Informativo do STF nº 586


Todas as semanas publicarei aqui no blog a suma penal dos informativos do STF, com vistas a atualizar meus leitores.




Brasília, 10 a 14 de maio de 2010 Nº 586

Ação Penal: Prefeito e Desvio de Objeto de Convênio
Por reputar comprovadas a autoria e a materialidade do delito, o Tribunal, por maioria, julgou procedente pedido formulado em ação penal instaurada pelo Ministério Público Federal PARA CONDENAR ATUAL DEPUTADO FEDERAL À PENA DE 2 ANOS E 2 MESES DE DETENÇÃO, convertida em duas penas restritivas de direito, consistente no pagamento de 50 salários-mínimos e prestação de serviços à comunidade, pela prática do crime tipificado no art. 1º, IV, do Decreto-lei 201/67 (“Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores: ... IV - empregar subvenções, auxílios, empréstimos ou recursos de qualquer natureza, em desacordo com os planos ou programas a que se destinam;”). Entendeu-se que o parlamentar, na condição de prefeito do Município de Caucaia/CE, por vontade livre e consciente, aplicara na construção de passagens molhadas recursos transferidos pelo Ministério do Meio Ambiente ao Município, mediante convênio, destinados à construção de um açude público. Salientou-se que o convênio fora assinado pelo então prefeito, assim como todos os pedidos de alteração de prazo, feitos em diversos termos aditivos, havendo em todos eles cláusulas de ratificação do objeto inicialmente conveniado. Observou-se que o então prefeito, embora ocasionalmente transferisse a respectiva administração do Município à vice-prefeita, pessoalmente mantinha sob seu comando todos os incidentes contratuais relacionados com o convênio em causa. Afastou-se, por conseguinte, o argumento de que a ordem de alteração do objeto pactuado tivesse partido exclusivamente do então secretário de infraestrutura municipal, o qual, em juízo, dissera que pedira a alteração do objeto do convênio em obediência à ordem do então prefeito. Ponderou-se que, se o convênio e mais 7 termos aditivos foram todos assinados pelo acusado, não seria razoável aceitar a tese de que uma significativa alteração da finalidade principal do projeto tivesse sido apenas em decorrência da vontade pessoal do secretário do Município. Considerou-se, ademais, a existência de notas fiscais comprovando que, antes da sétimo termo aditivo do convênio, o Município pagara construtora para a construção de uma passagem molhada. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, Presidente, que julgavam procedente o pleito, mas aplicavam penas inferiores a 2 anos e, em conseqüência, decretavam a prescrição da pretensão punitiva à vista das penas em concreto, e os Ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, que absolviam o réu, com base no art. 386, IV, do CP.
AP 409/CE, rel. Min. Ayres Britto, 13.5.2010. (AP-409)

Descaminho: Princípio da Insignificância e Quota de Isenção
Ante a incidência do PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, a Turma, por maioria, deferiu habeas corpus para determinar o trancamento de ação penal instaurada em desfavor de vendedor ambulante acusado pela suposta prática do crime de descaminho (CP, art. 334, § 1º, c), EM DECORRÊNCIA DO FATO DE HAVER SIDO SURPREENDIDO COLOCANDO À VENDA, EM CALÇADÃO DE PRAIA, PRODUTOS IMPORTADOS SEM AS RESPECTIVAS NOTAS FISCAIS. RESSALTOU-SE QUE O VALOR DOS BENS SERIA DE R$ 389,00, MONTANTE ESTE INFERIOR À QUOTA DE ISENÇÃO DE TRIBUTOS, estabelecida pela Secretaria da Receita Federal, relativos à importação e à exportação de mercadorias. Vencido o Min. Marco Aurélio, que indeferia o writ por considerar que se teria, na espécie, o envolvimento de vendedores ambulantes os quais, geralmente, não portam toda a mercadoria que trazem do exterior. Ademais, aduziu que o valor em questão seria superior àquele que autoriza a extinção do executivo fiscal (R$ 100,00).
RHC 94905/CE, rel. Min. Dias Toffoli, 11.5.2010. (RHC-94905)

Prescrição da Pretensão Punitiva e Detração
A Turma indeferiu habeas corpus no qual a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro sustentava a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva, dado que, se subtraído da reprimenda o período em que a paciente estivera presa em virtude de flagrante delito, restaria configurada a extinção da punibilidade. Asseverou-se que A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DEVE OBSERVAR A PENA APLICADA, A PENA CONCRETIZADA NO TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL, SEM DIMINUIR-SE PERÍODO EM QUE O RÉU ESTEVE, PROVISORIAMENTE, SOB A CUSTÓDIA DO ESTADO (DETRAÇÃO).
HC 100001/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, 11.5.2010. (HC-100001)

Interrogatório e Repergunta a Co-réu
A DECISÃO QUE IMPEDE DE FORMA ABSOLUTA QUE O DEFENSOR DE UM DOS RÉUS FAÇA QUALQUER REPERGUNTA A OUTRO RÉU OFENDE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA AMPLA DEFESA, DO CONTRADITÓRIO E DA ISONOMIA. Com base nesse entendimento, a Turma, por maioria, deferiu em parte habeas corpus para anular a instrução do processo principal a partir do interrogatório, inclusive, e, em conseqüência, a condenação do paciente pela prática do crime de associação para o tráfico de drogas entre Estados da Federação (Lei 11.343/2006, art. 35, c/c o art. 40, V). Ressaltou-se que a nova sistemática processual penal passou a dispor que, após as perguntas formuladas pelo juiz ao réu, podem as partes, por intermédio do magistrado, requerer esclarecimentos ao acusado (CPP, art. 188, com a redação dada pela Lei 10.792/2003). Consignou-se que, no caso, a impetração demonstrara o prejuízo sofrido pela defesa e que não se resignara com o indeferimento, pelo juízo de 1º grau, do pedido de formulação de reperguntas a co-réu, o que fora registrado e protestado em ata de audiência, sendo suscitada a nulidade ainda em sede de apelação e perante o STJ. Rejeitou-se, por outro lado, a pretensão relativamente ao delito de tráfico de drogas (Lei 11.343/2006, art. 33), porquanto a condenação estaria fundamentada em diversos elementos de prova que não o interrogatório dos réus. Vencido, no ponto, o Min. Marco Aurélio que deferia o writ em maior extensão, por reputar que a inobservância da forma prevista no art. 188 do CPP implicaria nulidade, pouco importando as provas posteriores, uma vez que, sendo o defeito precedente às demais provas, as contaminaria. Estenderam-se os efeitos da concessão da ordem ao co-réu.
HC 101648/ES, rel. Min. Cármen Lúcia, 11.5.2010. (HC-101648)

