Falácias e argumentos apelativos no discurso jurídico? Mais comuns do que se imagina...
"Agora, ao se deparar com argumentos jurídicos, observe-os criticamente. Verá como é comum, ao invés da fundamentação atrelada à normatividade – sua coerência com o direito –, a utilização de falácias, notadamente apelos à autoridade, à tradição e à moral. Será mais fácil percebê-los, denunciá-los e rejeitá-los."
A filosofia e a lógica
aristotélica estão mais próximas do jurista do que ele costuma pensar, pois em
muitas situações os argumentos judiciais seguem um silogismo.[1] É bem
verdade que a lógica se coaduna com o raciocínio dedutivo e que nem sempre o
jurista atua sob essa baliza, mas é importante para qualquer ator jurídico
(juiz, acusador ou defensor) saber como se deve fazer um raciocínio lógico
válido e, principalmente, identificar falácias que comprometam a validade dos
argumentos expressos em uma tese jurídica. Enquanto julgador, minha maior
preocupação é com as chamadas “falácias informais” – raciocínios sedutores e
não raras vezes argutamente postos em um debate, capazes de induzir o juiz a
adotar uma tese racionalmente frágil e inadequada constitucionalmente, mas
retoricamente impactante. Mas, antes de explicar o que é como identificar uma falácia informal, é preciso ter uma idéia geral da lógica aristotélica.
Em poucas palavras, posso dizer
que o silogismo é composto de duas premissas e uma conclusão. A primeira
premissa é geral. A segunda premissa
refere-se à primeira, mas em relação a uma situação particular. A conclusão se extrai dessa relação entre as premissas. Todo argumento correto precisa se
basear no respeito à ordem das premissas (do geral para o particular, por isso
o silogismo é dedutivo). Exemplo de um silogismo: (1) Todo homem é mamífero
(primeira premissa - geral). Félix é homem (segunda premissa - particular).
Logo, Félix é mamífero (conclusão).
Porém, é possível que as
proposições sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Basta a segunda premissa não
se referir ao sujeito da primeira (o homem). Com isso a conclusão se torna
inválida, como no exemplo abaixo, em que não se pode inferir ser Félix um homem
(poderia ser um gato, que também é mamífero): (2) Todo homem é mamífero
(primeira premissa). Félix é mamífero (segunda premissa). Logo, Félix é homem
(conclusão).
A essas deficiências ou erros, a
lógica deu o nome de falácias (ou sofismas, como alguns chamam). Posso dizer,
em poucas palavras, que falácia é um raciocínio ou afirmação falsa ou errônea
aparentemente verdadeira.[2] É
psicologicamente persuasiva, parece correta, mas cai quando examinada
cuidadosamente. Por isso, numa área como o direito, em que a linguagem é o
instrumento de trabalho (ou arma...) visando (con)vencer mediante o embate de
argumentos, é tão importante o seu estudo.
Quem primeiro tratou com rigor o
tema foi Aristóteles. Alertava ele, a respeito dos sofistas, a quem denunciava
a utilização dessas ilações errôneas para fins nada dignos, que
“Visto que aos olhos de algumas pessoas mais vale
parecer sábio do que ser sábio sem o parecer (uma vez que, a arte do sofista
consiste na sabedoria aparente e não na real, e o sofista é aquele que ganha
dinheiro graças a uma sabedoria aparente e não real), está claro que para essas
pessoas é essencial parecer exercer a função de sábio, em lugar de realmente
exercê-la sem parecer que o fazem (...) constitui tarefa daquele que detém ele
mesmo conhecimento de um determinado assunto abster-se de argumentos falaciosos
em torno dos temas de seu conhecimento e ser capaz de denunciar aquele que os
utiliza.”[3]
Em relação à sua forma de
expressão, as falácias são divididas em: a) formais; b) informais. As falácias formais têm sua falha na própria
construção do raciocínio, como no exemplo 2.
Há que se atentar para a noção de
veracidade da lógica. Não diz respeito à verdade do mundo real. Por exemplo,
seria formalmente válido o seguinte raciocínio: (3) Todo kriptoniano tem
superpoderes. O Super-homem é kriptoniano. Logo, o Super-homem tem
superpoderes.
Se o Super-homem existisse, seria
impossível que das duas premissas não se extraísse a conclusão verdadeira. Sob
a realidade da literatura DC Comics, necessariamente, se todo kriptoniano
tivesse superpoderes e o Super-homem tivesse nascido lá, teria que ter
superpoderes. Concorda? O raciocínio é válido, então. Inválido pela lógica
seria pensar assim: (4) O Super-homem tem superpoderes. Todo kriptoniano tem
superpoderes. Logo, o Super-homem é kriptoniano.
