Flagrante: Liberdade Provisória, Conversão e Decretação da Preventiva
"Verifique-se que a lei distingue converter a prisão em flagrante em preventiva (art. 310, II, do CPP) de decretá-la (art. 311 do CPP). Essa distinção parece, numa primeira leitura, de pouco importância. Mas é o traço mais importante para o deslinde dessa questão."
A questão mais
tormentosa da lei 12.403/2011, que alterou as regras relativas à prisão e a
liberdade provisória, tem sido definir qual o proceder do juiz ao receber o
auto de prisão em flagrante, quando ela é legal. Restariam, segundo a nova
redação do art. 310 do CPP, dois caminhos: a) conceder a liberdade provisória,
com ou sem medidas cautelares diversas da prisão; b)
converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos
constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou
insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão.
Formaram-se, basicamente, três
correntes em relação a como proceder: A) a
primeira dizendo que o juiz deve agir de plano, concedendo a liberdade
provisória (com ou sem medidas cautelares diversas da prisão) ou convertendo-a
em prisão preventiva; b) a segunda, informando que o juiz não pode,
sem ouvir o Ministério Público, decidir sobre a conversão da prisão em
preventiva. Alega-se que agir de ofício violaria o princípio acusatório. Mas também
não avalia a imediata concessão da liberdade provisória e a imposição
ou não de medidas cautelares diversas da prisão. Mantém-se a prisão em flagrante até lá; c) por fim, a terceira, sob o mesmo argumento, aceita
a possibilidade da concessão da liberdade provisória de ofício, com ou sem
medidas, mas não a conversão em preventiva. Mantém-se a prisão em flagrante até a manifestação do Ministério Público.
Numa análise
mais apressada, as correntes mais consentâneas com um processo penal
democrático seriam as das alíneas “b” e “c”. Acontece que a primeira dessas
duas termina sendo perversa, prolongando até mesmo o encarceramento nos casos de
quem deveria ser imediatamente solto através da concessão da liberdade
provisória, abrindo brechas para decisionismos, ferindo o devido processo legal
e a paridade de armas. E a última, acaba – nos casos em que não é concedida a
liberdade provisória – pondo o preso em uma espécie de limbo jurídico pela
manutenção de uma prisão administrativa e precaríssima, como é o caso da prisão
em flagrante, com os mesmos efeitos práticos da preventiva, mas sem a
necessária fundamentação constitucionalmente exigida para sua decretação (art.
93, IX, da Constituição da República).
Comumente
dizemos que a prisão ilegal deve ser imediatamente relaxada pela autoridade
judiciária competente. E isso decorre do art. 5º, inciso LXV da Constituição
Federal, que assim dispõe:
“LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;”
Acontece que também
não é constitucionalmente aceitável manter a prisão em flagrante quando o preso
faz jus à liberdade provisória, em razão de outro mandamento constitucional, no
caso, o do inciso posterior do mesmo art. 5º, o LXVI:
“LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;”
Vou primeiro
tratar da hipótese da alínea “b” acima – a que apregoa que o juiz aguarde, até
perto do fim do prazo geral de 5 dias para decidir (art. 800 do CPP), a
manifestação do Ministério Público. Mantém-se o flagranteado, mesmo que fazendo
jus à liberdade provisória com ou sem medidas cautelares, preso até que o juiz,
transformado em mero órgão auxiliar do titular da ação penal, aguarde a palavra
de ordem que, via de regra, é: prenda-se! No fundo, não seria esse proceder
“garantista” um sintoma do real desejo de prender? Sob a alegação de que não se
pode converter em prisão preventiva, pois se está agindo de ofício, e ferindo o
sistema acusatório, não se solta, também.
Ademais,
fere-se o devido processo legal, pois onde é que existe essa determinação de
sobrestamento da análise imediata da prisão em benefício do titular da ação
penal, a despeito da exigência constitucional de imediato conhecimento da
matéria? E sobrestamento esse que, diga-se de passagem, fere o disposto no art.
5º, LXV e LXVI da Constituição da República?
Verifique-se
que a lei distingue converter a
prisão em flagrante em preventiva (art. 310, II, do CPP) de decretá-la (art. 311 do CPP). Essa
distinção parece, numa primeira leitura, de pouco importância. Mas é o traço mais
importante para o deslinde dessa questão.
Em se tratando
de conversão, ela pressupõe uma prisão
já existente: a em flagrante. O juiz não estará criando a restrição, naquele
momento, da liberdade de ir e vir, pois essa já se encontra cerceada, ainda que
por um título precário como é o flagrante. E nem estará agindo de ofício. É provocado
por uma prisão que, mesmo precaríssima por ser administrativa, tem previsão constitucional
e que, também por força da Constituição e da lei, reclama a imediata análise da
regularidade formal (relaxamento) e material (liberdade provisória, medidas
cautelares ou prisão preventiva). O magistrado, aí, age na qualidade de juiz de
garantias – no caso, do direito fundamental de ir e vir. Assim, não se viola o
sistema acusatório.
