Doutrina colonizada: com Luhmann e contra Luhmann - da autopoiese à alopoiese
Abordei em um texto que já data
de alguns meses, a prática comum aqui (e, em geral, nos países periféricos) de
boa parcela dos atores jurídicos importam teorias estrangeiras oriundas de
contextos diversos, como é o caso das teorias das janelas quebradas e do
direito penal do inimigo (vide aqui). Dou a isso o nome de “doutrina
colonizada”.
O mesmo se dá com relação à
teoria dos sistemas sociais autopoiéticos (Niklas Luhmann é seu maior nome),
que terminou virando moda em terras tupiniquins. E hoje não são poucas as obras
que, aqui no Brasil, ou abordam tal pensamento ou o referenciam, adotando, em
ambos os casos, sua teoria na integralidade.
A teoria é sedutora, sob certos
aspectos, pois tal qual a tese-dogma kelseniana do direito separado da moral, é
hermética, parte de dogmas que a isentam de questionamentos internos. A teoria
luhmanniana guarda uma grande semelhança com o positivismo, pois assim como
este, busca trazer para as ciências humanas uma tese ajustada para as ciências naturais
(biológicas) (vide aqui),
com cunho também de lógica causal. Tal ficção funciona idealmente e é, no
direito, ideologicamente importante para a razão instrumental, uma vez que
parte do pressuposto de que com a complexidade da sociedade contemporânea os
diversos sistemas (economia, direito, sociedade, ciência e por aí vai...) se
tornaram autônomos e se autoproduzem, limitando-se a esfera de atuação do direito e da Constituição como instrumento de realização das promessas (incumpridas) da modernidade. Dá-se a isso o nome de autopoiesis
(auto: próprio; poiesis: criação), nome herdado da tese de dois
biólogos chilenos (Maturana e Varela), que escreveram sobre os sistemas que formavam
os organismos vivos.
Para Luhmann, a estrutura das
sociedades modernas e pós-modernas é melhor captada por uma teoria
autopoiética, onde os problemas políticos só podem ser resolvidos dentro do
sistema político, e os jurídicos dentro do sistema jurídico, cada um
trabalhando com seus próprios códigos (jurídico: lícito/ilícito; econômico:
ter/não ter; político: situação/oposição, etc.) e somente através deles um se
comunica com o outro. E mesmo partindo do pressuposto de que sua teoria seria
aceitável (pois a refutação requereria uma outra postagem), tomem-se teses e
mais teses por aqui avalisando um Luhmann inexistente. Vou explicar por quê.
O próprio Luhmann reconheceu que
no caso de Estados periféricos como o Brasil (e cita explicitamente) suas
concepções autopoiéticas só em uma medida muito limitada se dariam, uma vez que
aqui a evolução do Estado Liberal para o Estado Constitucional se deu em termos
largamente simbólicos. A desfuncionalidade do Brasil importaria numa invasão do
direito pela política de maneira a fraturar a aplicação de sua teoria.
Assim, ao contrário de uma
parcela da doutrina pátria que o importa acriticamente – afirma Luhmann que
nesses casos o Estado se torna instrumento de uma elite governante. Não por
menos aqui reafirmo o que já disse antes em relação às deformidades de nossa
cidadania, em que uma pequena parcela próxima ao poder detém acesso ao Estado –
embora não necessitando dele –, enquanto a maioria só conhece o Estado,
realmente, através de sua faceta Polícia que oprime, (so)nega direitos
fundamentais e, não raras vezes, mata (vide
aqui).
No Brasil, outros códigos de comunicação,
em especial o econômico (ter/não ter) e o político (poder/não poder), subjugam
o código lícito/ilícito, gerando ineficiência, desfuncionalidade e
irracionalidade no direito. Isso ocorre, especialmente, em se tratando de efetivação
de direitos fundamentais e sociais e, para não dizer, na desfuncionalidade
crassa e patente do sistema penal que termina por servir para, tão somente,
criminalizar a pobreza (vide aqui). Dá-se, pelo contrário, o
fenômeno da alopoiese, que explicarei
mais abaixo.
O conceito de Constituição como
vínculo estrutural entre o direito e a política (tese luhmanniana), pressupõe a
autonomia operacional de ambos os sistemas. Porém, nas constituições
“instrumentalistas” e “simbólicas”, como a do Brasil, a esfera política é
hipertrofiada em detrimento da esfera jurídica. Nossa democracia termina por
ser meramente eleitoral e, ainda assim, mitigada, haja vista a tão banalizada
captação ilícita de votos, a profissionalização da atividade política, a prisão
especial, o foro privilegiado de autoridades e a alta impunidade sem e tratando
de crimes perpetrados por agentes políticos.
