assim como um condenado que aceita um veredito injusto não o torna regular. Muitos judeus morreram aceitando o sacrifício. E nem por isso as execuções deixaram de ser horrendas.
    Se você quiser dizer que o quadrado é redondo, direito seu. Também é direito seu acreditar em duendes e em conto de fadas. Fica na sua esfera de subjetividade.
    Mas o mundo é prático também, meu caro. Você não vive só em si mesmo e em um mundo de fantasias. Você convive. Você está imerso em uma tradição. E em nenhum ordenamento jurídico do mundo atual (isto é, no mundo em que você vive - na nossa tradição), 16 horas é um prazo razoável par se defender. Você não encontrará nem nas leis processuais do Paraguai prazo tão exíguo. Nem para furto de uma galinha. Nem para se defender de uma multa de trânsito. O que dizer de um ato tão grave como defenestrar um presidente democraticamente eleito por milhões de pessoas.
    Dentro de uma democracia não existe julgamento político fora da normatividade - entendida esta como respeito à Constituição. Senão, é golpe. Nem existe prazo tão exíguo no Código de Processo Penal do Paraguai (examino-o na postagem anterior. Aproveite para fazer sua leitura).
    O direito precisa ser coerente. A coerência é o que possibilita o tratamento igualitário. E a igualdade é a virtude soberana (Dworkin). Pois saiba que sob a mesma Constituição paraguaia, apenas nove anos antes, o ex-presidente Luis González Macchi escapou do impeachment em um processo que, contra ele, durou... 3 meses! E não um dia! http://goo.gl/oFWXm
    Você pode não gostar da esquerda. Xingá-la como quiser. Mas não pode, sob pena de se tornar um pequeno tirano, aceitar que se firam as regras do jogo democrático.

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  4. O julgamento era POLÍTICO. Ponto. Alguns princípios do processo penal não se aplicam a julgamentos políticos. A defesa em prazo exíguo PODE ser um deles. O fato é que houve defesa. Se a normatividade do Paraguai assim o permite (defesa em prazo exíguo), fazer leitura dessa questão invocando princípios de processo penal não resolve o problema. Melhor encontrar um argumento melhor. É claro que certos princípios são verdadeiros postulados garantistas e se aplicam a qualquer julgamento, seja político ou criminal. Por favor não leia o que não escrevi. Posso não gostar da esquerda, da direita ou de comer feijão. Mas não deixo que isso contamine uma opinião em assunto que pode ser tecnicamente debatido, sem entrar no mérito da questão ideológica, do gosto por A, B ou C.

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  5. Décio,

    Não me leve a mal, mas o fato de você dizer que era julgamento político em caixa alta não o transforma em verdade. A verdade não precisa gritar. Muito a alusão à ampla defesa e ao devido processo legal como sendo princípios do processo penal. Não são princípios "do processo penal". São princípios correlatos ao Estado Democrático de Direito. Aplicam-se a todos os julgamentos proferidos pelo Estado, incluindo administrativos. Não só estão na Constituição do Paraguai como também em tratado por ele assinado.
    Sua argumentação não é técnica. E nem poderia. Falta fundamento normativo se você renega toda construção do constitucionalismo contemporâneo.
    No mais, repito o já dito no comentário anterior e nos dois textos.

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