HC - Julgamento - Relator - Competência Monocrática - Legitimidade - Soberania do Veredicto do Júri (Transcrições)

HC 84486/SP*

RELATOR: Min. Celso de Mello

EMENTA: “HABEAS CORPUS”. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONSOLIDADA QUANTO À MATÉRIA VERSADA NA IMPETRAÇÃO. POSSIBILIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE O RELATOR DA CAUSA DECIDIR, MONOCRATICAMENTE, A CONTROVÉRSIA JURÍDICA. COMPETÊNCIA MONOCRÁTICA DELEGADA, EM SEDE REGIMENTAL, PELA SUPREMA CORTE (RISTF, ART. 192, “CAPUT”, NA REDAÇÃO DADA PELA ER Nº 30/2009). ATRIBUIÇÃO ANTERIORMENTE CONSAGRADA NO ORDENAMENTO POSITIVO BRASILEIRO (LEI Nº 8.038/90, ART. 38; CPC, ART. 544, § 4º). AUSÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE.

ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO JULGAMENTO EMANADO DO TRIBUNAL DO JÚRI. CONDENAÇÃO PENAL. GARANTIA CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DO VEREDICTO DO CONSELHO DE SENTENÇA. RECURSO DE APELAÇÃO (CPP, ART. 593, III, “D”). DECISÃO DO JÚRI CONSIDERADA MANIFESTAMENTE INCOMPATÍVEL COM A PROVA DOS AUTOS. PROVIMENTO DA APELAÇÃO CRIMINAL. SUJEIÇÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO. POSSIBILIDADE. ACÓRDÃO PLENAMENTE FUNDAMENTADO. AUSÊNCIA DE OFENSA À SOBERANIA DO VEREDICTO DO JÚRI. RECEPÇÃO, PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988, DO ART. 593, III, “D”, DO CPP. EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS. INVIABILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA DO “HABEAS CORPUS”. PEDIDO INDEFERIDO.

DECISÃO: Registro, preliminarmente, por necessário, que o Supremo Tribunal Federal, mediante edição da Emenda Regimental nº 30, de 29 de maio de 2009, delegou expressa competência ao Relator da causa, para, em sede de julgamento monocrático, denegar ou conceder a ordem de “habeas corpus”, “ainda que de ofício”, desde que a matéria versada no “writ” em questão constitua “objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal” (RISTF, art. 192, “caput”, na redação dada pela ER nº 30/2009).
Ao assim proceder, fazendo-o mediante interna delegação de atribuições jurisdicionais, esta Suprema Corte, atenta às exigências de celeridade e de racionalização do processo decisório, limitou-se a reafirmar princípio consagrado em nosso ordenamento positivo (RISTF, art. 21, § 1º; Lei nº 8.038/90, art. 38; CPC, art. 544, § 4º) que autoriza o Relator da causa a decidir, monocraticamente, o litígio, sempre que este referir-se a tema já definido em “jurisprudência dominante” no Supremo Tribunal Federal.
Nem se alegue que essa orientação implicaria transgressão ao princípio da colegialidade, eis que o postulado em questão sempre restará preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao controle recursal dos órgãos colegiados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 181/1133-1134, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - AI 159.892-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
A legitimidade jurídica desse entendimento decorre da circunstância de o Relator da causa, no desempenho de seus poderes processuais, dispor de plena competência para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, justificando-se, em conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar (RTJ 139/53 - RTJ 168/174-175 - RTJ 173/948), valendo assinalar, quanto ao aspecto ora ressaltado, que o Plenário deste Tribunal, ao apreciar questão de ordem, em recentíssima decisão (HC 96.821/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, 14/04/2010), reafirmou a possibilidade processual do julgamento monocrático do próprio mérito da ação de “habeas corpus”, desde que observados os requisitos estabelecidos no art. 192 do RISTF, na redação dada pela Emenda Regimental nº 30/2009.
Tendo em vista essa delegação regimental de competência ao Relator da causa, impõe-se reconhecer que a controvérsia ora em exame ajusta-se à jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em análise, o que possibilita seja proferida decisão monocrática sobre o litígio em questão.
Passo, desse modo, a examinar a pretensão ora deduzida na presente sede processual.
A impetração insurge-se contra decisão que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 360/380):

“‘HABEAS CORPUS’. CRIME CONTRA A VIDA. JULGAMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI. ANULAÇÃO DO JULGAMENTO, POR CONTRARIEDADE À PROVA DOS AUTOS. PEDIDO DE ANULAÇÃO DO ACÓRDÃO QUE DETERMINOU O NOVO JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI, AO ARGUMENTO DE INVASÃO DA COMPETÊNCIA DO JÚRI E INCURSÃO NO MÉRITO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.
1. Resultando do acórdão impugnado que o provimento do apelo para submissão do réu a novo julgamento pelo Tribunal do Júri decorreu da existência de uma única vertente da verdade dos fatos emergente da prova, contrariada pela decisão dos jurados, não há falar em nulidade do acórdão impugnado, por não usurpada a competência.
2. Os apelos fundados no artigo 593, inciso III, alínea ‘d’, do Código de Processo Penal, pela própria natureza de sua motivação, não apenas facultam, mas, sim, determinam o exame do conjunto da prova, único capaz de ensejar a constatação da existência de mais de uma vertente hipotética da verdade dos fatos.
3. Ordem denegada.”
(HC 20.608/SP, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO - grifei)

O Ministério Público Federal, em pronunciamento da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. MARIO JOSÉ GISI, formulou parecer cuja ementa bem resume tal manifestação (fls. 468/478):

