Da Série Paradoxos Penais - III


Milagrosamente livre do flagrante da prática do crime descrito no art. 273 do CP (vide postagem anterior aqui), o estudante de direito Legisnaldo por pouco não foi preso por desacato. Inicialmente, os policiais desconfiaram que ele fosse louco em se autoincriminar, mas diante do teste negativo com o reagente para cocaína, tiveram certeza de sua insanidade. Porém, para não ficar barato, deram-lhe um bom banho usando vários frascos do talco, antes de liberá-lo. Não perceberam, sequer, que aquele talco que trazia Legisnaldo era um produto adulterado destinado a fins terapêuticos, um crime hediondo.
Frustrado em sua tentativa de iniciar uma carreira criminosa, Legisnaldo finalmente aceitou o antigo convite do seu pai, um empresário de sucesso, para serem sócios numa grande fábrica de calçados. Contudo, logo encontrou um meio de realizar seus intentos criminosos:
- Pai, achei um ótimo atalho para incrementarmos os lucros da empresa. Esses empregados são uns manés. Olha só, todo mês temos que repassar para a Previdência Social cinquenta mil reais do INSS deles. Vamos embolsar uma parte desse dinheiro, pagar a prestação de um iate novo com a outra e, se um dia vierem cobrar, a gente deixa que botem na Justiça. Temos bons advogados, passarão anos na pendenga e depois, se for o caso, ou fazemos um acordo ou damos baixa nessa firma e abrimos outra!
- Esse meu filho é um empreendedor. Ele vai longe. Viva ao capitalismo! - exclamou o entusiasmado pai.
Meses se passaram, até que um dos empregados foi acidentado e descobriu que estava sem cobertura nenhuma da Seguridade Social graças à boa vontade de Legisnaldo e seu pai. Deu bode. A casa caiu. O Fisco e o INSS fizeram uma batida e constataram a apropriação indébita previdenciária, prendendo Legisnaldo em flagrante. Prejuízo ao Erário Público: trezentos mil reais.
Legisnaldo, algemado, entra na delegacia. Foi mandado a um xadrez lotado. Inventou que seu vade mecum era uma bíblia e entrou com ele na cela. Lá dentro, incrivelmente, descobriu que havia um homônimo seu preso por ter se apropriado de um televisor 14 polegadas do vizinho.
O pai - que não estava na empresa na hora da prisão -, logo que soube, acionou sua equipe de advogados. Poucas horas depois, chega um carcereiro diante da cela e pergunta:
- Quem é o preso aí de nome “Legisnaldo Penalício da Silva”?
- Sou eu! - Gritaram os dois jovens.
- É que um vai ser solto agora e o outro continuará preso, pois o juiz decretou a prisão preventiva. Bem, estou vendo aqui que são homônimos. Um é um síndico que se apropriou de um televisor emprestado pelo vizinho... e o outro um empresário que se apropriou de trezentos mil reais recolhidos dos empregados e não repassados à Previdência Social. Quem é cada um dos dois?
O pobre coitado que se apropriou do televisor berrava e se espremia enlouquecidamente nas grades da cela, jurando ser ele a pessoa que apenas se apropriou do aparelho usado do vizinho e que o que queria era, tão somente, assistir aos jogos do Flamengo. Enquanto isso, Legisnaldo rapidamente sacou seu vade mecum debaixo da axila e foi conferir.
- Um instante, por favor, seu guarda. Para responder eu preciso de um pouco de reza (abrindo o vade mecum).
Viu que em se tratando de apropriação indébita (art. 168, § 1º, do CP), mesmo que o televisor fosse restituído ao legítimo dono antes do recebimento da denúncia, seria condenado criminalmente. Teria apenas direito a uma diminuição da pena (art. 16 do CP). Após o recebimento, pior. Haveria, tão somente, uma atenuação (art. 65, III, b, do CP).
Viu também que em se tratando de empresário que se apropria do dinheiro do INSS dos seus empregados (art. 168-A, do CP), a lei exige uma representação fiscal, precedida da constituição do crédito tributário. E isso só poderia caber se não fosse possível o parcelamento do débito (art. 83 da lei 9.430/96). Tal peculiaridade tornara a prisão em flagrante de Legisnaldo ilegal. Viu também que o parcelamento poderia ser em até 15 anos (art. 1º da lei 11.941/2009) e que durante esse período sequer denúncia poderia ser oferecida (§§ 1º e 2º do art. 83 da lei 9.430/96) e, o melhor, extinguia-se a punibilidade quando o débito fosse todo pago (§ 4º, do art. 83).
Legisnaldo não pestanejou:
- Ei, seu agente! Não sei se o síndico bandido que ficou a televisão do vizinho é ele, mas o empresário sou eu!


*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

Comentários

  1. Caro Rosivaldo, a perspicácia com que narrou os fatos deixou-me emocionada. Infelizmente, às vezes, o crime compensa. Um grande abraço. Polyana Pimenta.

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  2. Muito bom a narrativa da história, contudo a forma atuante de grandes empresários ou os seus herdeiros no mundo ilícito, cosegue agir de forma mais organizada, com mais ganância e objetividade, escondendo em suas cortinas de estátutos e influência política...de toda forma..muito bom.
    Vou tomar a liberdade e publicar em meu blog
    chrystianoangelo.blogspot.com.
    Grande abraço e obrigado.

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  3. KKK Como sempre, perfeito o artigo.
    É um horror ver a diferença como o MESMO ESTADO trata tão diferentemente os referidos casos. Axiologicamente, o resultado seria exatamente o contrário.
    Os juízes devem, exatamente, promover o reencontro do Direito com os Valores... é o "tal" pospositivismo.

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  4. Para lá de excelente o artigo do Legisnaldo, e também porque não dizer que é uma ótima didática para se ensinar alunos assimilar melhor(aprender se divertindo) o direito Penal,etc. Já publiquei o artigo, com o devido crédito, no meu blog!

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  5. Muito bom!
    Esse Legisnaldo esteve na mesma escola freqüentada por alguns políticos de alguns partidos!

    Grande abraço,

    Maria Ribeiro - Brasília

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  6. kkk Legisnaldo continua com seus trambiques. Esperando os próximos capítulos. Ótima narrativa.

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  7. kkkkk Adoreiii
    Sempre supreendendo...


    Gilene Carvalho

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