Informativo do STF nº 588


Todas as semanas publicarei aqui no blog a suma penal dos informativos do STF, com vistas a atualizar meus leitores.


Brasília, 24 a 28 de maio de 2010 Nº 588

Autorização do Uso de Algemas e Súmula Vinculante 11
O Tribunal julgou improcedente reclamação ajuizada contra ato de autoridade judiciária que, em decreto de prisão preventiva do reclamante, teria autorizado o uso de algemas. Entendeu-se que o juiz de primeiro grau não teria determinado, mas apenas autorizado o uso de algemas para o caso da autoridade policial deparar-se com alguma das hipóteses previstas na Súmula Vinculante 11 (“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”). Ademais, considerou-se o fato de o reclamante não ter demonstrado que, durante o cumprimento do mandado de prisão, a autoridade policial efetivamente fizera uso das algemas, não havendo, ainda, provas nos autos nesse sentido, o que descaracterizaria a violação ao citado verbete.
Rcl 7814/RJ, rel. Min. Cármen Lúcia, 27.5.2010. (Rcl-7814)

Ultra-Atividade da Lei Penal Benéfica e Lei 11.106/2005
A Turma, por maioria, não conheceu de habeas corpus, mas concedeu a ordem, de ofício, para declarar a extinção da punibilidade de condenado pela prática do delito descrito no art. 213, c/c os artigos 224, a, e 225, § 1º, I e § 2º (com a redação anterior às alterações promovidas pela Lei 12.015/2009), na forma do art. 71, todos do CP, em decorrência de haver constrangido, à época, menor de 12 anos de idade à prática de conjunção carnal. A impetração requeria a aplicação da lei penal vigente ao tempo dos fatos, por ser menos gravosa ao paciente, haja vista que o art. 107, VII, do CP — que previa a extinção da punibilidade pelo casamento do agente com a vítima nos crimes contra os costumes — fora revogado pela Lei 11.106/2005. Informava que, embora a conversão de união estável em casamento tivesse ocorrido em 13.3.2007, os fatos delituosos aconteceram entre agosto de 2004 e julho de 2005. Tendo em conta que a decisão impugnada fora proferida monocraticamente pelo relator do recurso especial no STJ, considerou-se que o conhecimento do writ implicaria supressão de instância. Vencido o Min. Marco Aurélio que o julgava prejudicado. Entretanto, reputou-se patente a coação ilegal e determinou-se a expedição do contramandado de prisão em favor do paciente ou, caso esta já tenha sido efetuada, a expedição do competente alvará de soltura clausulado. Reconheceu-se, em observância ao art. 5º, XL, da CF, a ultra-atividade da lei penal mais benéfica ao agente. Enfatizou-se que, diante do quadro de miséria e desamparo em que vive a vítima — a qual agora já possui dois filhos com o paciente — manter o réu encarcerado nenhum benefício poderia trazer a ela e à sociedade, cabendo, nesse contexto, invocar a garantia disposta no art. 226 da CF, que assegura, à família, base da sociedade, especial proteção do Estado.
HC 100882/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25.5.2010. (HC-100882)

HC N. 96.407-RS
RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI
EMENTA: Habeas corpus. Constitucional e processual penal. Desentranhamento das provas coligidas e apreendidas no escritório de advocacia do paciente. Extensão da empresa investigada. Mandado de busca e apreensão expedido por autoridade judicial competente. Possibilidade. 1. Restou demonstrado nos autos que o escritório de advocacia onde foram encontrados os documentos que ora se pretende o desentranhamento era utilizado pelo paciente, também, para o gerenciamento dos seus negócios comerciais. O sucesso da busca no escritório de advocacia comprova que, de fato, aquele local era utilizado como sede de negócios outros, além das atividades advocatícias. 2. É adequada a conduta dos policiais federais que estavam autorizados a cumprir os mandados de busca e apreensão, expedidos por autoridade judicial competente, “nas sedes das empresas”, com a finalidade de coletar provas relativas aos crimes investigados no inquérito. 3. Habeas corpus denegado.
* noticiado no Informativo 581

HC N. 98.606-RS
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
FURTO QUALIFICADO – ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO. Configura o furto qualificado a violência contra coisa, considerado veículo, visando adentrar no recinto para retirada de bens que nele se encontravam.
* noticiado no Informativo 585

HC N. 99.400-RJ
RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA
EMENTA: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. DECRETO DE EXPULSÃO DE ESTRANGEIRO. PEDIDO DE LIVRAMENTO CONDICIONAL. INADMISSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o decreto de expulsão, de cumprimento subordinado à prévia execução da pena imposta no País, constitui empecilho ao livramento condicional do estrangeiro condenado. 2. A análise dos requisitos para concessão do benefício de livramento condicional ultrapassa os limites estreitos do procedimento sumário e documental do habeas corpus. 3. Ordem denegada.
* noticiado no Informativo 584

HC N. 99.210-MG
RELATOR: MIN. EROS GRAU
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM ECONÔMICA. DESNECESSIDADE. EXIGÊNCIA DE BASE CONCRETA. MAGNITUDE DA LESÃO E REFERÊNCIA HIPOTÉTICA À POSSIBILIDADE DE REITERAÇÃO DE INFRAÇÕES PENAIS. FUNDAMENTOS INIDÔNEOS PARA A CUSTÓDIA CAUTELAR. 1. Prisão preventiva para garantia da ordem econômica. Ausência de base fática, visto que o paciente teve seus bens seqüestrados, não possuindo disponibilidade imediata de seu patrimônio. 2. A magnitude da lesão não justifica, por si só, a decretação da prisão preventiva. Precedentes. 3. Referências meramente hipotéticas à possibilidade de reiteração de infrações penais, sem dados concretos a ampará-las, não servem de supedâneo à prisão preventiva. Precedentes.
Ordem deferida, a fim de cassar o decreto de prisão cautelar.

HC N. 99.355-MG
RELATOR: MIN. EROS GRAU
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. FURTO PRIVILEGIADO. QUALIFICADORAS. INCIDÊNCIA CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. ART. 155, § 2º, DO CP. A incidência de qualificadoras não impede o reconhecimento do furto privilegiado desde que a pena não fique restrita à multa. Precedente.
Ordem deferida a fim de determinar que o juiz da causa efetue novo cálculo da pena reduzindo-a em virtude do reconhecimento do furto privilegiado.

Anistia - Natureza Jurídica - Repúdio à Tortura - Imprescritibilidade Penal e Convenções Internacionais (Transcrições)

(v. Informativo 584)