“‘HABEAS CORPUS’. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. ABSOLVIÇÃO PELO CONSELHO DE SENTENÇA. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. DETERMINAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE NOVO JÚRI PELA CORTE ESTADUAL. IMPETRAÇÃO DE ‘HABEAS CORPUS’ PELO PACIENTE PERANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ALEGAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE DUAS VERSÕES POSSÍVEIS COM BASE NO ACERVO PROBATÓRIO. NECESSIDADE DE EXAME APROFUNDADO DE PROVAS. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.
- O ‘habeas corpus’ não constitui via adequada para a análise aprofundada de fatos e provas.
- Pelo não conhecimento da ordem, ou pela sua denegação, acaso conhecida.” (grifei)

Entendo assistir plena razão à douta Procuradoria Geral da República, quando, examinando o fundo da controvérsia, opina pela denegação da ordem.
Com efeito, a análise dos elementos constantes dos autos evidencia que a instrução criminal ora questionada não se reveste de nulidade apta a gerar a invalidade do julgamento proferido pelo Tribunal local.
Na hipótese em exame — pretendida nulidade do acórdão motivada pela vulneração ao princípio da soberania dos veredictos do Júri —, os fundamentos invocados nesta impetração não se revelam aptos a configurar a ocorrência de qualquer situação de constrangimento, considerada, quanto a esse aspecto, a linha jurisprudencial desta Corte Suprema.
O eminente Ministro HAMILTON CARVALHIDO, Relator do pedido de “habeas corpus” formulado perante aquela Alta Corte judiciária, ao indeferir o pleito, apoiou-se, para tanto, em razões que a seguir reproduzo (fls. 371/378):

“(...) ‘habeas corpus’ contra a Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, provendo parcialmente o apelo ministerial, determinou que [...]** fosse submetido a novo Júri pelo delito de tentativa de homicídio qualificado.
Consta dos autos que o paciente fora submetido a um primeiro julgamento, pronunciado pela prática do delito tipificado no artigo 121, parágrafo 2º, incisos II, III e IV, e 121, parágrafo 2º, incisos II, III e IV, combinado com o artigo 14, inciso II do Código Penal, tendo sido absolvido pelo Tribunal do Júri. A Quinta Câmara Criminal do Tribunal, em apelação interposta pelo Ministério Público, manteve a absolvição pelo homicídio consumado e anulou o veredicto quanto à tentativa de homicídio, por reputá-lo manifestamente contrário à prova dos autos, decisão essa que ora se combate.
Após o trânsito em julgado da decisão, retornaram os autos à Comarca e, no início da sessão em que ocorreria o segundo julgamento, a Promotoria de Justiça pediu a declaração da nulidade do libelo sob o fundamento de sua incompatibilidade com o acórdão proferido pela Quinta Câmara Criminal, eis que afirmara não tipificada a qualificadora do meio cruel. Foi declarada a nulidade, estendendo ao paciente tal decisão nos termos do artigo 580 do Código de Processo Penal.
No novo libelo oferecido não fora contemplada a qualificadora do meio cruel e fora alterada substancialmente a conduta imputada ao paciente, antes co-autor da tentativa e agora partícipe, razão pela qual foi impetrado em favor do paciente ‘habeas corpus’ perante o Tribunal Estadual de São Paulo, que concedeu a ordem para invalidar a decisão que anulou, a partir do libelo, a ação penal a que responde o paciente.
Alega o impetrante que ‘A soberania dos vereditos está constitucionalmente instituída no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea ‘c’ da Carta Constitucional.’ e que ‘O Código de Processo Penal delimita o alcance e a magnitude daquela soberania estabelecendo que desafia recurso de apelação a Decisão do Júri que seja ‘manifestamente contrária à prova dos autos’, nos termos expressos pelo art. 593, inciso III, alínea ‘d’’ (fl. 17).
Aduz, mais, que ‘em vez de negar a existência da versão albergada na decisão do Júri por 5 votos a 2, a Egrégia Corte Paulista interpreta a prova, como que substituindo o Júri na valoração do quadro fático, para concluir que havia nos autos elementos sustentadores do libelo sem, contudo, negar que também estivessem presentes elementos probatórios contrários a ele, os quais, por seu turno, deram lugar ao Veredicto exarado’ (fl. 18).
Pugna, liminarmente, pela suspensão do julgamento do paciente pelo Tribunal do Júri da Primeira Vara da Comarca de Registro-SP, designado para o dia 27 de março de 2002, até o julgamento do presente ‘writ’, e no mérito, pela concessão da ordem para que seja anulado o acórdão da Quinta Turma do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
É inegável que à instituição do Júri, por força do que dispõe o artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea ‘c’, da Constituição da República, é assegurada a soberania de seus veredictos.
O artigo 593, inciso III, alínea ‘d’, do Código de Processo Penal, todavia, autoriza que, em sendo a decisão manifestamente contrária à prova dos autos, ou seja, quando os jurados decidam arbitrariamente, dissociando-se de toda e qualquer evidência probatória, é de ser anulado o julgamento proferido pelo Tribunal Popular.
De tanto, resulta que, oferecidas aos jurados vertentes alternativas da verdade dos fatos, gize-se, fundadas pelo conjunto da prova, mostra-se inadmissível que o Tribunal de Justiça, em sede de apelação, desconstitua a opção do Tribunal do Júri - porque manifestamente contrária à prova dos autos - sufragando, para tanto, tese contrária.
......................................................
Com efeito, ao que se tem dos autos, inexiste, na espécie, dupla vertente hipotética da verdade do fato fundada pela prova, eis que falta à versão do réu, ora paciente, qualquer ressonância que a confirme.
No caso concreto, a Corte Estadual, ao prover em parte o apelo do órgão ministerial, submeteu o paciente a novo julgamento em relação ao crime de homicídio tentado, ao fundamento de que a decisão dos jurados fora manifestamente contrária à prova dos autos, ‘verbis’:

‘(...)
3. Nos termos em que conhecido, procede em parte o inconformismo da acusação.
3.1. A prova convence de que [...]** fez disparos de arma de fogo contra [...]** e foi o causador do grave ferimento por ele sofrido. Não logrou matá-lo, porque o ofendido pôs-se em fuga, buscou abrigo atrás de uma moita e a perseguição que lhe foi movida não teve êxito, porque [...]** impediu a marcha do automóvel dos réus com o ônibus que dirigia. Percebendo que não poderiam prosseguir na agressão, os acusados fugiram.
[...]** disparou contra [...]** com revólver de calibre 38 e o atingiu na região posterior do tornozelo direito (fls. 324), de onde foi extraído projétil daquele calibre (fls. 70, 197-198 e 219-220).
Não sem motivo o motorista do ônibus ouviu disparos de armas diferentes (fls. 284-284v.) e [...]**, ‘office-boy’ do escritório do pai de [...]**, embora procurando proteger o filho do patrão, diz ter escutado estampidos que vinham de duas direções, uma delas próxima de seu ouvido (fls. 207v). Informação expressiva, considerando que [...]** estava a seu lado e [...]** descera do carro e se afastara para matar [...]**.
A prova pericial e esses testemunhos confirmam as declarações de [...]** de que [...]** o alvejou do interior do automóvel (fls. 13, 284-284v.) e os dois réus empunhavam armas.
Desprezando esses elementos de convicção e negando ter sido [...]** autor material da tentativa de homicídio, o Conselho de Sentença decidiu em manifesto conflito com a prova. Imperioso rescindir seu veredicto, no particular, a fim de que [...]** seja submetido a novo julgamento pela tentativa de homicídio qualificado.
(...)’ (fls. 266/267).

E, ainda, no acórdão dos embargos:

‘(...)
A decisão impugnada examinou, cumpridamente, a prova em que fundou a conclusão de ter [...]** feito disparos de arma de fogo contra [...]**, tentando matá-lo (Cf. item 3.1. do acórdão embargado - fls. 656-657). Não precisava, para satisfazer o dever de motivação, reproduzir e discutir cada uma das declarações da vítima sobrevivente e do menor [...]**, que, consideradas em seu conjunto abstraídas naturais imprecisões e nuances próprias de relatos sucessivos, antes abonavam do que infirmavam a autoria.
Porque a totalidade dos elementos de convicção idôneos desamparava o veredicto absolutório e não autorizava mais de uma opinião favorável sobre a autoria, negada pelo Júri, foi o apelo motivamente provido, embora sem a indesejável prolixidade ora reclamada.
(...)’ (fl. 116).

Tem-se, assim, da letra do acórdão, diversamente do sustentado no ‘Habeas Corpus’, que o provimento do apelo para submissão do réu a novo julgamento pelo Tribunal do Júri, resultou da existência de uma única vertente da verdade dos fatos emergente da prova, contrariada pela decisão dos jurados, não havendo falar em nulidade do acórdão impugnado, por não usurpada a competência.
De resto, vale gizar, que os apelos fundados no artigo 593, inciso III, alínea ‘d’, do Código de Processo Penal, pela própria natureza de sua motivação, não apenas facultam, mas, sim, determinam o exame do conjunto da prova, único capaz de ensejar a constatação da existência de mais de uma vertente hipotética da verdade dos fatos.” (grifei)

Cabe assinalar que esse entendimento tem o beneplácito da douta Procuradoria Geral da República, que, no caso ora em exame, manifestou-se, em fundamentado pronunciamento do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. MÁRIO JOSÉ GISI (fls. 468/478), pela denegação do pedido de “habeas corpus”, como resulta claro da seguinte passagem de seu parecer (fls. 472/477):

“O pleito da impetrante não merece prosperar.
Busca o impetrante demonstrar que a decisão absolutória proferida pelo Júri encontra-se albergada pelo acervo probatório contido nos autos, não havendo razão para o novo julgamento determinado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, sob pena de ofensa ao princípio da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri.
Entretanto, é cediço que o rito especial e sumário do ‘writ’ não se revela como o meio processualmente adequado ao reexame do conjunto fático-probatório, mormente em se tratando de debate acerca das provas testemunhal e pericial produzidas no curso da instrução criminal.
Ainda que assim não fosse, não vislumbramos nos autos qualquer ofensa ao princípio do devido processo legal, afronta à competência do Tribunal do Júri nem tampouco violação ao princípio da soberania dos veredictos em face da decisão que determinou a realização de novo julgamento popular.
É que, como se depreende do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a decisão do Conselho de Sentença mostrou-se contraditória com relação às provas produzidas. O acórdão fez menção explícita às provas que levaram à conclusão de que o acervo probatório não podia ter levado à absolvição do paciente:
.......................................................
Ademais, restou devidamente refutada a tese da defesa segundo a qual seria contraditório imputar aos dois co-réus a autoria material do delito, senão vejamos:

‘Não colide com a prova a afirmação de que [...]** foi co-autor da tentativa de homicídio contra [...]**.
[...]** matou [...]** com arma tipo cartucheira (fls. 67-69) e com a mesma arma disparou contra [...]** tentando matá-lo. Ao que tudo indica, atingiu-o na perna direita, causando as dez pequenas cicatrizes circulares (típicas das produzidas por ferimentos por bagos de chumbo) descritas no laudo de exame complementar. O homicídio, como já se viu, não se consumou porque a vítima fugiu e terceiro se interpôs.
De recordar que foram ouvidos disparos de armas diferentes, partidos de pontos diversos, abonando a conclusão de que os dois réus alvejaram e atingiram [...]** em fuga.
A condenação de [...]** pela tentativa de homicídio qualificado não aberra, assim, a prova produzida; antes, nela tem razoável amparo.’ (fls. 139/140)

Assim, ao que se vê, a decisão atacada fundou-se robustamente no acervo probatório presente nos autos, que não poderia ter levado à absolvição do réu; e na autorização do art. 593, § 3º, do Código de Processo Penal, que determina a realização de novo júri quando a prova dos autos contrariar nitidamente a conclusão do Conselho de Sentença.
.......................................................
Argumenta o impetrante que novo laudo pericial, produzido em momento posterior à anulação da decisão do Tribunal do Júri, atesta que o projétil extraído do tornozelo da vítima não poderia ser de calibre 38 - arma portada pelo paciente na ocasião - o que afastaria por completo a autoria do paciente.
Nesse ponto uma ponderação merece ser feita. É que não se poderia exigir do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, em verdadeiro exercício de futurologia, no julgamento da apelação criminal que determinou a realização de novo Júri, cogitasse que ‘novo’ laudo pericial, produzido por ocasião do ‘novo’ julgamento, isentaria o paciente da autoria material do delito.
Ademais, registre-se que na lógica do sistema processual vigente, o réu se defende dos fatos, e não da capitulação jurídica dada aos mesmos. Deste modo, se no curso do ‘novo’ julgamento, surgiram indícios de que o réu não tenha efetuado os disparos que alvejaram a vítima, nada impede que sua contribuição à ação tenha se dado de outro modo, isto é, como partícipe do delito. É que a autoria, por se tratar de conduta mais grave, engloba a participação. Assim, mesmo que este venha a ser absolvido da imputação de autoria material, nada impede que seja enquadrado como partícipe.” (grifei)

