Controle remoto judicial
Como sempre procuro enfatizar em minhas decisões, o sistema penal termina por deformar a atuação dos seus atores (polícia, MP, Juiz, advogados) desde a investigação, passando pelo processo de formação de culpa, até o julgamento. A subjetividade é muito maior do que imaginamos e nem percebemos, muitas vezes, que estamos a agir ao alvedrio daquilo que confessadamente defendemos. Já dizia Freud que a descoberta do inconsciente foi uma das feridas em nossa pretensão de racionalidade e onipotência.
Por isso, embora apregoemos a defesa do Estado Democrático de Direito, que no âmbito penal representa a adoção do direito penal do fato e do processo penal acusatório, com reflexos na presunção de inocência, a prática forense demonstra que terminamos, numa grande parcela dos casos, prejulgando algum acusado pelo seu histórico de vida. E não raras vezes garimpamos razões para a prisão cautelar, que não deixa de ser, no fundo, no fundo, uma antecipação de pena. Vou deixar de lado neste post uma abordagem ideológica para entrar um pouco na psicanálise (se bem que Slavoj Zizek faz um link entre Marx e Freud). Nossos preconceitos e preconcepções sobre os estereótipos dos réus e sobre “o lugar de cada um” na sociedade tem uma força muito grande na condução de nossas decisões. Há uma cisão entre nós, "pessoas de bem", e eles, "os infratores". A possibilidade de percepção e consideração da alteridade fica bloqueada. Não tratamos como se estivéssemos no mesmo patamar de dignidade. Falo isso fazendo uma autocrítica. Eu mesmo só de uns poucos anos para cá fui perceber isso.
Lembro que no início da vida na toga era comum eu dar lições de moral nos acusados. Certa vez me irritei com um réu que mentia descaradamente. Queria “consertá-lo”, fazê-lo ver a beleza moral do que seria um comportamento como o esperado pela sociedade. Após algumas leituras que me foram muito importantes (Streck e Alexandre Morais da Rosa foram dois deles, com passagens por Dussel, Foucault, Lacan, Freud, Jung e tantos outros humanistas) é que passei a perceber isso. Onde estava minha sensibilidade social e a capacidade de enxergar o outro, entender sua história de vida, seus horizontes culturais, afetivos e emocionais, suas contingências, suas idiossincrasias? Enfim, fazer valer a frase de Ortega & Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias”? Estava guardada no fundo do baú, junto com outras reminiscências inconfessáveis.
Recordo que durante a adolescência e a juventude eu era ligado aos movimentos sociais e participei ativamente de grêmios estudantis, no colégio, e diretórios acadêmicos, na faculdade. O que houve de errado? O que aconteceu que fez imergir essa consciência?
Posso hoje atribuir muito disso aos estudos para os concursos. À época não me dei conta inteiramente, mas o perfil que se busca de um concurseiro é o conhecimento bancário, acrítico, como se o candidato fosse um receptáculo de onde os membros da comissão retirariam os conhecimentos de pontos específicos do programa. Ademais, busca-se um nível de concentração e de estresse desumanos, pois em cada frase pode haver uma escaramuça, uma casca de banana. Discutir justiça? Nada disso. Não se busca a reflexão. É pura flexão.
Assim, precisamos saber o que diz a letra fria da lei (incluindo até a sorrateira colocação de vírgulas...) e a jurisprudência majoritária (as súmulas, nem se fala!). E sem que tenha dado conta, terminei por ser também “amestrado”. Trata-se de um condicionamento que não percebemos, nos moldes da Teoria Comportamental (Behaviorismo). Os próprios membros das bancas geralmente também não tem consciência disso, pois são frutos do mesmo estado de coisas. Nossos reflexos são apurados para responder prontamente aos estímulos do meio: temos que colocar direitinho no papel o que eles querem que coloquem, quer dizer, o pensamento hegemônico. Refletir, criticar? Isso não é para você, meu filho. Deixe para depois de passar no concurso... Só que aí já será tarde demais para uma boa parcela dos atores jurídicos...
E muitos terminam, como eu, por dissociar suas decisões da realidade social. Enchia a boca para falar no “fenômeno jurídico”, essa espectro que só pode ser considerado no mundo do dever-ser, como se Kelsen tivesse dito isso. O que ele disse foi que a teoria do direito é pura e que não se confunde com política, economia e outras manifestações. Mas não disse que ao julgarmos só podemos decidir com base na lei. Contudo, o formalismo jurídico apregoa isso porque é uma expressão do interesse hegemônico.
Não existe fenômeno jurídico. Existe fenômeno social a que se atribui uma nomenclatura jurídica. Se começamos a considerar a realidade social e a perceber a profundidade de nossas decisões na alteração do mundo dos fatos, faremos valer os valores primordiais da dignidade da pessoa humana e da isonomia, sem preconceitos, sem prejulgamentos. Utilizaremos o Direito como fator transformador da realidade social e não somente como engodo ou como meio de manutenção das relações desiguais de poder.