ADPF 153/DF*

RELATOR: Min. Eros Grau

V O T O

(s/ mérito)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Aqueles que, há 46 anos, em 1964, golpearam as instituições, derrubaram um governo legitimamente escolhido pelo voto popular e, em assim procedendo, interromperam, arbitrariamente, o processo constitucional no Brasil devem saber, onde quer que hoje se encontrem, que essa nódoa destaca, “ad perpetuam rei memoriam”, a sua responsabilidade histórica na instauração e na sustentação de um nefando regime autoritário que institucionalizou, a partir de 1968, com fundamento no AI-5 – verdadeiro codinome do arbítrio ilimitado – um sistema político que tornou viáveis práticas brutais que vieram a ser rejeitadas pela consciência ético-jurídica do Povo brasileiro e das nações civilizadas.
É preciso ressaltar que a experiência concreta a que se submeteu o Brasil, no período de vigência do regime de exceção (1964/1985), constitui, para esta e para as próximas gerações, marcante advertência que não pode ser ignorada: as intervenções pretorianas ou militares no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais. Pronunciamentos militares, quando efetivados e tornados vitoriosos, tendem, necessariamente, na lógica do regime supressor das liberdades que se lhes segue, a diminuir (quando não a eliminar) o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e da prática da cidadania.
Com o movimento de 1964, sobreveio a ruptura da ordem jurídica plasmada no texto constitucional de 1946.
Os atos institucionais constituíram, no Brasil, ao longo de todo o processo revolucionário, o meio instrumental de manifestação da vontade política e jurídica incontrastável dos comandantes do grupo que empolgou o poder. Com isso, passaram a coexistir, no País, duas ordens jurídicas superpostas: uma, de caráter institucional, dotada de eficácia condicionante, e outra, de natureza constitucional, sujeita às limitações estabelecidas pelo poder revolucionário.
Desse modo, os atos institucionais representavam categorias, estruturas ou modelos jurídicos providos de eficácia constitucional absoluta e de normatividade plena e irresistível, infensos, por sua incontrastabilidade, a qualquer controle estatal externo.
Essa imunidade dos atos revolucionários ao controle jurisdicional traduziu, no momento histórico em que o regime de exceção a instituiu, a expressão superlativa daquilo que o saudoso Professor WALDEMAR FERREIRA, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, referindo-se à autoritária Carta Política de 1937, certa vez denominou o antijudiciarismo do regime implantado pelo Estado Novo.
O “bill” de indenidade, estabelecido pela legislação de exceção, verdadeiro manto protetor das iniqüidades cometidas com fundamento nos atos institucionais, impedia que o Judiciário revisse os atos excepcionais e, desse modo, contivesse a prática expansiva do abuso do poder.
O regime de exceção, buscando a sua própria preservação institucional e sobrevivência política, vedou o controle jurisdicional dos atos praticados com fundamento nos estatutos revolucionários.
Essa proibição, que incidiu sobre o princípio da inafastabilidade da “judicial review”, constituiu a própria antítese do preceito assegurador das liberdades públicas inscrito na Carta Federal então vigente, na medida em que afastou os limites de contenção do poder, viabilizando, assim, práticas criminosas e abusivas por parte dos agentes que serviam ao regime.
Surgem, então, personagens sinistros e instituições sombrias, sob cuja égide e autoridade praticaram-se, covardemente, delitos ominosos contra os que se opunham ao regime político, e que foram submetidos a atos de inaudita vilania, como a prática do homicídio, do seqüestro, do desaparecimento forçado de pessoas e de sua eliminação física, de violência sexual e de tortura.
A tortura, além de expor-se ao juízo de reprovabilidade ético-social, revela, no gesto primário e irracional de quem a pratica, uma intolerável afronta aos direitos da pessoa humana e um acintoso desprezo pela ordem jurídica estabelecida.
Trata-se de conduta cuja gravidade objetiva torna-se ainda mais intensa, na medida em que a transgressão criminosa do ordenamento positivo decorre do abusivo exercício de função estatal.
O Brasil, consciente da necessidade de prevenir e de reprimir os atos caracterizadores da tortura, subscreveu, no plano externo, importantes documentos internacionais, de que destaco, por sua inquestionável importância, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1984; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, concluída em Cartagena em 1985, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada no âmbito da OEA em 1969, atos internacionais estes que já se acham incorporados ao plano do direito positivo interno (Decreto nº 40/91, Decreto nº 98.386/89 e Decreto nº 678/92).
Cabe reafirmar que a tortura exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, as múltiplas formas de execução desse gesto caracterizador de profunda insensibilidade moral daquele que se presta, com ele, a ofender a dignidade da pessoa humana.
O respeito e a observância das liberdades públicas impõem-se ao Estado como obrigação indeclinável, que se justifica pela necessária submissão do Poder Público aos direitos fundamentais da pessoa humana.
O conteúdo dessas liberdades – verdadeiras prerrogativas do indivíduo em face da comunidade estatal – acentua-se pelo caráter ético-jurídico que assumem e pelo valor social que ostentam, na proporção exata em que essas franquias individuais criam, em torno da pessoa, uma área indevassável à ação do Poder.
Quando se fala em tortura, a problematização da liberdade individual na sociedade contemporânea não pode prescindir de um dado axiológico essencial: o do valor ético fundamental da pessoa humana.
Daí a advertência de CELSO LAFER (“A Reconstrução dos Direitos Humanos”, p. 118, 1988, Companhia das Letras, S. Paulo):

“(...) o valor da pessoa humana, enquanto conquista histórico-axiológica, encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem. É por essa razão que a análise da ruptura – o hiato entre o passado e o futuro, produzido pelo esfacelamento dos padrões da tradição ocidental – passa por uma análise da crise dos direitos humanos, que permitiu o estado totalitário de natureza.” (grifei)

Importante rememorar, neste ponto, Senhor Presidente, a lúcida abordagem que HÉLIO PELLEGRINO fez a propósito da utilização da tortura como instrumento de repressão política (“A Tortura Política”, “in” “Jornal do Brasil”, Caderno B, de 18/04/85):

“O projeto da tortura implica uma negação total – e totalitária – da pessoa enquanto ser encarnado. O centro da pessoa humana é a liberdade. Esta, por sua vez, é a invenção que o sujeito faz de si mesmo, através da palavra que o exprime. Na tortura, o discurso que o torturador busca extrair do torturado é a negação absoluta de sua condição de sujeito livre. A tortura visa ao acesso da liberdade. A confissão que ela busca, através da intimidação e da violência, é a palavra aviltada de um sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em objeto. Ao quebrar-se frente à tortura, o torturado consuma – e assume – uma cisão que lhe rouba o uso e o gozo pacífico do seu corpo. A ausência de sofrimento corporal, ao preço da confissão que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, traído pelo próprio corpo. Sua carne apaziguada testemunha e denuncia a negação de si mesmo enquanto pessoa. A tortura, quando vitoriosa, opera no sentido de transformar sua vítima numa degradada espectadora de sua própria ruína.” (grifei)

Esta é uma verdade que não se pode desconhecer: a emergência das sociedades totalitárias está causalmente vinculada, de modo rígido e inseparável, à desconsideração da pessoa humana, enquanto valor fundante da própria ordem político-jurídica do Estado.
A tortura, nesse contexto, constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo.
Atenta a esse fenômeno, a Assembléia Nacional Constituinte, ao promulgar a vigente Constituição do Brasil, nela fez inscrever, como princípios fundamentais da nova ordem jurídica, os seguintes postulados:

“(a) a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, n. III);
(b) a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, n. II);
(c) o repúdio à tortura ou a qualquer outro tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, n. III);
(d) a punibilidade de qualquer comportamento atentatório aos direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, n. XLI);
(e) a inafiançabilidade e a impossibilidade de concessão de graça ou anistia ao crime de tortura (artigo 5º, n. XLIII);
(f) a proscrição de penas cruéis (artigo 5º, n. XLVII, e);
(g) a intangibilidade física e a incolumidade moral de pessoas sujeitas à custódia do Estado (artigo 5º, n. XLIX);
(h) a decretabilidade de intervenção federal, por desrespeito aos direitos da pessoa humana, nos Estados-membros e no Distrito Federal (art. 34, n. VII, b);
(i) a impossibilidade de revisão constitucional que objetive a supressão do regime formal e material das liberdades públicas (artigo 60, § 4º, n. IV).” (grifei)

Antes, porém, Senhor Presidente, que se operasse a redemocratização do Estado brasileiro, conquistada com a promulgação da Constituição de 1988, a luta pela reconstrução da ordem jurídico-democrática impunha, no momento histórico em que ela se processou, fossem rompidos os círculos de imunidade que resguardavam o poder autocrático depositado nas mãos dos curadores do regime e reclamava fossem superados os limites impeditivos da restauração dos direitos e das liberdades atingidos por atos revolucionários fundados na legislação excepcional então vigente.
Mostrava-se essencial, portanto, que o regime de exceção fosse neutralizado e sucedido por uma ordem revestida de plena normalidade político-institucional.
Foi por isso que sobreveio, em 1978, no contexto político que assinalou o início do processo de redemocratização do Estado brasileiro, a Emenda Constitucional nº 11, cujo art. 3º assim dispõe:

“Art. 3º. São revogados os Atos Institucionais e Complementares, no que contrariem a Constituição Federal, ressalvados os efeitos dos atos praticados com base neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial.” (grifei)