O exame de todos os elementos produzidos nestes autos convence-me de que não assiste razão ao ilustre impetrante, notadamente quando sustenta a vulneração, pelo acórdão ora impugnado, da norma inscrita no art. 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição, que consagrou o princípio da soberania dos veredictos do Júri.
A decisão ora questionada apresenta-se plenamente fundamentada quanto à indicação das razões de fato e de direito que motivaram o pronunciamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e de que resultou a correta invalidação da absolvição penal proferida pelo Conselho de Sentença, por incompatibilidade com a prova dos autos.
Como se sabe, a nova Constituição do Brasil, promulgada em 1988, ao reconhecer a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, vinculou o Congresso Nacional à observância de determinados postulados, dentre os quais, por sua insuprimível essencialidade, o da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”).
A soberania dos veredictos do Júri — acentua HERMÍNIO ALBERTO MARQUES PORTO (“Júri”, p. 34, item n. 27, 5ª ed., 2ª tir., 1988, RT), com fundamento no magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Elementos de Direito Processual Penal”, vol. III/62, Forense) — “deve ser entendida como a ‘impossibilidade de os juízes togados se substituírem aos jurados na decisão da causa’, e, por isso, o Código de Processo Penal, regulando a apelação formulada em oposição à decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (letra d do inciso III do art. 593), estabelece que o Tribunal ‘ad quem’, dando provimento, sujeitará o réu a novo julgamento (§ 3º do art. 593) perante o Tribunal de Júri” (grifei).
Vale dizer, o princípio da soberania dos veredictos do Júri impede o Tribunal “ad quem”, ao reformar decisão emanada do Conselho de Sentença (que seja manifestamente contrária à prova dos autos), de substituí-la, em sede recursal, por um pronun¬ciamento do próprio órgão colegiado de segunda instância. A mera possibilidade jurídico-processual de o Tribunal de Justiça invalidar a manifestação decisória do Conselho de Sentença, quando esta se puser em situação de evidente antagonismo com a prova existente nos autos, não ofende a cláusula constitucional que assegura a soberania do veredicto do Júri, eis que, em tal hipótese, a cassação do ato decisório, determinada pelo órgão judiciário “ad quem”, não importará em resolução do litígio penal, cuja apreciação remanescerá na esfera do próprio Tribunal do Júri.
ADRIANO MARREY, ALBERTO SILVA FRANCO e RUI STOCO (“Teoria e Prática de Júri”, p. 41/44, 4ª ed., 1991, RT), apreciando essa questão em face do novo texto constitucional, expendem douto magistério:

“(...) não são os jurados ‘onipotentes’, com o poder de tornar o quadrado redondo e de inverter os termos da prova.
Julgam eles segundo os fatos objeto do processo; mas, exorbitam se decidem contra a prova. Não é para facultar-lhes a sua subversão, que se destina o preceito constitucional.
Se o veredicto do Conselho de Jurados foi ‘manifestamente contrário à prova dos autos’ (o que importa em não julgar a acusação, e sim assumir atitude arbitrária perante ela), poderá o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, se reconhecer a incompatibilidade entre o veredicto proferido e a prova que instrui os autos, determinar que o próprio Júri de novo se manifeste, sem substituir a decisão deste, por outra própria.
E nisto consiste a ‘soberania dos veredictos’ - na faculdade dos jurados decidirem por íntimo convencimento, acerca da existência do crime e da responsabilidade do acusado (matéria de fato), sem o dever de fundamentar suas conclusões.
.......................................................
Em suma, o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, apenas verifica se o veredicto se coaduna com a prova.
E, quando apura a inversão desta, pelo Conselho de Jurados, observando ser a decisão aberrante, insustentável, evidentemente divorciada dos elementos de convicção e manifestamente contrária à prova dos autos, certamente que lhe cabe, à instância superior de Justiça, corrigir a anomalia, reformando o julgamento, a fim de que o próprio Júri de novo se manifeste, dentro de sua competência, fazendo-o com o devido critério.
O Tribunal ‘ad quem’ não faz a apreciação da causa, como se sujeita ao juízo singular, nem externa julgamento próprio, não substitui a decisão recorrida, por outra, de seu entendimento, nem manifesta juízo próprio acerca da materialidade do crime, e de sua autoria.” (grifei)

O eminente magistrado paulista, PAULO LUCIO NOGUEIRA (“Curso Completo de Processo Penal”, p. 318, 7ª ed., 1993, Saraiva) — após ressaltar, com fundamento na jurisprudência dos Tribunais (RT 412/379 - RT 415/93 - RT 427/461), que não se compreende a instituição do Júri sem sua soberania —, define o exato alcance da cláusula constitucional inscrita no art. 5º, XXXVIII, “c”, da Carta Política:

“A soberania dos veredictos consiste, justamente, na impossibilidade de reforma do julgamento do Júri Popular, pelo Tribunal de Justiça, pelo mérito, pois o Tribunal só pode remeter a novo Júri, uma única vez, não se admitindo segunda apelação pelo mesmo motivo, sendo indiferente ter sido da parte contrária a interposição do apelo anterior (RT 630/338).” (grifei)