E precisa o juiz,
imediatamente, fundamentar concretamente, e em caráter preliminar à conversão
em preventiva, a razão do cabimento ou não da liberdade provisória, com ou sem medidas
cautelares diversas da prisão, sob pena de nulidade. Portanto, exige-se que o
juiz, primeiro, enfrente tais questões prévias, que tanto interessam ao direito
de liberdade do flagranteado. Não vige, aqui, o princípio da inércia.
Já na
decretação da prisão preventiva de ofício, da qual também não compartilho, o provimento
jurisdicional priva uma liberdade que anteriormente existia. E sem provocação.
Ademais, não possui um momentum certo
de acontecer. E pode ocorrer ou não tal decretação durante o processo,
dependendo, sempre, do caso concreto.
Pode haver
ação penal sem decretação de ofício da preventiva? Sim. Mas jamais prisão em
flagrante sem que o juiz decida se é caso de liberdade provisória (com ou sem
medidas) ou, em não sendo, de prisão preventiva.
Mas o senso
comum teórico, acostumado que é a voluntarismos, faz uma interpretação que não tem lastro normativo. Cria uma malfadada espécie
de “prazo mínimo para decidir”, exigindo-se que o juiz aguarde, sob a alegação
de respeito à qualidade de custus legis
do titular da ação penal, a manifestação ministerial. Tal manifestação, aliás,
não poderia ser um parecer, pois não há prazo previsto em lei para isso. Teria
que ser um pedido. E quem pede o que é? É parte. Fere-se, assim, a paridade de
armas entre as partes.
Isso demonstra
que, na verdade, trata-se de um ato de voluntarismo (de manter preso), sob o
auspício de obediência a ditames constitucionais, pois a lei não mais prevê que
o juiz aguarde a manifestação do Ministério Público para, só então, decidir.
Esse ativismo judicial legisla em matéria penal, usurpando a função do
Congresso Nacional.
Sintoma dessa
postura encarceradora é o fato de que quando a lei permitia ao juiz
expressamente decretar a prisão preventiva de ofício a qualquer tempo, mas
nunca conceder a liberdade provisória, ninguém questionava a
constitucionalidade da exigência de prévio parecer do Ministério Público para a
concessão da referida liberdade, a despeito do que determina o art. 5º, LXVI,
da CR, como visto acima.
À parte a
questão ideológica, há um problema filosófico-paradigmático que vem desde o
século XIX sobre o papel destinado ao juiz. Uma visão solipsista de que o
magistrado tem poderes além da lei. Mas o sentido da interpretação não fica a
dispor do intérprete. Ele não tem o direito se sobrepor ao legislador, criando
o rito que lhe bem parecer, ainda grave quando repristina uma lei revogada – no
caso, a antiga redação do art. 310, § único do CPP.
Interessante
observar que o senso comum teórico veda a conversão em prisão preventiva, mas
aceita que se mantenha uma prisão em flagrante – administrativa, assim, de alta
precariedade constitucional – sem que seja avaliada a possibilidade de se
conceder, ao mesmo tempo, a liberdade provisória.
É, no mínimo,
paradoxal, a postura do juiz que, a pretexto de obedecer ao princípio
acusatório, mantém o flagranteado preso sem judicializar
o título dessa prisão – isto é, fundamentar a manutenção ou não da prisão –,
violando expresso mandamento constitucional que determina imediata avaliação da
legalidade da prisão, tanto para efeito de relaxamento quanto para concessão de
liberdade provisória pura e simples ou a com a imposição de medidas cautelares
diversas da prisão. Isso não é obedecer ao sistema acusatório, mas, sim, ao
inquisitório, na medida em que dá primazia ao acusador, a ponto de condicionar
a decisão judicial à oportunização de manifestação daquele, a despeito da falta
de previsão legal.
A finalidade
deste escrito não é – e aí reside o que chamo de “perversa (e pseudo)filtragem
constitucional” – um ode à conversão das prisões em flagrante em preventiva.
Mas sim um alerta para que se quebre o paradigma procedimental-legal anterior;
uma conclamação à imediata avaliação, pelo juiz, quando do recebimento do auto
de prisão em flagrante, das duas etapas sequenciais do juízo de verificação da
constitucionalidade da referida prisão: 1ª) da legalidade formal, cuja violação
causa o relaxamento da prisão; b) da legalidade material, que consiste na
possibilidade ou não da concessão da liberdade provisória, pura e simples ou
com imposição de medidas cautelares diversas da prisão, e, somente em não sendo
aquelas possíveis, da conversão da prisão em preventiva.
O juízo de análise
imediata da prisão, mesmo com a conversão da prisão em flagrante em preventiva,
é uma garantia ao preso de que houve obediência ao dever constitucional de
fundamentar as decisões, possibilitando, também, sua impugnação, através da
refutação de seus argumentos.
Ademais, não
há mais tal previsão de esperar um determinado lapso temporal até que o
Ministério Público se pronuncie. A finalidade é exatamente adequar a legislação
processual à determinação constitucional de rápido exame da prisão, e não prolongá-la.
Assim, o intérprete não pode retirar do texto algo que este não possui em si
mesmo. O intérprete sempre atribui sentidos. E tais sentidos não estão à sua
disposição. No mais, é agir com discricionariedade. E apostar na
discricionariedade é transformar juízes em legisladores.