A norma constitucional referida traduziu, no momento histórico em que foi editada, um ponto de inflexão no processo revolucionário, operando, de modo virtualmente absoluto, a neutralização dos poderes excepcionais de que o Presidente da República se achava então investido, para restabelecer, em bases compatíveis com as exigências da sociedade civil, um sistema político e jurídico que guardasse fidelidade ao modelo do Estado democrático de Direito.
A Mensagem presidencial, que instruiu a proposta de Emenda em questão, assim justificou a necessidade de sua promulgação (“Revista de Informação Legislativa”, vol. 60/234-236):

“O projeto da reforma elimina do sistema legal os diplomas de exceção sem desarmar o Estado, antes dotando-o dos instrumentos necessários à defesa da sociedade e assegurando plenamente os direitos e garantias individuais.
...................................................
Creio chegado o momento, após ouvir o Conselho de Segurança Nacional, de propor sejam revogados os atos institucionais e complementares no que contrariarem a Constituição Federal, disso resultando:

a) o restabelecimento do instituto do ‘habeas corpus’ (Constituição, § 20 do art. 153);
b) o restabelecimento das garantias constitucionais ou legais da vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade (Constituição, arts. 100 e 113);
c) a extinção, entre outras, da competência atribuída ao Presidente da República para:

1) declarar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, e, em conseqüência, de o Poder Executivo correspondente legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou Leis Orgânicas dos Municípios;
2) decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição (Constituição, § 3º do art. 15);
3) suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos e cassar mandatos eletivos;
4) demitir, remover, aposentar, pôr em disponibilidade membros da Magistratura, funcionários públicos e empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista;
5) demitir, transferir para a reserva ou reformar militares e membros das polícias militares da união, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal e dos Territórios;
6) decretar e prorrogar o estado de sítio sem aprovação do Congresso Nacional;
7) banir brasileiros (Constituição, § 11 do art. 153).
...........................................
Tal o objetivo desta Proposta; visa a eliminar o arbítrio, dotando o Estado de mecanismos eficientes de defesa, nos melhores moldes do Direito; não busca na experiência de outros povos, de maior cultura e já desenvolvidos, plenos poderes para emergências. Ao contrário, procura distinguir situações, limitando o espaço sob ameaça ou atingido por perturbação, para evitar se estendam restrições as garantias constitucionais.” (grifei)

A redemocratização do Estado brasileiro, a partir desse momento, foi sendo progressivamente implementada, quer pela supressão dos núcleos residuais de elementos autoritários que ainda impregnavam a ordem jurídica nacional, quer pela recomposição do próprio estado de comunhão nacional. Com essa finalidade, sucederam-se, por soberana deliberação do Congresso Nacional, atos concessivos de anistia (Lei nº 6.683/79; Emenda Constitucional n. 26/85, art. 4º), realizadores dos generosos objetivos para os quais foi esse instituto concebido.
É nesse particular contexto histórico que surge, em 28 de agosto de 1979, a Lei nº 6.683, que concedeu anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02/09/61 e 15/08/79, “cometeram crimes políticos ou conexos com estes”, sendo relevante assinalar que, para efeito dessa medida excepcional fundada na indulgência soberana do Estado, o diploma legislativo em questão, mediante interpretação autêntica, considerou conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” (Lei nº 6.683/79, art. 1º, § 1º).
Sabemos todos que a anistia constitui uma das expressões da clemência soberana do Estado. Os seus efeitos em matéria penal são radicais, incidindo, retroativamente, sobre o próprio fato delituoso. Conseqüentemente, não pressupõe a existência de sentença penal condenatória, que, no entanto, se houver, não impedirá a incidência da lei concessiva da anistia, apta a desconstituir a própria autoridade da coisa julgada, exceto se a própria lei de anistia dispuser em sentido contrário. No caso de haver inquérito policial já instaurado, a anistia, por vedar ao Ministério Público a formação da “opinio delicti”, causa o arquivamento do procedimento investigatório (RTJ 95/953).
É certo, como sabemos, que o domínio no qual incidem, ordinariamente, as leis concessivas de anistia é o dos ilícitos políticos. Nada obstava, contudo, que essa expressiva manifestação da indulgência soberana do Estado abrangesse, também, como era possível, então, sob a égide da Carta Federal de 1969, as infrações penais de direito comum.
Na realidade, a Carta Política de 1969 estabelecia que, tratando-se de crimes políticos, a instauração do processo legislativo concernente à concessão de anistia incluía-se na esfera de iniciativa reservada ao Presidente da República, com prévia audiência do Conselho de Segurança Nacional.
Cuidando-se, no entanto, de crimes não políticos, a Carta Constitucional de 1969 conferia legitimidade concernente, em tema de concessão de anistia, também aos membros do Congresso Nacional.
Daí a observação de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo III/168-169, item n. 9, 2ª ed., 1970, RT):

“ANISTIA RELATIVA A CRIMES POLÍTICOS. – Só o Presidente da República pode propor a anistia concernente a crimes políticos. Mas, para isso, precisa de parecer do Conselho de Segurança Nacional. Qualquer outra espécie de crime escapa à regra jurídica do art. 57, VI.” (grifei)

A possibilidade jurídica de extensão da anistia a outros ilícitos penais (como os crimes de direito comum), além dos delitos de natureza política, é igualmente admitida pela doutrina, que não lhe opõe qualquer restrição, exceto aquelas que somente foram estabelecidas no texto superveniente da Constituição promulgada em 1988 (GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código Penal Comentado”, p. 542, item n. 12, 9ª ed., 2008, RT; PAULO JOSÉ DA COSTA JR., “Código Penal Comentado”, p. 322, item n. 4, 8ª ed., 2005, DPJ; ROGÉRIO GRECO, “Código Penal Comentado”, p. 200/201, 2ª ed., 2009, Impetus; E. MAGALHÃES NORONHA, “Direito Penal”, vol. 1/340, item n. 220, 31ª ed., 1995, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código Penal Anotado”, p. 322, 11ª ed., 2001, Saraiva; LUIZ REGIS PRADO, “Comentários ao Código Penal”, p. 362, item n. 4.1, 4ª ed., 2007, RT; LUIZ CARLOS BETANHO, “Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial”, vol. 1/1836, item n. 3.00, coordenação de ALBERTO SILVA FRANCO e RUI STOCO, 7ª ed., 2001, RT; LUIZ FLÁVIO GOMES e ANTONIO GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, “Direito Penal: Parte Geral”, vol. 2/924, item n. 2.2, 2007, RT), valendo referir, quanto ao aspecto ora destacado, a lição de ALOYSIO DE CARVALHO FILHO (“Comentários ao Código Penal”, vol. IV/127-130, item n. 44, 5ª ed., 1979, Forense):


“A anistia é reservada, especialmente, para os crimes políticos. Nada impede, porém, a sua decretação para crimes comuns. O recurso de graça tradicional para os delitos apolíticos é o indulto. Para os políticos ou coletivos, em geral, a anistia. Por exceção, é que compreende delitos comuns. (...).
...................................................
Omitindo a Carta Constitucional brasileira e o Código qualquer preceito sobre a natureza dos crimes anistiáveis, não há recusar essa qualidade também aos crimes comuns.” (grifei)

