A Morte da Cabra

Início dos anos setenta. Um recém concursado Juiz Substituto viajava de sua comarca para uma cidade de outra região do estado, onde possuía uma propriedade.
Naquele período não havia o estado de insegurança hoje reinante nas estradas. Eram comuns as viagens noturnas, cujos únicos inconvenientes se davam nos períodos de chuva, momento em que vez ou outra a estrada ou ficava intransitável ou dificultosamente enlameada.
Quase zero hora de uma noite sem lua. E o destemido magistrado guiava tranqüilamente, apesar da estrada de piçarra, haja vista que não havia rodovias asfaltadas próximas. O trajeto já era, porém, seu conhecido.
No caminho, um bom trecho passava pela Paraíba, mais precisamente por Brejo do Cruz e Belém do Brejo do Cruz. E foi nas cercanias desta cidade que tudo aconteceu.
Eis que em meio aos buracos da estrada, já se aproximando da aglomeração urbana, depara-se, subitamente, com uma cabra prostrada no passadiço da pista. O gado caprino estava amarrado a uma estaca. Porém, assustada provavelmente com os faróis da camioneta guiada pelo Juiz, inopinadamente a cabra tentou correr para a margem oposta, exatamente no instante em que o veículo passava. A corda esticou ao máximo, deixando-a, subitamente, parada bem em frente ao veículo. Pou!
Entre assustado com a batida e irritado com o proprietário do infeliz animal, que teve a “inteligente” idéia de amarrá-lo próximo a uma rodovia, e já imaginando o destino trágico da cabra, desceu para conferir. Depois resolveu avisar à polícia, até porque era uma região violenta, não sabia quem seria e nem o caráter do dono do animal, e o magistrado sempre transitava na mesma caminhoneta por ali...
Chateado com o atraso, mesmo assim entrou na cidade e foi procurar a autoridade policial.
A cidade se encontrava às escuras. A iluminação, a gerador, já havia sido desligada àquela altura.
Conhecia-a, mas o suficiente para saber onde ficava a delegacia. Dirigiu-se à repartição policial. Lá chegando, pode observar com maior atenção que o prédio mais parecia uma tapera de tão pequena e tosca. Estava fechada. Mas pelas frestas da porta, e da única janela, conseguiu ver ao fundo uma luz de candeeiro, o que denunciava que não estava vazia. Bateu à porta. O barulho de alguém arrastando sandálias se aproximava.
– O delegado está? – perguntou o colega.
– Viajou para Caicó, no Rio Grande do Norte. Quem é? – perguntou uma desconfiada voz. Já passava da meia-noite, cabe acrescentar.
– Meu nome é Fulano. Vim comunicar uma ocorrência.
Após um átimo e um breve diálogo em voz quase sussurrante, respondeu:
– Venha amanhã de manhã.
– Era só o que faltava... – Balbuciou. E completou:
– Não posso. Estou de passagem.
Depois houve um silêncio. Como ninguém respondia, resolveu, então, virar-se para ir embora. Eis que de repente a porta se abre. Um sujeito esquálido e mal vestido apareceu. Certamente era um preso antigo da delegacia.
– Pode entrar – disse.
Sobre um sofá velho e encardido, um soldado descuidadamente vestido se acomodava, braços e pernas estendidos. Só fez questão de mexer uma das mãos ao perguntar:
– O que foi que aconteceu?
– Eu já estava desistindo de esperar. Mas foi o seguinte. Sou o Juiz da Comarca de Serra Negra, e vim aqui para comunicar que matei uma cabra, deixar meu endereço e telefone, caso alguém queira falar comigo sobre o fato e...
Nem sequer completou a frase e o soldado, que mal prestava atenção ao que ele dizia até instantes antes, de repente se ergueu, quase com um salto da poltrona. Bateu continência e imprimindo um tom sério relatou:
– Um momento, doutor.
– Mas era apenas...
Porém, nem deu tempo de concluir o raciocínio. O militar saiu em disparada para o interior da tapera. O preso olhou a autoridade com um ar de espanto e também se foi no mesmo compasso.
– Era só o que faltava... Atropelar uma cabra e dar nisso tudo. Agora esse soldado doido – balbuciou.
Passaram-se uns cinco minutos. Impaciente, olhava constantemente o relógio. Qual seria o motivo de tanta demora?
Eis que o soldado surgiu com o fardamento cinza completo, inclusive usando quepe e botinas. Olhou para o magistrado e o convidou, com um gesto, para que sentasse ao mal acabado birô. O policial se colocou em frente a uma máquina datilográfica, e após um suspiro, falou:
– Doutor, vou ter que tomar o depoimento do senhor... – e foi logo colocando uma folha de papel.
E o juiz pensou: Ih... tá ruim mesmo...
– Você tem certeza de que precisa tomar meu depoimento?
– Mas é claro, Doutor – Os encardidos dedos do soldado tateavam nervosamente as teclas da Olivetti enquanto falava. – Como tudo aconteceu?
O magistrado pensou: “isso é insólito. Mas é melhor dizer logo o que aconteceu, pois só assim esse maluco vai me deixar em paz.”
– Bem, eu estava passando na estrada logo aqui perto, antes do açude...
– Pois não, pode continuar, doutor – disse o policial, que digitava com uma certa dificuldade. Estava com o rosto suado. Parecia bastante tenso.
– E de repente atropelei uma cabra...
– “Peraí”! Uma o quê?
– Uma cabra.
– Uma o quê?
Já com a paciência esgotada, indignado com toda aquela maluquice, falou em alto e bom som:
– Uma cabra, uma cabra, você por acaso sabe o que é uma cabra?!
– Uma cabra?
– Ora, ora! E o que era que você estava pensando que era?!
– "Um" cabra, doutor! "Um" cabra! “Pe-la-mor-de-de-us” Vá seguir sua viagem!
– Mas como eu iria explicar se você nem mesmo tinha paciência para ouvir? Me dá um lápis e uma folha de papel!
– Pois não. Desculpe-me, doutor. Eis aqui.
– Está aí meu endereço, caso o dono da cabra queira falar comigo. – E foi embora após isso.
Dias depois chega um amigo lhe contando o diálogo ocorrido na manhã seguinte, na mesma delegacia.
Um velho chega e diz:
– Vim prestar uma queixa.
– O que foi que houve? – perguntou o referido soldado.
– Mataram uma criação minha atropelada essa noite. E eu...
– Vá embora agora mesmo, senão eu lhe prendo, seu infeliz! Se você soubesse o aperreio que essa maldita cabra me deu ,já estaria a uma légua daqui!

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