Essa noção ministrada pela doutrina, por tal razão, só faz acentuar o valor relativo da soberania do veredicto emanado do Conselho de Sentença, cujos pronunciamentos não se revestem, por isso mesmo, de intangibilidade jurídico-processual.
Não obstante reformáveis as decisões emanadas do Júri, é preciso salientar — até mesmo para tornar efetivo o respeito ao princípio constitucional da soberania dos seus veredictos — que deve ser excepcional, como já pôde advertir este Supremo Tribunal Federal, o provimento do recurso de apelação interposto dos atos decisórios proferidos pelo Conselho de Sentença (RTJ 48/324-325, Rel. Min. EVANDRO LINS).
O sentido da cláusula constitucional inerente à soberania dos veredictos do Júri não se confunde, em nosso direito positivo, com a noção de absoluta irrecorribilidade das decisões proferidas pelo Conselho de Sentença. Bem o demonstrou, já na vigência da Constituição de 1946 — que igualmente consagrara, de modo explícito, essa prerrogativa institucional do Júri — o saudoso JOSÉ FREDERICO MARQUES (“A Instituição do Júri”, vol. I, p. 40/41, item n. 3, 1963, Saraiva):

“Tal exegese, além de condenada pela hermenêutica jurídica, tem, ao demais, outro ponto fraco: dá ao vocábulo soberania o sentido absoluto e rígido de poder sem contraste e supremo.
Soberania dos veredictos é uma expressão técnico-jurídica que deve ser definida segundo a ciência dogmática do processo penal, e não de acordo com uma exegese de lastro filológico, alimentada em esclarecimentos vagos de dicionários.
Se soberania do Júri, no entender da ‘communis opinio doctorum’, significa a impossibilidade de outro órgão judiciário se substituir ao Júri na decisão de uma causa por ele proferida - soberania dos veredictos traduz, ‘mutatis mutandis’, a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados, ser substituída por outra sentença sem esta base.
Os veredictos são soberanos, porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva.
O problema se situa, assim, no campo da competência funcional. Sobre a existência de crime e responsabilidade do réu, só o Júri pode pronunciar-se, o que faz através de veredictos soberanos. Sobre a aplicação da pena, decide, não soberanamente, o juiz que preside o Júri. Aos tribunais superiores, o objeto do juízo, na sua competência funcional, se restringe à apreciação sobre a regularidade do veredicto, sem o substituir, mas pronunciando ou não pronunciando o ‘sententia rescindenda sit’. No tocante à decisão do Juiz togado, a competência funcional será de grau, podendo assim a jurisdição superior retificá-la (art. 593, § 1º).
O Tribunal, portanto, não decide sobre a pretensão punitiva, mas apenas sobre a regularidade do veredicto.” (grifei)

O princípio constitucional da soberania dos veredictos do Júri consiste, em suma, na inalterabilidade, quanto ao mérito, pelo Tribunal “ad quem”, da decisão emanada do Conselho de Sentença.
Desse modo, os magistrados togados que compõem o órgão colegiado de segundo grau não podem — precisamente em atenção ao postulado da soberania dos veredictos — substituir-se aos jurados, para, na hipótese de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, procederem, eles mesmos, à própria apreciação do “meritum causae”. Veda-o o postulado da soberania do veredicto.
O poder da instância jurisdicional “ad quem” limita-se, portanto, nos casos de impugnação recursal com fundamento no art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, à simples invalidação do veredicto emanado do Júri e à conseqüente submissão do acusado a novo julgamento pelo Tribunal Popular, sempre observada, no entanto, a restrição contida no art. 593, § 3º, “in fine”, do referido Código, que veda a admissibilidade de segunda apelação pelo mesmo motivo (RTJ 51/31 - RTJ 114/408).
A colenda Primeira Turma, ao julgar o HC 68.658/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 139/891), teve o ensejo, ao examinar a questão ora suscitada nesta sede processual, de repelir a alegada incompatibilidade do art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal com o texto da nova Constituição:

“A soberania dos veredictos do Júri - não obstante a sua extração constitucional - ostenta valor meramente relativo, pois as manifestações decisórias emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade jurídico-processual.
A competência do Tribunal do Júri, embora definida no texto da Lei Fundamental da República, não confere a esse órgão especial da Justiça comum o exercício de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em conseqüência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos.
A apelabilidade das decisões emanadas do Júri, nas hipóteses de conflito evidente com a prova dos autos, não ofende o postulado constitucional que assegura a soberania dos veredictos desse Tribunal Popular. Precedentes.”

Esse entendimento, de resto, reflete a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que, sob a égide da vigente Constituição, tem assim reiteradamente decidido:

“Sentido da garantia constitucional da soberania do Júri.
Sob o império da Constituição de 1946, que, em seu artigo 141, § 28, garantia - como a atual - a soberania dos veredictos do Júri, se teve por constitucional a apelação do Ministério Público que visava a anular a decisão do Júri e a mandar o réu a novo julgamento por ele, em virtude de nulidade posterior à pronúncia ou de aquela decisão ser manifestamente contrária à prova dos autos.
‘Habeas corpus’ indeferido.”
(HC 66.954/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES - grifei)

“‘HABEAS CORPUS’. Soberania do júri. Artigo 5º, inciso XXXVIII da Constituição. A soberania do veredito dos jurados não exclui a recorribilidade de suas decisões, sendo assegurada com a devolução dos autos ao Tribunal do Júri, para que profira novo julgamento, uma vez cassada a decisão recorrida.
‘Habeas corpus’ denegado.”
(HC 67.271/SP, Rel. Min. CARLOS MADEIRA - grifei)

“‘HABEAS CORPUS’. Garantia constitucional da soberania dos veredictos do JÚRI. Norma constitucional vigente (art. 5º, XXXVIII, c) igual à da Constituição de 1946 (art. 141, § 28), sob império da qual foi elaborada a Lei nº 263/48, agora impugnada e considerada constitucional. Ordem denegada.”
(HC 67.531/SC, Rel. Min. PAULO BROSSARD - grifei)

“Não fere a garantia da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri (Constituição, art. 5º, XXXVIII, ‘c’), o cabimento da apelação, contra suas decisões, por se mostrarem manifestamente contrárias às provas dos autos (Cód. Proc. Penal, art. 593, III, ‘d’).”
(HC 68.219/MG, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI - grifei)