Vê-se, portanto, que o Congresso Nacional tinha, em 1979, a faculdade de estender o benefício da anistia às infrações penais de direito comum, vale dizer, aos ilícitos não políticos, muito embora estejam pré-excluídos, hoje, do âmbito de incidência das leis concessivas de anistia, os crimes comuns a que se refere o inciso XLIII do art. 5º da vigente Constituição.
Isso significa que se revestiu de plena legitimidade jurídico-constitucional a opção legislativa do Congresso Nacional que, apoiando-se em razões políticas, culminou por abranger, com a outorga da anistia, não só os delitos políticos, mas, também, os crimes a estes conexos e, ainda, aqueles que, igualmente considerados conexos, estavam relacionados a atos de delinqüência política ou cuja prática decorreu de motivação política.
No fundo, é preciso ter presente que a Constituição sob cuja égide foi editada a Lei nº 6.683/79, embora pudesse fazê-lo, não reservou a anistia apenas aos crimes políticos, o que conferia liberdade decisória, ao Poder Legislativo da União, para, com apoio em juízo eminentemente discricionário (e após amplo debate com a sociedade civil), estender o ato concessivo da anistia a quaisquer infrações penais de direito comum.
A Lei nº 6.683/79, ao considerar conexos, no § 1º do art. 1º, para efeito de concessão da anistia prevista no diploma em causa, “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”, promoveu verdadeira interpretação autêntica do termo “crime conexo”, em ordem a abranger, com essa cláusula de equiparação, todos os delitos de qualquer natureza, desde que relacionados a crimes políticos ou cometidos com motivação política.
Como bem ressaltado pela douta Procuradoria Geral da República, a anistia, no Brasil, tal como concedida pela Lei nº 6.683/79, “resultou de um longo debate nacional, com a participação de diversos setores da sociedade civil, a fim de viabilizar a transição entre o regime autoritário militar e o regime democrático atual” (grifei).
E foi com esse elevado propósito que se fez inequivocamente bilateral (e recíproca) a concessão da anistia, com a finalidade de favorecer aqueles que, em situação de conflitante polaridade e independentemente de sua posição no arco ideológico, protagonizaram o processo político ao longo do regime militar, viabilizando-se, desse modo, por efeito da bilateralidade do benefício concedido pela Lei nº 6.683/79, a construção do necessário consenso, sem o qual não teria sido possível a colimação dos altos objetivos perseguidos pelo Estado e, sobretudo, pela sociedade civil naquele particular e delicado momento histórico da vida nacional.
Vale reproduzir, por oportuno, trecho do parecer que o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, então na condição de Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ofereceu sobre o Projeto da lei de anistia (quando este se encontrava em tramitação no Congresso Nacional) e que constitui clara atestação de que o objetivo da proposta submetida a amplo debate nacional era, sem qualquer dúvida, o de beneficiar tanto os adversários do regime castrense quanto os agentes incumbidos da repressão:

“13. Não há, com efeito, como aceitarmos - à luz dos valores do Estado de Direito Democrático, que integram o compromisso da Ordem perante a nação - que a condenação ética do terrorismo sirva para excluir os contestatários violentos de uma ditadura dos benefícios da mesma lei de anistia, na qual a mais forte e universal condenação ética da ‘tortura policial’ não foi óbice à extensão da impunidade legal aos crimes dos que a tornaram rotina, no procedimento da repressão aos adversários do regime.
14. Ora, não há objeção retórica que possa obscurecer que a amplitude, com a qual o mencionado § 1º definiu, como conexos nos crimes políticos, ‘os crimes de qualquer natureza com eles relacionados’, tem o único sentido de prodigalizar a anistia aos homicídios, violências e arbitrariedades policiais de toda a sorte, perpetrados nos desvãos da repressão política.
15. Aliás, não é sem propósito indagar se não será a preocupação de anistiar as violências do regime o que explica que, do benefício, se tenham excluído apenas os já condenados pelos crimes de oposição violenta. Com a relativa liberdade de imprensa que já se alcançou, não há dúvida, como acentua a justificação do projeto, que, se tivessem continuidade, os processos contra os não condenados iriam ‘traumatizar a sociedade com o conhecimento de eventos que devem ser sepultados em nome da paz’: entre eles, em primeiro lugar, os relativos à institucionalização da tortura aos presos políticos.
16. Note-se que, sob esse prisma, o projeto rompe duplamente com a tradição brasileira. Restringe-se, de um lado, contra os precedentes, o alcance da anistia com relação à criminalidade política, para dela excluir - à vista da circunstância fortuita da existência de condenação - parte dos autores de alguns delitos caracterizadamente políticos, objetiva e subjetivamente. E, de outro lado, amplia-se ineditamente o conceito de crime comum conexo a crimes políticos, para beneficiar com a anistia, não apenas os delitos comuns de motivação política (o que encontra respaldo nos precedentes), mas, também, com o sentido já mencionado, os que tenham, com os políticos, qualquer tipo de relação.
17. Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro de nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da democracia.
18. De outro lado, de tal modo a violência da repressão política foi tolerada – quando não estimulada, em certos períodos, pelos altos escalões do Poder – que uma eventual persecução penal dos seus executores materiais poderá vir a ganhar certo colorido de farisaísmo.
19. Não é preciso acentuar, de seu turno, que a extensão da anistia aos abusos da repressão terá efeitos meramente penais, não elidindo a responsabilidade civil do Estado, deles decorrentes.
20. Se assim se chega, no entanto, a impor à sociedade civil a anistia da tortura oficial - em nome do esquecimento do passado para aplainar o caminho do futuro Estado de Direito - não é admissível que o ódio repressivo continue a manter no cárcere umas poucas dezenas de moços, a quem a insensatez da luta armada pareceu, em anos de desespero, a única alternativa para a alienação política a que a nação fora reduzida.” (grifei)

É certo que se mostra relativo, sob a perspectiva da interpretação jurídica, o método hermenêutico que se apóia no exame dos debates parlamentares.
Na realidade, o argumento histórico, no processo de interpretação, não se reveste de natureza absoluta nem traduz fator preponderante na definição do sentido e do alcance das cláusulas inscritas no texto da Constituição e das leis.
Esse método hermenêutico, contudo, qualifica-se como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinado texto normativo inscrito na Constituição ou nas leis, permitindo o conhecimento das razões que levaram o legislador a acolher ou a rejeitar as propostas submetidas ao exame do Poder Legislativo, tal como assinala o magistério da doutrina (CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, p. 310, 9ª ed., 1980, Forense; ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, “Processos Informais de Mudança da Constituição”, p. 40/42, 1986, Max Limonad; LUÍS ROBERTO BARROSO, “Interpretação e Aplicação da Constituição”, p. 126, 1996, Saraiva).
Daí a importância, para fins de exegese, da análise dos debates parlamentares, cujo conhecimento poderá orientar o julgador no processo de interpretação jurídica, ainda que esse critério hermenêutico não ostente, como já acentuado, valor preponderante nem represente fator que vincule o juiz no desempenho de suas funções.
Destaco, por isso mesmo, como elemento de útil compreensão das circunstâncias históricas e políticas do momento em que se elaborou a Lei de Anistia, fragmentos de manifestação de um grande Senador da República a propósito desse tema.
Em discurso proferido no Senado da República, em 17 de março de 1981, o eminente Ministro PAULO BROSSARD, então um dos grandes e notáveis líderes da Oposição ao regime militar, embora ressaltando o caráter nefasto, odioso, desprezível e inaceitável dos “excessos cometidos pelos órgãos de segurança”, que não hesitaram em matar, torturar e seqüestrar os que combateram o sistema político então imposto à nação, reconheceu, a despeito de todos esses abusos, o caráter bilateral da anistia consubstanciada na Lei nº 6.683/79, acentuando que também foram por ela alcançados, em face do que prescreve o § 1º do art. 1º, os crimes comuns praticados por agentes da repressão:

“De outro lado, tais fatos, por terem ocorrido, são hoje históricos e a anistia não os apaga da História. E se há interesse em que eles não sejam deturpados nem distorcidos (...) seria útil ponderar que na medida em que sejam eles encobertos, mais facilmente poderá haver deturpação e distorção. E se é verdade que tal pode ocorrer, quando tal intenção exista, para que a verdade seja conhecida nada melhor que sua investigação se processe e seja rigorosa e séria a apuração dela.
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Nada mais útil, eu diria mesmo, nada mais necessário, do que a investigação desses fatos, honrosos ou horrorosos, louváveis ou repulsivos; se louváveis, para que sejam louvados; se repulsivos, para que sejam abominados e nunca mais venham a ser praticados; Investigação tanto mais oportuna quando estão vivos os personagens que neles tiveram interferência ou deles participaram, de uma ou outra maneira. Com o correr do tempo, desaparecidas as pessoas que a respeito podem depor com conhecimento de causa e depondo dizer a verdade ou restaurá-la quando deturpada, crescerá a possibilidade de deturpação e distorção dos fatos, fatos que, para honra nossa, ou para nossa vergonha, entre nós aconteceram. Qualquer um, bem ou mal-intencionado, poderá divulgar versão menos verídica e mais deformada, inclusive com a intenção de denegrir a instituição militar.
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Se mazelas existiram, eufemisticamente denominadas ‘excessos’, o remédio não está em ocultá-las, porque ocultá-las seria protegê-las e protegê-las seria mantê-las, conservando-as em condições de, quiçá, virem um dia a ressurgir e proliferar. O remédio estaria em extirpá-las de modo a no organismo não ficar fibra contaminada que se reproduzisse amanhã.
Desgraçado o país que tenha medo de livrar-se dos próprios erros, porque para libertar-se deles tenha de exibi-los. Mil ve¬zes exibi-los, e expondo-os inspirar horror, para que nunca mais voltem a repetir-se, do que envergonhadamente ocultá-los e ocultando-os, protegê-los, com risco de voltarem amanhã, confiados na complacência que enseja, senão estimula os abusos.
Alega-se ter havido anistia e um Ministro, o da Aeronáutica, aludiu ao seu ‘caráter bilateral’ (...).
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A toda evidência, o projeto do Governo era mais amplo que o da Oposição num ponto: no incluir os crimes conexos (...), valendo-se de uma fórmula ilimitada (...), ao insistir na anistia também para ‘os excessos cometidos pelos órgãos de segurança’.
Só que a fórmula tinha de ser difusa e elástica, de modo a evitar o questionamento da original ‘conexão’...

‘consideram-se conexos os crimes de ‘qualquer natureza relacionados’ com crimes políticos ou ‘praticados por motivação política’.’

Para os efeitos da lei, conexos seriam os crimes DE QUALQUER NATUREZA RELACIONADOS com crimes políticos ou praticados POR MOTIVAÇÃO POLÍTICA.
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De qualquer sorte, quando o Ministro da Aeronáutica fala o ‘caráter bilateral da anistia’, ou quando o General invoca a anistia para ‘os excessos cometidos pelos órgãos de segurança’, está estampado o reconhecimento do caráter criminoso desses excessos, está explícita a sua configuração de crimes; não fora assim e descaberia anistiá-los; anistiam-se crimes.
Com a sua lucidez habitual, escreveu Barbosa Lima Sobrinho:

‘Por mais que me digam que não há anistia para torturadores, e considere até simpática a tese que assim se apresente, não tenho dúvida de que, para eles, também existe anistia, nem sei se ela teria sido decretada, se não houvesse a intenção de protegê-los com a certeza da impunidade. Nunca teria sido decretada a anistia, se ela não viesse com a intenção de ser recíproca.’ (Em torno do revanchismo, JB, 8-3-81).

Aceito a tese da conexão, admito o ‘caráter bilateral da anistia’, a que se referiu o Ministro da Aeronáutica, acolho o entendimento do General Newton Cruz, segundo o qual, vale repetir,

‘a lei da anistia, ao falar em crimes conexos, deixou bem claro que os excessos cometidos pelos órgãos de segurança durante o combate à subversão deveriam ser igualmente esquecidos.’

Está aceita a tese. Aceita, quais suas conseqüências?
Não há quem não conheça a natureza da anistia, sua motivação, sua finalidade.
Em dado momento um interesse político predomina sobre o interesse social de punir, fazendo com que a lei penal deixe de ser aplicada a certo fato, a que normalmente seria aplicada, porque ele importara na infringência dela.
Pela anistia, a lei penal deixa de incidir aqui e agora, ‘hic et nunc’; é uma espécie de revogação parcial, limitada e temporária da lei penal; por motivos de alta conveniência política, o Estado renuncia ao que é seu, o direito de punir. Os efeitos da anistia, maiores ou menores, gerais ou parciais, amplos, restritos ou condicionados, os seus efeitos são, é bem de ver-se, de ‘natureza penal’. A lei extingue a punibilidade. Antes de iniciado o processo, impede a ação penal; paralisa-a, se instaurado o processo; findo este, desfaz a própria sentença condenatória, ainda que ela tenha transitado em julgado. É uma exceção clássica ao principio clássico da divisão dos poderes. Sendo irrestrita, apaga todos os efeitos, efeitos penais, lei penal que é Não assim os civis, que são de diversa natureza e envolvem interesses de outras pessoas que não o Estado.

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Existe lei que autorize autoridade, seja civil, seja militar, a maltratar, física ou moralmente, o detento, ainda que sobre ele recaiam as suspeitas mais veementes ou as certezas mais incontestáveis?
Lei alguma existe que autorize autoridade nenhuma a infligir maus tratos a ser humano, a ofender-lhe a saúde, a torturá-lo, seja qual for o motivo, seja qual a finalidade.
Bem ao contrário, lei existe a impor como dever de toda a autoridade, toda, ‘o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário’.
No rol dos direitos individuais assegurados a brasileiros e estrangeiros aqui residentes figura o da ‘incolumidade pessoal’ como limite intransponível do poder do Estado:

‘Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário.’

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A fórmula não pode ser mais categórica, nem mais ampla. Ela é absoluta.
Inequivocamente ilegal terá sido o ato da autoridade que consistiu em maltratar pessoa presa, não importa o delito a ela imputado, ou a prova contra ela acumulada, quaisquer que tenham sido as circunstâncias; e anistiada que tenha sido a autoridade, violenta ou cruel, pela fórmula amplíssima dos ‘crimes conexos’, assim entendidos os ‘de qualquer natureza’ simplesmente porque ‘relacionados’ com crimes políticos, ou porque praticados por ‘motivos’ políticos, essa autoridade terá se livrado da responsabilidade criminal, mas não estará exonerada e muito menos isenta de reparar o dano que tenha causado à vítima da violência ou crueldade.
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Desafeto declarado de toda forma de violência, e particularmente da violência como ação política, não posso aceitar a teoria marcial que pretenderia o oblívio absoluto sobre os ‘excessos cometidos’, ou no campo aberto da luta, ou no fundo negro das masmorras.
Partidário confesso da ordem legal, entendo ser preciso incutir verdadeiro horror a essas manifestações selvagens, que rebaixam o homem, que aviltam o poder.
Houve quem entendesse que pessoa que participara da luta armada não teria direito de reclamar contra a violência sofrida na casa de torturas por ela mesma descoberta, descoberta esta que verdadeira tempestade haveria de desencadear. Não é necessário grande esforço para nesse raciocínio defrontar a velha Lei de Talião. Ao demais, se o Estado adotar os métodos dos delinqüentes, que diferença haverá entre estes e aquele?
Continuo a pensar que por mais miserável que seja o indivíduo, e por mais execrável o ser proceder, isto não lhe tira o direito, que as leis a todos asseguram, de ser tratado como ente humano, nem confere à autoridade, seja ela qual for, direito de maltratá-lo, e muito menos de torturá-lo.
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Estejam tranqüilos os torturadores. O ‘caráter bilateral da anistia’ os beneficiou: estão eles a salvo da lei penal pelos crimes que tenham cometido. O fato da tortura, porém, é inapagável. É uma nódoa histórica que a anistia desgraça¬damente não apaga. Antes apagasse. Também assim os fatos ocorridos em 35-37, denunciados pela palavra de fogo de João Mangabeira. Encheriam de horror o mundo civilizado quando revelados à Câmara, flamejava o grande orador e grande homem. Nada sucedeu. O golpe de estado de 10 de novembro veio a ser a ‘anistia’ para aqueles bárbaros. Mas não foram apagados da História e ainda hoje enchem de horror as pessoas que abominam a violência e se não afeiçoaram à crueldade.
Sirva o episódio, pelo menos, para a todos ensinar como é estéril a violência, em especial quando empregada como ação política, e em todos instilar horror à tortura, em particular quando erigida em ação de governo.” (grifei)