Interessante porque comecei esse post querendo falar sobre um outro assunto. Terá sido o inconsciente que se manifestou? Vocês não perdem por esperar...
Quer ler mais sobre o assunto? Sugestões:
Lenio Streck – Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – O autor mostra como funciona o senso comum teórico e os estragos dele na nossa realidade social. Põe o dedo na ferida...
Alexandre Morais da Rosa – Decisão Penal: Bricolage de Significantes - O cara é fera. Grande jurista, que transita com muita propriedade entre a filosofia, a psicanálise e o direito. Reputo hoje um dos maiores nomes do direito brasileiro.
Slavoj Zizek – El Sublime Objeto de la Ideologia – Há tradução para o português – Um dos grandes filófosos do nosso tempo, com formação psicanalítica e marxista. Tem um capítulo interessantíssimo sobre Marx e Freud, indicando que o que Freud disse sobre psicanálise bate com o que Marx havia antevisto sob o prisma da ideologia.
Henrique Dussel – Ética da Libertação - Filósofo uruguaio radicado no México - Tem um capítulo no livro que versa sobre a modernidade européia, desnudando a verdade: a riqueza da Europa vem, na maior parte, da exploração dos povos das Américas. A modernidade só foi inteiramente possível com o derramamento do sangue de milhões de americanos que aqui viviam (e vivem). Quebra o paradigma que a antropologia mais recente também denunciou, de que não há civilizações melhores ou piores.
Lacan, Freud e Foucault nem precisam de apresentações... Mas destaco em Freud dois textos: “O Mal-Estar da Civilização” e “Totem e Tabu”. Foucault: “Vigiar e Punir”...
Por isso, embora apregoemos a defesa do Estado Democrático de Direito, que no âmbito penal representa a adoção do direito penal do fato e do processo penal acusatório, com reflexos na presunção de inocência, a prática forense demonstra que terminamos, numa grande parcela dos casos, prejulgando algum acusado pelo seu histórico de vida. E não raras vezes garimpamos razões para a prisão cautelar, que não deixa de ser, no fundo, no fundo, uma antecipação de pena. Vou deixar de lado neste post uma abordagem ideológica para entrar um pouco na psicanálise (se bem que Slavoj Zizek faz um link entre Marx e Freud). Nossos preconceitos e preconcepções sobre os estereótipos dos réus e sobre “o lugar de cada um” na sociedade tem uma força muito grande na condução de nossas decisões. Há uma cisão entre nós, "pessoas de bem", e eles, "os infratores". A possibilidade de percepção e consideração da alteridade fica bloqueada. Não tratamos como se estivéssemos no mesmo patamar de dignidade. Falo isso fazendo uma autocrítica. Eu mesmo só de uns poucos anos para cá fui perceber isso.
Lembro que no início da vida na toga era comum eu dar lições de moral nos acusados. Certa vez me irritei com um réu que mentia descaradamente. Queria “consertá-lo”, fazê-lo ver a beleza moral do que seria um comportamento como o esperado pela sociedade. Após algumas leituras que me foram muito importantes (Streck e Alexandre Morais da Rosa foram dois deles, com passagens por Dussel, Foucault, Lacan, Freud, Jung e tantos outros humanistas) é que passei a perceber isso. Onde estava minha sensibilidade social e a capacidade de enxergar o outro, entender sua história de vida, seus horizontes culturais, afetivos e emocionais, suas contingências, suas idiossincrasias? Enfim, fazer valer a frase de Ortega & Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias”? Estava guardada no fundo do baú, junto com outras reminiscências inconfessáveis.
Recordo que durante a adolescência e a juventude eu era ligado aos movimentos sociais e participei ativamente de grêmios estudantis, no colégio, e diretórios acadêmicos, na faculdade. O que houve de errado? O que aconteceu que fez imergir essa consciência?
Posso hoje atribuir muito disso aos estudos para os concursos. À época não me dei conta inteiramente, mas o perfil que se busca de um concurseiro é o conhecimento bancário, acrítico, como se o candidato fosse um receptáculo de onde os membros da comissão retirariam os conhecimentos de pontos específicos do programa. Ademais, busca-se um nível de concentração e de estresse desumanos, pois em cada frase pode haver uma escaramuça, uma casca de banana. Discutir justiça? Nada disso. Não se busca a reflexão. É pura flexão.
Assim, precisamos saber o que diz a letra fria da lei (incluindo até a sorrateira colocação de vírgulas...) e a jurisprudência majoritária (as súmulas, nem se fala!). E sem que tenha dado conta, terminei por ser também “amestrado”. Trata-se de um condicionamento que não percebemos, nos moldes da Teoria Comportamental (Behaviorismo). Os próprios membros das bancas geralmente também não tem consciência disso, pois são frutos do mesmo estado de coisas. Nossos reflexos são apurados para responder prontamente aos estímulos do meio: temos que colocar direitinho no papel o que eles querem que coloquem, quer dizer, o pensamento hegemônico. Refletir, criticar? Isso não é para você, meu filho. Deixe para depois de passar no concurso... Só que aí já será tarde demais para uma boa parcela dos atores jurídicos...