“‘HABEAS CORPUS’ - JÚRI - GARANTIA CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DO VEREDICTO DO CONSELHO DE SENTENÇA - RECURSO DE APELAÇÃO (CPP, ART. 593, III, ‘D’) - DECISÃO DO JÚRI CONSIDERADA MANIFESTAMENTE INCOMPATÍVEL COM A PROVA DOS AUTOS - PROVIMENTO DA APELAÇÃO CRIMINAL - SUJEIÇÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO - POSSIBILIDADE - AUSÊNCIA, EM TAL HIPÓTESE, DE OFENSA À SOBERANIA DO VEREDICTO DO JÚRI - RECEPÇÃO, PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988, DO ART. 593, III, ‘D’, DO CPP - ALEGAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DA PERSECUÇÃO PENAL - PROVA DA MATERIALIDADE DO CRIME E DE EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS IDÔNEOS DA AUTORIA DO FATO DELITUOSO - EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS - INVIABILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA DO ‘HABEAS CORPUS’ - EXISTÊNCIA DE EXAME DE CORPO DE DELITO DIRETO - ALEGAÇÃO DE IMPRESTABILIDADE DO LAUDO PERICIAL - INOCORRÊNCIA - EXAME TÉCNICO ELABORADO POR PROFISSIONAIS MÉDICOS - RECONHECIMENTO DE OCORRÊNCIA DE VESTÍGIOS MATERIAIS PECULIARES À PRÁTICA DO CRIME DE ABORTO - PEDIDO INDEFERIDO.”
(HC 70.193/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

“DIREITO PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’. TRIBUNAL DO JÚRI. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. SOBERANIA DOS VEREDICTOS NÃO VIOLADA. LIMITE DE ATUAÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI E DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. DENEGAÇÃO.
1. A soberania dos veredictos do tribunal do júri não é absoluta, submetendo-se ao controle do juízo ‘ad quem’, tal como disciplina o art. 593, III, ‘d’, do Código de Processo Penal.
2. Conclusão manifestamente contrária à prova produzida durante a instrução criminal configura ‘error in procedendo’, a ensejar a realização de novo julgamento pelo tribunal do júri.
3. Não há afronta à norma constitucional que assegura a soberania dos veredictos do tribunal do júri no julgamento pelo tribunal ‘ad quem’ que anula a decisão do júri sob o fundamento de que ela se deu de modo contrário à prova dos autos.
4. Sistema recursal relativo às decisões tomadas pelo tribunal do júri é perfeitamente compatível com a norma constitucional que assegura a soberania dos veredictos.
5. Juízo de cassação da decisão do tribunal do júri, de competência do órgão de 2º grau do Poder Judiciário (da justiça federal ou das justiças estaduais), representa importante medida que visa impedir o arbítrio.
6. A decisão do Conselho de Sentença do tribunal do júri foi manifestamente contrária à prova dos autos, colidindo com o acervo probatório produzido nos autos de maneira legítima.
7. ‘Habeas corpus’ denegado.”
(HC 88.707/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE - grifei)

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’. TRIBUNAL DO JÚRI. DECISÃO DOS JURADOS CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. ART. 213 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. APELAÇÃO PROVIDA. REABERTURA DA AÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INOCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA.
I - A prova testemunhal produzida no Tribunal do Júri, em afronta ao disposto no art. 213 do CPP, foi determinante para a absolvição do réu pelo corpo de jurados.
II - Decisão do Tribunal de Justiça que determina a realização de novo júri, por entender que a decisão contrariou a prova dos autos, não constitui constrangimento ilegal.
III - O ‘habeas corpus’ não constitui instrumento hábil para o trancamento da ação penal, visto que não admite o reexame de fatos e provas.
IV - Ordem denegada.”
(HC 90.938/RJ, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI- grifei)

“‘HABEAS CORPUS’. PROCESSUAL PENAL. JÚRI. ABSOLVIÇÃO. DECISÃO CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. CASSAÇÃO. AUSÊNCIA DE AFRONTA À SOBERANIA TRIBUNAL DO JÚRI.
Sentença absolutória com fundamento em testemunho isolado de que o paciente não estava no local do crime. Acervo probatório consistente, imputando-lhe a autoria do delito de homicídio. Legitimidade da cassação do veredicto do Júri, por contrariedade à prova dos autos. Inexistência de ofensa à soberania da decisão do Tribunal Popular.
Ordem denegada.”
(HC 92.812/SP, Rel. Min. EROS GRAU - grifei)

“DIREITO PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM ‘HABEAS CORPUS’. APELAÇÃO. SOBERANIA DOS VEREDICTOS DO TRIBUNAL DO JÚRI. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. IMPROVIMENTO.
1. A questão central, neste recurso ordinário, diz respeito à possível violação à garantia da soberania dos veredictos do tribunal do júri no julgamento do recurso de apelação da acusação, nos termos do art. 593, III, ‘d’, do Código de Processo Penal.
2. A soberania dos veredictos do tribunal do júri não é absoluta, submetendo-se ao controle do juízo ‘ad quem’, tal como disciplina o art. 593, III, ‘d’, do Código de Processo Penal. O fundamento do voto do relator da apelação foi exatamente o de que o julgamento pelo corpo dos jurados se realizou de modo arbitrário, sem obedecer parâmetros respaldados nos elementos de prova constantes dos autos.
3. Caso os jurados alcancem uma conclusão manifestamente contrária à prova produzida durante a instrução criminal e, que, portanto, consta dos autos, o ‘error in procedendo’ deverá ser corrigido pelo Tribunal de Justiça.
4. Esta Corte tem considerado não haver afronta à norma constitucional que assegura a soberania dos veredictos do tribunal do júri no julgamento pelo tribunal ‘ad quem’ que anula a decisão do júri sob o fundamento de que ela se deu de modo contrário à prova dos autos (HC 73.721/RJ, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 14.11.96; HC 74.562/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 06.12.96; HC 82.050/MS, rel. Min. Maurício Correa, DJ 21.03.03).
5. O sistema recursal relativo às decisões tomadas pelo tribunal do júri é perfeitamente compatível com a norma constitucional que assegura a soberania dos veredictos (HC 66.954/SP, rel. Min. Moreira Alves, DJ 05.05.89; HC 68.658/SP, rel. Min. Celso de Mello, RTJ 139:891, entre outros).
6. O juízo de cassação da decisão do tribunal do júri, de competência do órgão de 2º grau do Poder Judiciário (da justiça federal ou das justiças estaduais), representa importante medida que visa impedir o arbítrio, harmonizando-se com a natureza essencialmente democrática da própria instituição do júri.
7. O ‘habeas corpus’ não pode ser utilizado, em regra, como sucedâneo de revisão criminal.
8. Recurso ordinário improvido.”
(RHC 93.248/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE - grifei)