Reconheço que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (“Barrios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas “leis de auto-anistia”.
A razão dos diversos precedentes firmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos apóia-se no reconhecimento de que o Pacto de São José da Costa Rica não tolera o esquecimento penal de violações aos direitos fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que amparam e protegem criminosos que ultrajaram, de modo sistemático, valores essenciais protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos e que perpetraram, covardemente, à sombra do Poder e nos porões da ditadura a que serviram, os mais ominosos e cruéis delitos, como o homicídio, o seqüestro, o desaparecimento forçado das vítimas, o estupro, a tortura e outros atentados às pessoas daqueles que se opuseram aos regimes de exceção que vigoraram, em determinado momento histórico, em inúmeros países da América Latina.
É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de auto-anistia, o que torna inconsistente, para os fins deste julgamento, a invocação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Com efeito, a Lei nº 6.683/79 – que traduz exemplo expressivo de anistia de “mão dupla” (ou de “dupla via”), pois se estendeu tanto aos opositores do regime militar quanto aos agentes da repressão – não consagrou a denominada anistia em branco, que busca, unicamente, suprimir a responsabilidade dos agentes do Estado e que constituiu instrumento utilizado, em seu próprio favor, por ditaduras militares latino-americanas.
Como anteriormente ressaltado, não se registrou, no caso brasileiro, uma auto-concedida anistia, pois foram completamente diversas as circunstâncias históricas e políticas que presidiram, no Brasil, com o concurso efetivo e a participação ativa da sociedade civil e da Oposição militante, a discussão, a elaboração e a edição da Lei de Anistia, em contexto inteiramente distinto daquele vigente na Argentina, no Chile e no Uruguai, dentre outros regimes ditatoriais.
Há a considerar, ainda, o fato – que se revela constitucionalmente relevante – de que a Lei de Anistia foi editada em momento que precedeu tanto a adoção, pela Assembléia Geral da ONU, da Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984), quanto a promulgação, pelo Congresso Nacional, em 1997, da Lei nº 9.455, que definiu e tipificou, entre nós, o crime de tortura.
Essa anterioridade temporal impede que a Lei de Anistia, editada em 1979, venha a sofrer desconstituição (ou inibição eficacial) por parte desses instrumentos normativos, todos eles promulgados – insista-se - após a vigência daquele benéfico diploma legislativo.
É tão intensa a intangibilidade de uma lei de anistia, desde que validamente elaborada (como o foi a Lei nº 6.683/79), que, uma vez editada (e exaurindo, no instante mesmo do início de sua vigência, o seu conteúdo eficacial), os efeitos jurídicos que dela emanam não podem ser suprimidos por legislação superveniente, sob pena de a nova lei incidir na proibição constitucional que veda, de modo absoluto, a aplicação retroativa de leis gravosas.
É por essa razão que PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969”, tomo II/51, item n. 23, 2ª ed., 1970, RT), em magistério lapidar sobre o tema, observa que a eficácia jurídica resultante de qualquer lei de anistia legitimamente formulada (como o foi a Lei nº 6.683/79) revela-se insuprimível, ainda que revogado o diploma legislativo que a concedeu:

“Pode o Poder Legislativo revogar a lei de anistia? Dir-se-á que êle a fêz, e êle a desfaz. Sim, e não. Sim, porque é sempre possível revogar-se uma lei; não, porque os efeitos dela não se revogam, porque seria fazer retroativa a lei penal. Se a lei ainda não produziu os efeitos (...), é possível revogar-se a lei de anistia. Em suma: a lei de anistia é revogável, derrogável; mas os seus efeitos realizados são inabluíveis.” (grifei)

Cumpre ter presente, por oportuno, a advertência, sempre atual, de RUI BARBOSA (“Obras Completas de Rui Barbosa – Trabalhos Diversos”, vol. XL, tomo VI, p. 20, 1991, Fundação Casa de Rui Barbosa), quando se pronuncia sobre o significado e a eficácia imperativa dos comandos inscritos na lei concessiva da anistia:

“Dentre as prerrogativas do poder não há nenhuma que encerre maior grau de majestade, e nenhuma cujos atos sejam tão sagrados como a da anistia. Por ela se estabelecem vínculos quase religiosos, que os governos mais rebaixados não ousam desatar. A soberania se reveste de uma transcedência quase divina quando pronuncia, sobre as desordens e as loucuras das revoluções, esse verbo de esquecimento, cujo influxo apaga todas as culpas, elimina todos os agravos, e reabilita de todas as manchas. Não é o perdão, que resgata das penas; é a reconciliação, que extingue os delitos, atalha os ressentimentos e olvida as queixas.” (grifei)

Não constitui demasia salientar, neste ponto, que o sistema constitucional brasileiro impede que se apliquem leis penais supervenientes mais gravosas.
Esse entendimento – decorrente do exame do significado e do alcance normativo da regra inscrita no inciso XL do art. 5º da Constituição Federal – reflete-se no magistério jurisprudencial firmado por esta Suprema Corte (RTJ 140/514 – RTJ 151/525 – RTJ 206/1071, v.g.) e, também, por outros Tribunais da República (RT 467/313 – RT 605/314 – RT 725/526 – RT 726/518 – RT 726/523 – RT 731/666, v.g.):