E no caso do instrumentalismo
constitucional, o sistema poder (superioridade/inferioridade), se exprime
através de normas de exceção, e essas normas imunizam os detentores do poder,
de qualquer vinculação aos mecanismos de controle jurídicos previstos nas leis
constitucionais, por dois fatores: seja porque as próprias disposições excluam
tais órgãos políticos de qualquer limitação ou controle, ou porque manipulações
casuísticas impedem tal controle. Esse alerta é dado pelo próprio Marcelo
Neves, em sua obra “Em Themis e o Leviatã: uma relação difícil”.
Diz Neves, que a
constitucionalização simbólica reflete nos três momentos de sua autoreferência:
a falta de força normativa do texto constitucional conduz à insuficiência de
legalidade e constitucionalidade na praxis jurídica e, correspondente no
plano de reflexão, ao problema da desconexão entre a prática constitucional e
as construções da dogmática jurídica e da teoria do direito sobre o texto
constitucional.
A insuficiência da ilegalidade se
dá pela desobediência da igualdade perante a lei, que se transforma numa figura
de retórica, isto é, os códigos “poder/não poder” e “ter/não ter”, subjugam o
lícito/ilícito, criando o que ele chama de “realidade constitucional
inconstitucional”. Assim, o texto constitucional, se aplica ou não conforme os
interesses existentes das relações de poder, a noção de ordem constitucional
perde o seu sentido, a não ser, quando invocada pela ordem política real
subjacente.
Se a legalidade que diz respeito
à autoreferência de base, e a constitucionalidade que diz respeito à
reflexibilidade, são pré-requisitos para uma reflexão consistente sob a
identidade de um sistema jurídico, ou vice-versa, na qualidade autopoiética ela
se desmancha.
A frágil normatividade da
Constituição faz com que os direitos fundamentais sejam um privilégio da
minoria, relegando para a maioria do povo um conteúdo meramente retórico. Não
há a inclusão através do Estado de Bem-Estar. Contenta-se com o dizer e não com
o fazer. O devido processo legal existe integralmente apenas no papel e não na
práxis dos órgãos estatais, em relação à maioria desprivilegiada. A moralidade
e a impessoalidade na esfera pública desvanece frente à politização da
administração; a legitimação constitucional é ferida pela corrupção e por fraudes
eleitorais (ou alguém duvida que uma parcela expressiva dos eleitos compram
votos?); mecanismos casuísticos inconstitucionais são adotados, através de
concessões, favores, ajudas e trocas ilícitas.
A heteroreferência não é possível,
uma vez que, não se distingue o que é sistema jurídico e o que é meio ambiente,
por faltar uma Constituição com força efetivamente normativa para todos.
No Brasil (que, sem ufanismo,
reconheçamos ser Estado Periférico), a complexidade social não foi acompanhada
por estruturas jurídicas capazes de se adequar a ela. Os diversos sistemas não
se desenvolveram com autonomia operacional suficiente, surgindo relações de
subintegração e sobreintegração (vide aqui), nos sistemas sociais, o que,
segundo Marcelo Neves, descaracteriza-os como sistemas autopoiéticos (p. 150).
Podemos conceituar a
subintegração como processo de necessidade de benefícios e dependência dos
critérios do sistema para que tal se dê, sem que que ocorra o acesso às
prestações dele, pois há casuísmos que ferem os critérios; e a sobreintegração
como acesso aos benefícios do sistema sem o respeito aos critérios e às regras
dele (Roberto Damatta).
A relação entre direito e
política é desestabilizada, havendo a politização do jurídico. A
constitucionalização assim, atua como um álibi. O Estado aparenta se
identificar com os valores cristalizados na Constituição, mas que, por fatores
superiores oriundos da desfuncionalidade, não se realizam.
A Constituição de 1988, segue,
ainda, a estrutura nominalista, através do abismo entre o escrito e o
concretizado. E o pior é que não se trata nem somente de inconstitucionalidade,
mas mesmo de ilegalidade. Um exemplo se dá como nossa lei das execuções penais,
que nunca foi, minimamente sequer, obedecida.
Assim, antes de importar teorias
como a de Niklas Luhmann, que tal verificar se sua compleição se adequa à nossa
realidade social? Teremos, pelo menos, uma doutrina que não sirva como isca da
razão instrumental para fisgar nossa práxis forense, e perpetuar a as relações
desiguais de poder tão extremadas que ainda, passados 23 anos da Carta de 1988,
infelizmente, enfrentamos.
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de
direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD
Seu artigo é muito bom. Particularmente pensava que autopoiese, mesmo para a sociedade teria como base a própria vida. No caso das instituições não funcionarem seria uma "doença" autopoiética. Nesse sentido, torna a vida insustentável. Obrigado por compartilhar.
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