E muitos terminam, como eu, por dissociar suas decisões da realidade social. Enchia a boca para falar no “fenômeno jurídico”, essa espectro que só pode ser considerado no mundo do dever-ser, como se Kelsen tivesse dito isso. O que ele disse foi que a teoria do direito é pura e que não se confunde com política, economia e outras manifestações. Mas não disse que ao julgarmos só podemos decidir com base na lei. Contudo, o formalismo jurídico apregoa isso porque é uma expressão do interesse hegemônico.
Não existe fenômeno jurídico. Existe fenômeno social a que se atribui uma nomenclatura jurídica. Se começamos a considerar a realidade social e a perceber a profundidade de nossas decisões na alteração do mundo dos fatos, faremos valer os valores primordiais da dignidade da pessoa humana e da isonomia, sem preconceitos, sem prejulgamentos. Utilizaremos o Direito como fator transformador da realidade social e não somente como engodo ou como meio de manutenção das relações desiguais de poder.
Interessante porque comecei esse post querendo falar sobre um outro assunto. Terá sido o inconsciente que se manifestou? Vocês não perdem por esperar...
Quer ler mais sobre o assunto? Sugestões:
Lenio Streck – Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – O autor mostra como funciona o senso comum teórico e os estragos dele na nossa realidade social. Põe o dedo na ferida...
Alexandre Morais da Rosa – Decisão Penal: Bricolage de Significantes - O cara é fera. Grande jurista, que transita com muita propriedade entre a filosofia, a psicanálise e o direito. Reputo hoje um dos maiores nomes do direito brasileiro.
Slavoj Zizek – El Sublime Objeto de la Ideologia – Há tradução para o português – Um dos grandes filófosos do nosso tempo, com formação psicanalítica e marxista. Tem um capítulo interessantíssimo sobre Marx e Freud, indicando que o que Freud disse sobre psicanálise bate com o que Marx havia antevisto sob o prisma da ideologia.
Henrique Dussel – Ética da Libertação - Filósofo uruguaio radicado no México - Tem um capítulo no livro que versa sobre a modernidade européia, desnudando a verdade: a riqueza da Europa vem, na maior parte, da exploração dos povos das Américas. A modernidade só foi inteiramente possível com o derramamento do sangue de milhões de americanos que aqui viviam (e vivem). Quebra o paradigma que a antropologia mais recente também denunciou, de que não há civilizações melhores ou piores.
Lacan, Freud e Foucault nem precisam de apresentações... Mas destaco em Freud dois textos: “O Mal-Estar da Civilização” e “Totem e Tabu”. Foucault: “Vigiar e Punir”...
Rosivaldo,
ResponderExcluirconfissões dessa natureza só para os grandes!
Parabéns!
Quero seu autógrafo, rsrsr! Júnior, já li algumas das tuas indicações, algumas necessito reler, mas o que sempre observei é que alguns sempre buscam desvendar e absorver em todos os pontos, o conhecimento e a vida ensina que se a sabedoria não anda junto, o conhecimento pode perde o sentido. Parabéns pela união de conhecimento e sabedoria!
ResponderExcluirAgradeço ao colega Gerivaldo. Um elogio seu para mim significa muito. Um exemplo de juiz.
ResponderExcluirRenata é uma amiga de muitos anos e que mantém um interessante blog, com postagens pra lá de inteligentes. Aliás, ambos estão nos meus favoritos.
Abraço.
Arrependo-me em não ter conhecido o blog do ilustre Dr. antes. Parabéns pela humildade em reconhecer e confessar que um dia posicionou-se dessa maneira.
ResponderExcluirGrande Rosivaldo, acabo de ler seu texto. Muito interessante, inclusive as sugestoes de leitura.
ResponderExcluirJessé-
Olá...em minha infinita busca por informação e conhecimento me deparei com seu blog, leio algumas materias publicadas aqui e me identifico bastante com muitas. Hoje o que me chamou a atenção foi seu trecho "Onde estava minha sensibilidade social e a capacidade de enxergar o outro, entender sua história de vida, seus horizontes culturais, afetivos e emocionais, suas contingências, suas idiossincrasias"? As vezes me pergunto exatamente isso e entro numa daquelas crises existenciais. Como estudante de psicologia, esse tipo de assunto é frequentemente discutido em meu grupo de estudo, e adorei seu blog por que sempre tem discussões desse tipo...direta ou indiretamente você está ajudando muitos estudantes ai pelo Brasil, levando-os a terem uma visão de mundo mais ampla. valeu!!!!
ResponderExcluirCle Rocha!!
Perfeito!
ResponderExcluirLi no Blog do Alexandre Morais da Rosa (momento em que descobri este blog e a pessoa Rosivaldo Toscano Jr. - um viva para o Alexandre \o/), vou surrupiar e postar no meu.
Exposição totalmente relevante.
Abraço