“‘HABEAS CORPUS’ - CRIME DE CALÚNIA VEICULADO PELA IMPRENSA - CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO - INFRAÇÃO PENAL PRATICADA POR MILITAR EM ATIVIDADE CONTRA OUTRO MILITAR EM IGUAL SITUAÇÃO FUNCIONAL - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR - APLICABILIDADE DA LEI Nº 9.099/95 - SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO PENAL - INSTITUTO DE DIREITO MATERIAL FAVORÁVEL AO AUTOR DE CRIMES MILITARES PRATICADOS ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI Nº 9.839/99 - ULTRATIVIDADE DA LEI PENAL BENÉFICA - IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XL) - PEDIDO DEFERIDO EM PARTE.
.....................................................
- A Lei nº 9.839/99 (‘lex gravior’) - que torna inaplicável, à Justiça Militar, a Lei nº 9.099/95 (‘lex mitior’) - não alcança, no que se refere aos institutos de direito material (como a suspensão condicional do processo penal), os crimes militares praticados antes de sua vigência, ainda que o inquérito policial militar ou o processo penal sejam iniciados posteriormente.
- O sistema constitucional brasileiro impede que se apliquem leis penais supervenientes mais gravosas, como aquelas que afastam a incidência de causas extintivas da punibilidade (dentre as quais se incluem as medidas despenalizadoras da suspensão condicional do processo penal e da exigência de representação nos delitos de lesões corporais leves e culposas), a fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da edição da ‘lex gravior’.
- A eficácia ultrativa da norma penal mais benéfica - sob cuja égide foi praticado o fato delituoso - deve prevalecer por efeito do que prescreve o art. 5º, XL, da Constituição, sempre que, ocorrendo sucessão de leis penais no tempo, constatar-se que o diploma legislativo anterior qualificava-se como estatuto legal mais favorável ao agente. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.”
(RTJ 186/252-253, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Na realidade, a cláusula constitucional inscrita no art. 5º, XL, da Constituição - que consagra o princípio da irretroatividade de diplomas normativos mais gravosos – incide, no âmbito de sua aplicabilidade, unicamente, sobre as normas de direito penal material, que, no plano da tipificação, ou no da definição das penas aplicáveis, ou no da disciplinação do seu modo de execução, ou, ainda, no do reconhecimento das causas extintivas da punibilidade (como a imprescritibilidade penal), agravem a situação jurídico-penal do indiciado, do réu ou do condenado.
Como já observado neste julgamento, a pretensão punitiva do Estado, caso acolhida a postulação deduzida pela parte ora argüente, achar-se-ia atingida pela prescrição penal, calculada esta pelo prazo mais longo (20 anos) previsto em nosso ordenamento positivo.
Nem se sustente, como o faz o Conselho Federal da OAB, que a imprescritibilidade penal, na espécie ora em exame, teria por fundamento a “Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade”.
Mostra-se evidente a inconsistência jurídica de semelhante afirmação, pois, como se sabe, essa Convenção das Nações Unidas, adotada em 26/11/1968, muito embora aberta à adesão dos Estados componentes da sociedade internacional, jamais foi subscrita pelo Brasil, que a ela também não aderiu, em momento algum, até a presente data, o que a torna verdadeira “res inter alios acta” em face do Estado brasileiro.
Isso significa que a cláusula de imprescritibilidade penal que resulta dessa Convenção das Nações Unidas não se aplica, não obriga nem vincula, juridicamente, o Brasil quer em sua esfera doméstica, quer no plano internacional.
Cabe observar, de outro lado, que o Conselho Federal da OAB busca fazer incidir, no plano doméstico, uma convenção internacional de que o Brasil sequer é parte, invocando-a como fonte de direito penal, o que se mostra incompatível com o modelo consagrado na Constituição democraticamente promulgada em 1988.
Ninguém pode ignorar que, em matéria penal, prevalece, sempre, o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal.
Esse princípio, além de consagrado em nosso ordenamento positivo (CF, art. 5º, XXXIX), também encontra expresso reconhecimento na Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 9º) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 15), que representam atos de direito internacional público a que o Brasil efetivamente aderiu.
O que se mostra constitucionalmente relevante, no entanto, como adverte a doutrina (LUIZ FLÁVIO GOMES/VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, vol. 4/122, 2008, RT), é que, “no âmbito do Direito Penal incriminador, o que vale é o princípio da reserva legal, ou seja, só o Parlamento, exclusivamente, pode aprovar crimes e penas. Dentre as garantias que emanam do princípio da legalidade, acham-se a reserva legal (só o Parlamento pode legislar sobre o Direito Penal incriminador) e a anterioridade (‘lex populi’ e ‘lex praevia’, respectivamente). Lei não aprovada pelo Parlamento não é válida (...)” (grifei).
Não se pode também desconhecer, considerado o princípio constitucional da reserva absoluta de lei formal, que o tema da prescrição subsume-se ao âmbito das normas de direito material, de natureza eminentemente penal, regendo-se, em conseqüência, pelo postulado da reserva de Parlamento, como adverte autorizado magistério doutrinário (FERNANDO GALVÃO, “Direito Penal – Curso Completo – Parte Geral”, p. 880/881, item n. 1, 2ª ed., 2007, Del Rey; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/718, item n. 1, 27ª ed., 2003, Saraiva; CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JÚNIOR e FÁBIO M. DE ALMEIDA DELMANTO, “Código Penal Comentado”, p. 315, 7ª ed., 2007, Renovar; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Tratado de Direito Penal”, vol. 1/772, item n. 1, 14ª ed., 2009, Saraiva; ROGÉRIO GRECO, “Código Penal Comentado”, p. 205, 2ª ed., 2009, Impetus; ANDRÉ ESTEFAM, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/461, item n. 1.3, 2010, Saraiva; LUIZ REGIS PRADO, “Comentário ao Código Penal”, p. 375, item n. 2, 4ª ed., 2007, RT, v.g.).
Isso significa, portanto, que somente lei interna (e não convenção internacional, muito menos aquela sequer subscrita pelo Brasil) pode qualificar-se, constitucionalmente, como a única fonte formal direta, legitimadora da regulação normativa concernente à prescritibilidade ou à imprescritibilidade da pretensão estatal de punir, ressalvadas, por óbvio, cláusulas constitucionais em sentido diverso, como aquelas inscritas nos incisos XLII e XLIV do art. 5º de nossa Lei Fundamental.
É importante rememorar, neste ponto, em face da absoluta pertinência de suas observações, o registro feito pelo Professor NILO BATISTA, em Nota Introdutória constante da obra “Justiça de Transição no Brasil: Direito, Responsabilização e Verdade” (Saraiva, 2010), escrita por Dimitri Dimoulis, Lauro Joppert Swensson Júnior, Antonio Martins e Ulfrid Neumann:

“3. Depois de uma resenha sobre a recente instalação do debate nos meios jurídicos brasileiros, o texto do Professor Lauro Joppert Swensson Junior, a quem se deve excelente monografia sobre o tema, se detém sobre as duas linhas argumentativas nele agitadas: ‘a) a Lei n. 6.683/79 nunca anistiou os responsáveis pelos crimes da ditadura; b) os delitos praticados são crimes de lesa humanidade, e por isso são imprescritíveis e não podem ser objeto de anistia’. Sobre a primeira linha, em confronto aberto com a norma interpretativa (art. 1º, § 1º) que estabeleceu o mais amplo conceito possível de crime conexo, Swensson Junior tem a coragem de formular a pergunta politicamente incorreta mas juridicamente indispensável: os agentes do subsistema penal DOPS-DOI/CODI atuaram ‘por razões pessoais’ (sadismo, desafetos etc.) ou ‘por razões políticas - por exemplo, para salvaguardar o país dos comunistas’? Sim, porque se a resposta correta for a segunda, estaríamos sem dúvida diante de crimes conexos expressamente anistiados (muitos sustentariam, com base em critério tradicional, estarmos diante de autênticos crimes políticos, igualmente anistiados). Seja como for, a revisão radical de uma interpretação sedimentada ao longo de três décadas implicaria ‘retroatividade encoberta’ (Raúl Zaffaroni vê no emprego de ‘novo critério interpretativo’ que altere a significação jurídico-penal de um fato uma violação oblíqua do princípio da legalidade). Mas o argumento da anistia, tanto quanto o da evidentíssima prescrição, sucumbiria perante a segunda linha argumentativa: as ações dos ‘agentes da repressão política estatal são ‘crimes contra a humanidade’, e por isso são imprescritíveis e não podem ser anistiados’. A refutação de Swensson Junior é implacável: em primeiro lugar, instrumentos normativos internacionais só adquirem força vinculante após o processo constitucional de internalização, e o Brasil não subscreveu a ‘Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968 nem qualquer outro documento que contivesse cláusula similar; em segundo lugar, ‘o costume internacional não pode ser fonte de direito penal’ sem violação de uma função básica do princípio da legalidade; e, em terceiro lugar, conjurando o fantasma da condenação pela Corte Interamericana, a exemplo do precedente ‘Arellano x Chile’, a autoridade de seus arestos foi por nós reconhecida plenamente em 2002 (Dec. n. 4.463, de 8 de novembro de 2002) porém apenas ‘para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998’.” (grifei)

Certamente por tal razão, de índole eminentemente constitucional, o Senhor Presidente da República, acolhendo proposta interministerial subscrita pelos Senhores Ministro da Justiça, Ministro das Relações Exteriores, Ministro Advogado-Geral da União e Ministro-Chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos, encaminhou, ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 4.038/2008 (Câmara dos Deputados), com o objetivo de viabilizar a implementação, no âmbito interno, do Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional.
Com tal finalidade e propósito, o projeto de lei em questão não só tipifica, dentre outros, os crimes contra a humanidade, cominando-lhes penas, mas também dispõe sobre a imprescritibilidade de referidos delitos, em regra que, inscrita no art. 11 dessa mesma proposição legislativa, possui o seguinte conteúdo normativo:

“Art. 11. Os crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, graça, indulto, comutação ou liberdade provisória, com ou sem fiança.” (grifei)

