Da Série Paradoxos Penais - I



Legisnaldo é um estudante de direito e está guiando seu carro. Imprudentemente, conversa ao telefone celular. Termina perdendo o controle do carro, subindo a calçada e atropelando um pedestre. A vítima, um senhor aparentando uns 50 anos, que sofreu apenas lesões leves – alguns poucos arranhões –, depois do susto, levanta-se e, nervoso, começa a gritar e a insultar o jovem e infeliz condutor. Testemunhas que assistiram ao atropelamento se juntam no xingamento do rapaz.
Naquele momento, passava perto uma viatura da polícia militar que, imediatamente, aborda o jovem:
- Carteira e documento do carro.
O universitário, já nervoso, entrega os documentos. E o policial, com o boletim de acidente na prancheta, inicia o procedimento de lavratura do flagrante:
- Quer dizer que o senhor sem querer subiu a calçada e atropelou este senhor aqui, confirma? 

- Um momento - pediu Legisnaldo, ainda dentro do carro.
Cuidadoso, o acadêmico de direito pega o seu vade-mecum e começa a estudar os dois tipos penais possíveis. Vai primeiramente ao Código de Trânsito (Lei nº 9.503/97):
 

"Art. 303. Praticar lesão corporal CULPOSA na direção de veículo automotor:
Penas - detenção, de SEIS MESES A DOIS ANOS e SUSPENSÃO ou proibição de se obter a permissão ou a HABILITAÇÃO para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. AUMENTA-SE a pena de UM TERÇO À METADE, se ocorrer qualquer das hipóteses do parágrafo único do artigo anterior.
Art. 302. (...)
Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:
(...)
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou NA CALÇADA;"
 

Depois, dá uma conferida no Código Penal, que versa sobre a lesão corporal leve dolosa:

"Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de 3 MESES A 1 ANO."
 

O guarda, já irritado com o rapaz que, ao invés de ajudá-lo na confecção do Boletim do Acidente, simplesmente abre um livro e começa a lê-lo, pergunta:
- E aí, vai responder agora ou quer que eu o leve algemado para a delegacia?
- Peraí, o senhor perguntou o que mesmo?
- Se você atropelou a vítima! - retrucou o irritado PM.
- Atropelei sim, MAS FOI POR QUERER, seu guarda. Põe aí, "FOI COM DOLO"! "FOI COM DOLO"!



*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

Comentários

  1. Talvez o maior paradoxo penal seja o Art. 273 CP.

    Nele, se a pessoa vender detergente ou sabão produzido por conta própria pega de 10 a 15 anos de reclusão.

    Pena maior do que tráfico de drogas, que por sinal é um crime hediondo.

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  2. Aprecio muito o blog de Vossa Excelência, que une a criatividade ao conhecimento das leis, sem temer mostrar os sentimentos humanos que jaz por trás de toda profissão.Segurança, discernimento e sabedoria, não apenas conhecimento livresco.

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  3. Gustavo, já vou programar essa hipótese para uma próxima postagem da série...
    Obrigado, Monica.

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  4. Dr., garoto esperto esse acadêmico! Parabéns mais uma vez por essa crônica maravilhosa, que nos leva refletir sobre as inúmeras contradições em nosso ordenamento jurídico.

    Tendo um tempinho, dê um lida nisso:

    http://nilton-cezar.blogspot.com/2011/04/fragmento-do-meu-pensamento.html

    Um cordial abraço.

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  5. KKKK Ri muito com essa incoerência de normas. É um absurdo mas "é lei".

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  6. Outro paradoxo versa sobre a incomunicabilidade do preso.

    O Art. 139 CF, prevê de forma taxativa as medidas que poderão ser tomadas contra as pessoas. Não está incluso a incomunicabilidade do preso.

    Já no Art. 21 CPP, prevê a incomunicabilidade no prazo máximo de 3 dias. Se no estado de sítio, em que configuram limitações de alguns direitos constitucionais não existe tal instituto, poderia existir em situação de normalidade?

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