Impende ressaltar que a presente impetração apóia-se, ainda, em outros fundamentos: (a) “(...) tanto algumas declarações da própria vítima, [...]**, quanto da testemunha [...]**, davam pleno suporte à decisão do Júri, ou seja, AFIRMANDO QUE [...]** NÃO ATIROU EM NINGUÉM (...)” (fls. 23 - grifei); (b) haveria elementos probatórios absolutamente idôneos e suficientes para demonstrar que a decisão dos Senhores Jurados não foi manifestamente contrária à prova dos autos; e (c) “(...) a prova técnica pericial produzida posteriormente à anulação do Júri, com vistas à realização do novo julgamento (DOCUMENTO DE Nº 23 ACOSTADO À IMPETRAÇÃO PERANTE O E. S.T.J.), veio aos autos para SOTERRAR POR COMPLETO O ÚNICO ELEMENTO TÉCNICO EM QUE SE APOIARA O V. ACÓRDÃO AO ANULAR O JÚRI, atestando, com todas as letras, QUE NÃO PODERIA SER DE CALIBRE NOMINAL 38 AQUELE PROJÉTIL EXTRAÍDO DO TORNOZELO DA VÍTIMA [...]**, deixando claríssimo, pois, inexistir o tal revólver que o próprio Ofendido [...]** ora viu, ora não viu, e que a testemunha [...]** disse jamais ter visto com quem quer que seja!” (fls. 30/31 - grifei).
Tenho para mim que referidos argumentos mostram-se destituídos da necessária liquidez, apta a possibilitar o exame, por esta Corte, da pretensão deduzida neste “writ”.
Ao contrário do alegado pelo ora impetrante — “(...) invocar a restrição ao exame de provas em matéria da natureza aqui posta implicaria, ‘data venia’, autorizar os EE. Tribunais Estaduais a exercer o arbítrio e a vilipendiar impunemente o princípio da soberania dos veredictos” —, a ocorrência de iliquidez quanto aos fatos alegados na impetração basta, por si só, para inviabilizar a utilização adequada da ação de “habeas corpus”, que constitui remédio processual que não admite dilação probatória, nem permite o exame aprofundado de matéria fática, nem comporta a análise valorativa de elementos de prova produzidos no curso do processo penal de conhecimento (RTJ 110/555 - RTJ 129/1199 - RTJ 136/1221 - RTJ 163/650-651 - RTJ 165/877-878 - RTJ 186/237, v.g.):

“A ação de ‘habeas corpus’ constitui remédio processual inadequado, quando ajuizada com objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento. Precedentes.”
(RTJ 195/486, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Essa é a razão pela qual o Supremo Tribunal Federal, na análise de questões que guardam semelhança com as que emergem destes autos, tem assinalado que, “No tocante à alegação de que a decisão do Júri foi manifestamente contra a prova dos autos, não pode ela ser examinada em ‘habeas corpus’, por não ser este o meio hábil para o exame aprofundado dos fatos da causa” (HC 71.382/RJ, Rel. Min. MOREIRA ALVES).
É que, “para se saber se o julgamento do Júri realmente contrariou a evidência dos autos, seria necessário o reexame aprofundado das provas, o que não é possível, no âmbito estreito do ‘habeas corpus’” (HC 73.686/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES), pois - consoante esta Suprema Corte já enfatizou - “Saber se a decisão do Conselho de Sentença foi contrária à prova dos autos demanda exame aprofundado do acervo probatório, matéria estranha à natureza do ‘habeas corpus’” (HC 72.424/RS, Rel. Min. FRANCISCO REZEK - grifei).
Cabe destacar, por necessário, decisão da colenda Primeira Turma desta Corte, que reafirmou esse mesmo entendimento:

“‘HABEAS CORPUS’. PEDIDO DE MANUTENÇÃO DA DECISÃO DO JÚRI SOB A ALEGAÇÃO DE QUE NÃO FOI CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. APRECIAÇÃO QUE DEMANDA APROFUNDADO EXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO DO FEITO.
Verificar se a decisão dos jurados é ou não manifestamente contrária à prova dos autos exige aprofundado exame do conjunto fático-probatório do feito, o que não é permitido na via estreita do ‘habeas corpus’.
Ordem denegada.”
(HC 86.735/SP, Rel. Min. AYRES BRITTO - grifei)

Em suma: o exame da controvérsia, na perspectiva sugerida pelo impetrante, supõe a interpretação do conjunto probatório emergente do processo penal de conhecimento, o que, em princípio, constitui matéria pré-excluída da via estreita do “habeas corpus” (RTJ 136/1221 - RTJ 137/198).
Registre-se, finalmente, a ocorrência de circunstância, relevante, que impede o conhecimento do RHC 84.707/SP, apensado ao presente “writ”.
Ocorre que a pretensão exposta em referida sede recursal é idêntica à ajuizada neste processo. Isso significa que tal pleito recursal mostra-se insuscetível de conhecimento, pois veicula reiteração de pedido já formulado com base nas mesmas razões e com apoio nos mesmos fundamentos deduzidos em impetração anterior (RTJ 63/37 - RTJ 81/54 - RTJ 124/213, v.g.).
Sendo assim, em face das razões expostas e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria Geral da República, indefiro o pedido de “habeas corpus” (Lei nº 8.038/90, art. 38, e RISTF, art. 21, § 1º, c/c o art. 192, “caput”), julgando prejudicado o recurso ordinário interposto, pelo ora impetrante, contra o mesmo acórdão do E. Superior Tribunal de Justiça, que denegou o “writ” constitucional lá deduzido, determinando, em conseqüência, a devolução, àquela Alta Corte judiciária, dos autos pertinentes ao RHC 84.707/SP.
Revogo, ainda, a medida cautelar anteriormente deferida (fls. 457), em ordem a viabilizar, desde que regularmente preparado o processo, o julgamento do ora paciente pelo Júri da comarca de Registro/SP (Processo/Júri nº 08/1994).
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao MM. Juiz de Direito da 1ª Vara da comarca de Registro/SP (Processo/Júri nº 08/1994).
Arquivem-se os presentes autos.

Publique-se.

Brasília, 30 de abril de 2010.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

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