Somos
seres-no-mundo (Heidegger). Isso quer dizer que estamos nos relacionando com as
coisas e o mundo. Nesse mundo, o sentido das coisas não está ao nosso dispor.
Trata-se de um espaço compartilhado. Essa visão criacionista de um procedimento
dilatório não previsto em lei (esperar o pronunciamento do Ministério Público),
em patente prejuízo da liberdade do flagranteado, sob o pretexto vago de obediência
ao sistema acusatório, tem faceta positivista. Isso porque o positivismo busca
descolar a enunciação da lei do mundo concreto, isto é, quando transforma a lei
em uma razão autônoma. A faticidade (fatos sociais, conflitos) deixa de fazer
parte da preocupação da teoria do direito (positivista). Cria-se uma separação
entre questões fáticas e questões teóricas, entre validade e legitimidade e
entre teoria do direito e teoria política. E quem está preso (facticidade)
sofre.
Assim, cumpramos a Constituição. Não compete a
nós a criação de prazos e nem de procedimentos ao alvedrio da lei. Analisemos
de imediato, conforme exigência constitucional e, agora, também legal, a
existência ou não da legalidade da prisão e da viabilidade da concessão da
liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares diversas da prisão. E que
se tivermos de manter a prisão, que façamos de acordo com o determinado no art.
93, IX, da Constituição da República, isto é, fundamentando expressamente
nossas razões para a conversão em preventiva, expressando seus requisitos e
eventuais fundamentos, para que o preso, o Ministério Público e a sociedade saibam os reais motivos
do encarceramento e possam, se for o caso, impugná-los.
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
Achei muito interessante quando o senhor falou sobre a não necessariedade do parecer ministerial. É uma coisa que não aprendemos na faculdade, e outra, Se o MP é parte, e ele "pede" a prisão, deveria também haver a manifestação da outra parte, o flagranteado, em respeito ao contraditório?
ResponderExcluirDoutor, o senhor viu a voadora que o goleiro do time sub-20 do Sport deu em um jogador do Vasco?
ResponderExcluirO delegado o indiciou por tentativa de homicídio, pois ele teria assumido o risco.
Realmente é um absurdo um atleta tomar uma atitude dessa, uma coisa completamente desleal, mas tentativa de homicídio.
Para min, esse delegado assinou e mostrou para todo o Brasil seu atestado de incompetência.
Caro Comentarista,
ResponderExcluirApenas para agitar a discussão, questiono: digamos que um juiz receba um auto de flagrante e o converta em preventiva imediatamente. Logo depois, digamos, 10 dias depois, o MP promove o arquivamento do inquérito. Como fica a situação, pois há coincidência entre os pressupostos da preventiva e do oferecimento da denúncia (prova do crime e indícios da autoria)?
Caminhando mais: digamos que nessa situação o juiz, usando o poder de controle do arquivamento do inquérito, previsto no art. 28 do CPP, remete os autos ao PGJ. O ex-flagranteado, agora preventivamente preso, fica esperando custodiado?
Quando a CF/88 fala que a prisão ilegal será imediatamente relaxada, refere-se a relaxamento de prisão, completamente diferente de liberdade provisória.
Uma prisão ilegal, sem dúvida, deve ser de logo relaxada, sem que o magistrado espere por ninguém. Mas para concessão de liberadade provisória, medida de contra-cautela e que não tem relação com ilegalidade da prisão, ou para seja decretada a prisão preventiva, deve, sim, o magistrado aguardar o pronunciamento do MP.
Acho até possível entender que, quanto a liberade provisória, poderia o magistrado concedê-la ex-officio, em razão do princípio do "favor rei" (não confundir com princípio da inocência). Contudo, para decretar a preventiva ou até para converter o flagrante em preventiva, só se houver pedido do MP.
Estou, evidentemente, ainda refletindo acerca do tema e, possivelmente, outros entendimentos serão manifestados. Quero apenas contribuir para o debate.
Um forte abraço.
Tiago Pacheco.
Respondendo o primeiro questionamento, não vejo problemas, pois, mesmo com a preventiva decretada, se o MP pedir o arquivamento e o juiz acatar, o flagranteado seria imediatamente posto em liberdade.
ResponderExcluirNo segundo caso, estamos falando do princípio do livre convencimento do magistrado, sendo assim, o parecer ministerial não tem força nenhuma força vinculante. Desta forma, estando o juiz convencido de que estão presentes os pressupostos, tanto para a manutenção da prisão preventiva quanto para a continuidade do processo, o réu permanecerá preso até decisão do PGJ.
Porém, concordo em parte com vosso posicionamento, pois acredito que só haveria a obrigatoriedade/necessidade do parecer ministerial nos casos em que o juiz, ao se deparar com o Auto de prisão em flagrante, ficar convencido, mesmo que de forma esfumaçada, pela conversão para prisão preventiva. Já nos casos que o relaxamento for a primeira opinião do juiz, não haveria a obrigatoriedade(porém poderia ser necessário). Utilizando o princípio do favor rei, muito bem apontado pelo caro colega.