Viciado é o Distante - uma história
A audiência demorava, mas já se aproximava do fim. O caso: réu que havia subtraído seis barras de chocolate, avaliadas em R$ 31,80, e as trocado por crack. Era a vez das alegações finais da defesa. O defensor público pediu a aplicação do princípio da insignificância. O acusado, um jovem mulato magricela e tatuado, trajando roupas surradas, ouvia tudo de cabeça baixa e olhar perdido. Algemas.
- Bira, é um idiota esse defensor público. Você tá vendo? Por isso que esse país não vai pra frente. Levanta a cabeça, vagabundo! Com esses bandidos não se pode alisar. - comentou em voz baixa um colega acadêmico de direito que assistia à audiência para efeito de prática judiciária. - E Bira sussurrou, reforçando:
- É um bandido safado, Miguel. Já pensou? Furtar chocolates pra trocar por crack? O negócio dele é tirar as coisas dos outros. Mas largar o vício que é bom, nada! Viciado sem-vergonha! - Logo depois, Bira olhou para o relógio. Faria isso umas dez vezes em poucos minutos. Começou a bater com a caixinha em uma das pernas. Olhou para o maço e salivou. Mas não podia sair da sala no meio da audiência, sob pena do juiz não assinar sua ficha de comparecimento.
Alguns minutos depois, a sentença. Já era hora. Condenação por furto. O juiz disse que "a consideração isolada do valor da res furtiva não é suficiente para não se aplicar a lei penal, pois o fato típico existiu, embora envolvendo seis barras de chocolate que seriam vendidas para comprar drogas (o que afasta o furto famélico) e porque se trata de réu useiro e vezeiro na prática de furtos, o que impede o reconhecimento da bagatela para não se estimular a profissão de furtador contumaz.".
- Isso é que é Justiça. Só assim esse país tem jeito. - comemorou Bira, enquanto batia a caixinha compulsivamente na coxa.
Colhida a rubrica do juiz na ficha de comparecimento da prática forense da faculdade, Bira saiu apressadamente. Ainda no corredor, finalmente pôde matar o desejo. Abriu a caixinha de Free, pegou o isqueiro e acendeu um. Deu um trago longo. Olhos fechados por uns segundos. Alívio... Trajeto até o estacionamento. Entrou no carro. Ligou o rádio. Jingle de uma marca de cerveja. Ao final, a famosa frase, dita apressadamente, "beba com moderação".
- Beba com moderação, beba com moderação... - Bira balbuciou. Riu de tudo aquilo, afinal, era quinta-feira. Happy hour com amigos da faculdade.
Na mesa do bar, assuntos triviais. Observaram um homem de meia-idade bêbado que quase caiu por sobre a mesa. Foi-se, trôpego, amparado por um constrangido garçom.
Assuntos do papo: mulheres, próximas provas da faculdade e fatos engraçados da última balada. Como eram todos amigos de longas datas, lembraram momentos bons vividos juntos, e outros nem tanto:
- E o Marcelo Pezão? Dona Dora ligou lá pra casa e pediu que fôssemos vê-lo. Amigos, temos que visitá-lo. É como irmão, cara. Irmão é irmão. - apontou Lucas. Bira acendeu outro cigarro.
- Caraca! Nunca fui numa clínica de reabilitação de dependentes químicos. - exclamou Joaquim.
- Quinho, Pezão precisa é de apoio. E amigo é pra essas coisas, não é? Soube que ele fumou até aquele violão que tanto amava. Fumou quase todas as roupas. Fumou até jóias de Dona Dora e um relógio de seu Rafael. O crack não perdoa, amigos. Ou interna ou morre. - lastimou Bira.
- Pobre Pezão. Pobre Pezão... - lamentavam. De repente, uma angústia, uma dor. O abismo. Silêncio na mesa. Bira, de mãos suadas, rapidamente acende outro cigarro. Lucas - consternado - acena ao garçom:
- Por favor, traz mais uma cerveja.
O próximo é dependente químico. Viciado é o distante. Sem-vergonha é sempre o outro.
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
Perfeito. E é engraçado como não percebemos o paradoxo demonstrado no brilhante texto. Dia desses conversava na academia e comentava um caso de excesso de prisão. Um amigo comentou que "bandido" não devia ter direito de defesa. Expliquei minha posição. Ele resmungou. Deixei de lado. Conversamos mais um pouco sobre outras coisas. Daqui a pouco ele contou o caso do caseiro de sua fazenda, um "homem de bem" que teve de passar algumas horas em uma cadeia "nojenta" porque portava uma arma sem autorização. Contratou um advogado particular porque ele não poderia passar por aquela humilhação... Lembrei que o caso de excesso de prazo que eu havia relatado era de um porte de arma e o cidadão estava preso há quase quatro meses...
ResponderExcluirSou acadêmico de direito e quando me formar pretendo militar na seara penal, tenho pensamentos bem modernos acerca da dignidade do preso etc...
ResponderExcluirAo realizar alguns comentários perante pessoas que não estudam direito por vezes sou vítima de preconceito. Me chamam de revolucionário por querer defender "bandido". Ora, revolucionário é aquele que defende os direitos constitucionais ou aquele que diz: "bandido bom é bandido morto"?
E pior, alguns bacharelandos pensam como elas.
Para finalizar, sempre digo as pessoas a seguinte frase: Se fosse seu filho você iria querer que ele fosse morto ao cometer um crime ou iria buscar um julgamento justo?
parabéns pela sensibilidade!
ResponderExcluirConheço muitos Biras e Miguéis, com seus discursos de programas de tv sensacionalistas.
ResponderExcluirGRANDE ROSIVALDO! Sensacional. Aviso que com ou sem (hehe) o teu consentimento, vou discutir isso com meus alunos, numa aula de Lei de Toxicos / Procedimentos que se avizinha! Forte abraco!
ResponderExcluirValeu, amigos!
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