Observe-se que, em termos de
lógica, tal silogismo é defeituoso e inválido. Isso porque da forma com que foi
construído o raciocínio, não se pode inferir que o Super-homem seja de Kripton
só porque todo kriptoniano tenha superpoderes. Ele poderia ser de outro planeta
em que todos os habitantes também tivessem superpoderes. Novamente temos que
raciocinar abstratamente.
Falei das falácias formais. Porém,
o que mais exige atenção dos atores jurídicos é a falácia informal. Nela a falha está na falsidade/impropriedade de
suas premissas, seja através do uso de termos vagos (falácias de ambigüidade)
ou da não relevância para justificar a conclusão (falácias de relevância).[4]
Exemplificando (grotescamente): (5) Todos os homens são iguais perante a lei.
Maria não é homem, é mulher. Logo, Maria não deve ser tratada igualmente.
Nesse caso se vê claramente que o
termo homem foi utilizado de maneira ambígua, ora para representar a espécie
humana, ora o gênero masculino. Outro exemplo (já mais elaborado): (6) Penas
maiores visam combater a criminalidade. A criminalidade está alta. Logo,
devemos aumentar as penas.
Aqui não há relevância porque não
se comprova que a majoração das penas obtém o resultado pretensamente almejado
de combater a criminalidade. As pesquisas demonstram que penas mais altas não
afetam a criminalidade. Relevante, sim, é a efetividade em sua aplicação
(combate à impunidade).
Portanto, como visto nos exemplos
acima, com relação às falácias informais, necessário se faz observar se as
acepções estão sendo usadas sob o mesmo contexto e se há pertinência a gerarem
a conclusão proposta.
Apesar do pouco espaço, mas sendo
o tema relevante, aproveito para exemplificar alguns:
Petição de
princípio: a conclusão já está escondida nas premissas. Exemplo: “o acusado
deve ser condenado porque é mal. E todo mal causado deve ser punido. Assim, o
acusado deve ser punido.” Será punido por ser mal ou porque agiu mal?
Pergunta
complexa: “você deixou de furtar?” Nesse caso, em qualquer das respostas o
interlocutor estará confessando a prática de furtos.
Apelo à
compaixão: “ele deve ser absolvido ou Vossa Excelência não é
misericordioso?”
Apelo
circunstancial: “você vai condená-lo ou vai querer que seus filhos se
depararem com mais um assaltante na rua?”
Apelo ao
popular: “você precisa aplicar penas mais leves, ser mais progressista.”
Apelo à
autoridade: “é ilegal a atenuação aquém do mínimo porque o STJ e o STF já
disseram isso.”
Apelo à
tradição: “em 1958 Nelson Hungria já dizia isso!”
Argumento ad
hominem: “ele não merece crédito, pois é um marxista da época de Stalin!”
Será que pelo fato de alguém ter uma determinada posição ideológica, seus
argumentos nunca serão válidos?
Falsa causa:
“o réu é reincidente? E ainda quer negar a autoria?”, como se o fato de ser
reincidente já implicasse em sua culpa.
Apelo à
ignorância: “nunca vi um traficante se regenerar. Portanto, ele deve ser
culpado”, como se a falta de conhecimento de um dado fosse o mesmo que sua não
existência.
Negação do
antecedente: quem atira pedra (antecedente), fere. Não atirou pedras na vítima. Logo, não feriu. O
fato de negar o antecedente (atirar pedras), não implica em não ferir, pois não se
fere somente com arremessos de pedras.
Afirmação do
consequente: quem atira pedras, fere. Feriu (consequente). Logo, atirou pedras. Da mesma
forma, afirmar o consequente (ferir), não implica no antecedente (atirar pedras), já
que não se fere somente com arremessos de pedras.
Falácia
naturalista: associar juízos de valor a juízos fáticos. Exemplo: Toda
reincidência (juízo fático) revela distorção de caráter (juízo de valor). João
é reincidente. Logo, tem caráter distorcido. A reincidência pode até ser
consequência de um caráter distorcido. Mas ninguém pode desconhecer as
dificuldades de reinserção social dos condenados. Isto é, há outras causas.
Agora, ao se deparar com
argumentos jurídicos, observe-os criticamente. Verá como é comum, ao invés da
fundamentação atrelada à normatividade – sua coerência com o direito –, a utilização
de falácias, notadamente apelos à autoridade, à tradição e à moral. Será mais
fácil percebê-los, denunciá-los e rejeitá-los.