Vê-se que o Senhor Presidente da República, consciente da necessidade de respeitar, em tema de direito penal, o postulado da reserva constitucional de lei formal, agiu de modo absolutamente compatível com o que dispõe a Constituição da República (que somente admite a lei interna como única fonte formal e direta de regras de direito penal), não obstante o Brasil houvesse assinado, em 1998, o Estatuto de Roma (posteriormente incorporado à nossa ordem interna), que já definia, como imprescritível, a pretensão estatal de punir os crimes contra a humanidade, de guerra e de genocídio.
Há, ainda, outra observação a fazer. Refiro-me ao fato de que a nova Constituição do Brasil, promulgada em 1988, poderia, até mesmo, precisamente porque elaborada por órgão investido de funções constituintes primárias (ou originárias), suprimir a eficácia jurídica que se irradiou da Lei de Anistia de 1979, ordenando, ela própria, a restauração do “status quo ante”.
Sucede, no entanto, que tal não se verificou, muito embora esse tema pudesse estar presente na intenção e na deliberação da Assembléia Nacional Constituinte, a atestar, desse modo, muito claramente, que não se registrou, nesse específico tema, qualquer omissão do órgão formulador da nova Constituição brasileira, configurando, antes, esse comportamento dos constituintes, uma clássica hipótese de lacuna consciente ou voluntária, que traduz, quando ocorrente, a disposição inequívoca de não tratar da matéria.
Em face de tal contexto, revela-se plenamente invocável antiga jurisprudência desta Suprema Corte no sentido de que regras constitucionais supervenientes não se revestem de retroprojeção normativa (RTJ 155/582-583), eis que os preceitos de uma nova constituição aplicam-se, imediatamente, com eficácia “ex nunc”, ressalvadas as situações excepcionais expressamente definidas no texto da Lei Fundamental (RTJ 143/306-307, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Na realidade, esse entendimento - que enfatiza a eficácia prospectiva do ordenamento constitucional - ajusta-se à orientação segundo a qual, ressalvada disposição constitucional em contrário, prevalece o princípio fundamental da incidência imediata da nova Constituição. É que - não custa reiterar - “As Constituições têm incidência imediata, ou desde o momento em que ela mesma fixou como aquele em que começaria a incidir. Para as Constituições, o passado só importa naquilo que ela aponta ou menciona. Fora daí, não” (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969”, tomo VI/392, 2ª ed., 1974, RT - grifei).
Isso significa, portanto, que, mantida íntegra a Lei de Anistia de 1979, produziu ela, “ministerio juris”, todos os efeitos que lhe eram inerentes, de tal modo que, ainda que considerada incompatível com a Constituição superveniente, já teria irradiado (e esgotado) toda a sua carga eficacial desde o instante mesmo em que veio a lume.
Cumpre registrar, finalmente, Senhor Presidente, que a improcedência da presente ação não impõe qualquer óbice à busca da verdade e à preservação da memória histórica em torno dos fatos ocorridos no período em que o país foi dominado pelo regime militar.
É importante salientar, neste ponto, que o modelo de governo instaurado em nosso País, em 1964, mostrou-se fortemente estimulado pelo “perigoso fascínio do absoluto” (Pe. JOSEPH COMBLIN, “A Ideologia da Segurança Nacional - O Poder Militar na América Latina”, p. 225, 3ª ed., 1980, trad. de A. Veiga Fialho, Civilização Brasileira), pois privilegiou e cultivou o sigilo, transformando-o em “praxis” governamental institucionalizada, ofendendo, frontalmente, desse modo, o princípio democrático.
Com a violenta ruptura da ordem jurídica consagrada na Constituição de 1946, os novos curadores do regime vieram a forjar, em momento posterior, o sistema de atos estatais reservados, como os decretos reservados (art. 31 do Decreto n° 79.099/77) e as portarias reservadas – estas mencionadas no § 3° do art. 8° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -, numa inqualificável subversão dos princípios estruturadores da gestão democrática e republicana do poder estatal, que impõe, aos que o exercem, a plena submissão às exigências indisponíveis da publicidade.
Ao assim proceder, esse regime autoritário, que prevaleceu no Brasil durante largo período, apoiou a condução e a direção dos negócios de Estado em concepção teórica – de que resultou a formulação da doutrina de segurança nacional – que deu suporte a um sistema claramente inconvivente com a prática das liberdades públicas.
Desprezou-se, desse modo, como convém a regimes autocráticos, a advertência feita por NORBERTO BOBBIO, cuja lição magistral sobre o tema (“O Futuro da Democracia”, 1986, Paz e Terra) assinala – com especial ênfase – não haver, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério.
Não constitui demasia rememorar, neste ponto, na linha da decisão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal proferiu no julgamento do MI 284/DF, Rel. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO (RTJ 139/712-732), que o novo estatuto político brasileiro - que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta - consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucional a ser observado, inscrevendo-a, em face de sua alta significação, na declaração de direitos e garantias fundamentais que a Constituição da República reconhece e assegura aos cidadãos.
Na realidade, os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, como o Brasil, não podem privilegiar o mistério, porque a supressão do regime visível de governo - que tem, na transparência, a condição de legitimidade de seus próprios atos - sempre coincide com os tempos sombrios em que declinam as liberdades e os direitos dos cidadãos.
A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na lição expressiva de BOBBIO (“op. cit.”, p. 86), como “um modelo ideal do governo público em público”.
A Assembléia Nacional Constituinte, em momento de feliz inspiração, repudiou o compromisso do Estado com o mistério e com o sigilo, que fora tão fortemente realçado sob a égide autoritária do regime político anterior, quando no desempenho de sua prática governamental.
Ao dessacralizar o segredo, a Assembléia Constituinte restaurou velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, convertido, em sua expressão concreta, em fator de legitimação das decisões, das práticas e dos atos governamentais.
Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que a exigência de publicidade dos atos que se formam no âmbito do aparelho de Estado traduz conseqüência que resulta de um princípio essencial a que a nova ordem jurídico-constitucional vigente em nosso País não permaneceu indiferente.
Impende assinalar, ainda, que o direito de acesso às informações de interesse coletivo ou geral – a que fazem jus os cidadãos e, também, os meios de comunicação social – qualifica-se como instrumento viabilizador do exercício da fiscalização social a que estão sujeitos os atos do poder público.
Não foi por outra razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao analisar recurso no qual se buscava acesso a processos criminais junto ao Superior Tribunal Militar, garantiu, aos recorrentes, que eram pesquisadores, “o direito de acesso (possibilidade de consulta) e de cópia dos autos e das respectivas gravações requisitadas à autoridade coatora, e, ainda, a devolução das fitas apreendidas (...)”, em julgamento que restou consubstanciado em acórdão assim ementado:

“RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. CÓPIA DE PROCESSOS E DOS ÁUDIOS DE SESSÕES. FONTE HISTÓRICA PARA OBRA LITERÁRIA. ÂMBITO DE PROTEÇÃO DO DIREITO À INFORMAÇÃO (ART. 5º, XIV DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL).
1. Não se cogita da violação de direitos previstos no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (art. 7º, XIII, XIV e XV da L. 8.906/96), uma vez que os impetrantes não requisitaram acesso às fontes documentais e fonográficas no exercício da função advocatícia, mas como pesquisadores.
2. A publicidade e o direito à informação não podem ser restringidos com base em atos de natureza discricionária, salvo quando justificados, em casos excepcionais, para a defesa da honra, da imagem e da intimidade de terceiros ou quando a medida for essencial para a proteção do interesse público.
3. A coleta de dados históricos a partir de documentos públicos e registros fonográficos, mesmo que para fins particulares, constitui-se em motivação legítima a garantir o acesso a tais informações.
4. No caso, tratava-se da busca por fontes a subsidiar elaboração de livro (em homenagem a advogados defensores de acusados de crimes políticos durante determinada época) a partir dos registros documentais e fonográficos de sessões de julgamento público.
5. Não configuração de situação excepcional a limitar a incidência da publicidade dos documentos públicos (arts. 23 e 24 da L. 8.159/91) e do direito à informação.
Recurso ordinário provido.”
(RMS 23.036/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. NELSON JOBIM - grifei)

Vê-se, portanto, que assiste, a toda a sociedade, o direito de ver esclarecidos os fatos ocorridos em período tão obscuro de nossa história, direito este que, para ser exercido em plenitude, não depende da responsabilização criminal dos autores de tais fatos, a significar, portanto, que a Lei nº 6.683/79 não se qualifica como obstáculo jurídico à recuperação da memória histórica e ao conhecimento da verdade.
Sendo assim, em face das razões expostas e com estas considerações, julgo improcedente a presente argüição de descumprimento de preceito fundamental.
É o meu voto.

* acórdão pendente de publicação

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