A Verdade (IR)Real e o Imaginário: Julgando com Freud e Lacan






No último final de semana assisti a um curso ministrado por um colega juiz federal que muito estimo. Contudo, divirjo do paradigma do qual ele parte em relação à postura do magistrado dentro do processo penal acusatório e, notadamente, na questão da busca da verdade real. Numa das minhas intervenções, inclusive, explicitei que não costumo estudar os processos logo antes da audiência. Ele até se espantou e certamente imaginou que, com isso, eu não conseguiria bem julgar os feitos.
Coincidentemente, dois dias antes sentenciei um feito em cujo vídeo da fundamentação, abaixo postado, trato da questão da paridade de armas no processo penal e da exigência, no âmbito do sistema acusatório, de uma postura de expectador do magistrado, bem como da superação do paradigma da verdade real. E falo da razão de se estudar ou não os feitos logo antes da audiência.
Busco manter a imparcialidade, muito embora não seja possível a neutralidade, uma vez que cada um de nós carrega consigo a própria história de vida, recalques, imperfeições, virtudes, valores e posicionamentos ideológicos. Quer dizer, estamos enleados numa subjetividade que é nossa bagagem e, obviamente, ela faz parte da nossa forma de enxergar o mundo. São nossos preconceitos. Mas isso não impede que busquemos uma postura de terceiro desinteressado em relação às expectativas das partes.
Antes dessa audiência estávamos eu, o promotor de justiça e o defensor público, falando sobre psicanálise. Das concepções lacanianas do real, do simbólico e do imaginário. Divergindo do posicionamento do colega que ministrou o curso de capacitação para juízes criminais - que viria dois dias depois -, entendo que é vã a ideia de que se deve buscar a verdade real. O real jamais será conhecido como tal. O real está diante de nós, mas nós não teremos a capacidade de enxergá-lo em razão de nossas limitações porque o real é o todo. E o todo não pode ser visto por alguém que é limitado. E nem o processo é capaz de assimilar tudo que ocorreu. 
Nós vivemos na esfera do simbólico, que faz a mediação com o que nos é possível assimilar, conhecer. O real é o não conhecido.
De tudo que vemos fazemos uma interpretação. Com o magistrado não é diferente. Portanto, trata-se de uma verdade formal. O trabalho do magistrado nada mais é do que o de um historiador. E, no sistema acusatório, quem fornece o material de estudo para o magistrado são as partes. É importante que o juiz tenha consciência desse seu papel.
Retomando a psicanálise, na semana anterior fui a um congresso no Rio Grande do Sul. Um dos palestrantes falou que o imaginário desliza... É importante que o magistrado se atenha ao que está comprovado nos autos, que ele não se deixe tomar pelo imaginário, pois este nos leva a não-lugares. E esse é mais um alerta à postura do magistrado que vai atrás de uma prova. Ele imagina... e deixa que o imaginário dele aconteça. Ele constrói no imaginário, e aí fica difícil às partes demovê-lo dessa ideia pré-concebida. O imaginário atua como um espelho onde projetamos no outro nossa própria sombra, nossas qualidades indesejáveis. E melhor que punir a si, é punir o outro.
É bem verdade que o inconsciente e o imaginário são impossíveis de serem dissociados de nós. Nos constituem. Mas se existe um meio de diminuir o poder do imaginário de elaborar o deslizamento, dá-se pela conscientização de sua existência e atuação, e pela procura da postura que melhor resguarde o que foi trazido pelas partes antes de firmarmos um (pré)convencimento. É aí que retomo a questão de não estudar antecipadamente um processo cuja audiência acontecerá. Será que assim, sem reler o feito antes da audiência, não vou julgá-lo direito?
Como ressaltei, não estudo o processo antes para não firmar um convencimento antecipado. E por quê? Faço isso para abrandar o elo subjetivo entre as minhas pré-concepções (precárias, pois a instrução ainda não terminou - estão mais na esfera do imaginário) e a avaliação dos fatos no momento do julgamento.
Não é comum me deparar, no dia-a-dia, com questões tão complexas que me impeçam de julgar o feito na própria audiência. Mas se entender, por exemplo, que existe um ponto em que as provas documentais são determinantes e que me geram um juízo de incerteza sobre seu grau de fidedignidade, não julgo açodadamente. Uma reflexão mais apurada, a posteriori, é, nesse caso, o caminho a tomar. E a lei prevê isso.
Mas sempre que observo que há viabilidade de julgamento em audiência, eu o faço. Eu o faço também para que tenha a memória emocional do instante da colheita das provas e das alegações finais. Por isso que são tão importantes os princípios da imediatidade e da identidade física do juiz. Quando o juiz julga depois de muito tempo, ele perde essa memória emocional. A (pretensa) razão do juiz que busca a verdade é falha, Freud já nos mostrou. Não há razão e nem métodos capazes de trazer a verdade. A verdade é construção. É um encontro oriundo de um diálogo advindo das partes. Elas que devem trazer ao juiz os elementos de conhecimento. Senão, o juiz vira pare. E essa razão, muitas vezes, trata-se de uma razão instrumental, que termina prejudicando o Outro. 
Tomo aqui razão instrumental no sentido moldado por Max Horkheimer. A razão, que deveria possibilitar a civilização do homem em face do seu conteúdo objetivo, material, quando instrumentalizada, é preenchida pelo subjetivismo dos detentores do poder. A instrumentalização transforma a razão em mera técnica, como meio que permite a obtenção dos fins.  Sem ética, a razão culmina em um instrumento de dominação, explorando a natureza e os seres humanos. E o avanço progressivo da técnica vem acompanhado de um processo de desumanização cada vez melhor orquestrado. Uma racionalidade instrumentalizada gera uma sociedade paradoxal, em que “frente a morte por inanição que domina vastas áreas do mundo, deixa sem uso parte de seu maquinário, dá às costas a muitas invenções importantes e dedica muitas horas de trabalho a uma propaganda imbecil e a produção de instrumentos de destruição, uma sociedade que possui tal luxo fez do utilitarismo seu Evangelho.”
Infelizmente, uma boa parcela dos atores jurídicos ainda não se deu conta dessa implicação. Devemos, então, nos atentar para essa peculiaridade.
Em relação ao sistema acusatório, cumpre ao juiz dar a paridade de armas às partes, até para que ele possa ficar mais tranquilo quanto ao respeito aos direitos e garantias fundamentais, uma vez estando as duas partes devidamente capacitadas para exercer os seus misteres da melhor maneira possível, exercendo seus juízos acusatório e de defesa. O magistrado vai garantir o respeito às regras do jogo democrático. E a partir do estabelecimento de um contraditório efetivo e equilibrado, com a gestão da prova realizada pelas partes - com um magistrado no seu local de terceiro desinteressado -, teremos, com certeza, um processo penal adequado constitucionalmente.
Segue vídeo da fundamentação da sentença dada em audiência, no qual discuto essas questões. 

*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

Comentários

  1. Caro Rosivaldo,

    "En este mundo traidor nada es verdad, ni mentira. Todo es según el color del cristal con que se mira."
    - Ramón de Campoamor

    Grande abraço,

    Danilo.

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