[1] Segundo Goffredo Telles Júnior, é
“argumentação na qual um antecedente, formado de duas proposições, que unem
dois termos a um terceiro, infere um consequente, que une esses dois termos a
um ao outro” (TELLES JUNIOR, Goffredo. Tratado da consequência. Curso de
lógica formal. 6ª. ed. rev. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 207).
[2]COPI,
Irving M. Introdução à lógica. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p.
73.
[3]
ARISTÓTELES. Organon. Trad. Edson Bini. : EDIPRO, 2005, p.
546-547.
[4]CARAHHER,
David W. Senso crítico: do dia-a-dia às ciências humanas. São Paulo: Cengage
Learning, 2008, p. 27.
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
Mais um ótimo post deste ótimo blog.
ResponderExcluirSó quero chamar-lhe a atenção para a grafia do nome do autor na primeira citação: "Goffredo"
Creio que a leitura dinâmica possa ter causado isso, hehe
um abraço
Ótimo post.
ResponderExcluirApenas um comentário, o Super-Homem não pertence à literatura Marvel, mas sim do universo DC Comics, assim como o Batman, Mulher Maravilha, etc.
Mais uma grande aula deste douto magistrado.
ResponderExcluirGostei do apelo à tradição... Mas com todas as vênias, Hungria é Hungria, hehehe. (lembrei do professor Paulo Lobo Saraiva, Doutor e figura imponente no cenário jurídico Norteriograndense, mas tudo dele é acaba em Hungria)
Pelegro, é isso mesmo, a Marvel é do homem aranha, homem de ferro, Hulk...
Caramba! Sou da época do Tio Patinhas. Preciso atualizar minhas leituras de gibis. Valeu Pelegro e Gustavo.
ResponderExcluirEm relação ao Goffredo, errei também. Li-o em pesquisa na biblioteca do STJ. Fichei o nome errado.
Valeu!
Uma coisa me alegra muito. O nível dos leitores do blog é alto. Parabéns!
ResponderExcluirPode parecer besteira, mas esse tipo de citação do Super-Homem, por menor que seja, acaba até agregando um público mais amplo, pois torna a leitura mais agradável. Além de que, quem está apenas acostumado com leitura jurídica, passa a conhecer um pouco dessa cultura "pop".
ResponderExcluirLembrei-me de alguns anos atrás, quando na apresentação de minha monografia usei como exemplo trechos de "De volta para o Futuro III", e "Minotiry Report", estava até receoso da reação da banca, mas no final deu muito certo, o olhar de aprovação deles na hora dos exemplos foi impagável.
Quanto a confundir Marvel com DC é algo bem comum, mas não posso negar que era mesmo dos gibis da Marvel que eu gostava, Homem-Aranha, Justiceiro, X-men, Demolidor... pena que eu não tenha mais tanta disponibilidade, mas, muito obrigado por, de certa forma, me proporcinar estas boas lembranças.
Abraços!
Já ia esquecendo... Entrei pra postar uma coisa, me deixei levar pelas lembranças, e acabei postando outra...
ResponderExcluirEu possuo esse livro Senso Crítico do David Carraher citado na bibliografia e posso afirmar que é uma obra simplesmente formidável. Numa linguagem muito simples e com uma aplicação prática sensacional, o livro realmente proporciona um grande aprendizado ao leitor, e, à medida que se lê, começa a ficar claro que as falácias são muito mais comuns do que se imagina.
Abraços!
Pelegro,
ResponderExcluirO livro realmente é excelente. Apesar de ser já antigo (meu exemplar é de 2008, mas da 8ª reimpressão da edição de 1983), é atualíssimo em termos de aplicabilidade.
Gosto quando ele aborda a prática - nem sempre percebida pelo senso comum teórico - de expor ideias como verdadeiras simplesmente porque são as mais convenientes para quem as propala. É aí que entra o senso crítico...
Abraço.
Prezado Rosivaldo, excelente artigo. Parabéns!
ResponderExcluirNão sou da área do direito, no entanto, adoro análises de discurso e o estudo de falácias. Sempre fiquei curioso sobre este tema, onde achava estranho a ampla utilização e aceitação de falácias dentro do discurso jurídico. Então, em suma, se em um julgamento uma das partes identificar falácias no argumento do outro e for capaz de evidenciá-las, o juiz então pode desconsiderar o argumento em específico? Seu artigo é bastante revelador. Sempre me pareceu que a ampla defesa (e assim, o direito) admitisse como válidos, inclusive, o uso de falácias.