A Profissão da Testemunha

Em idos de dois mil e um, estava este magistrado realizando a pauta da Comarca de Patu, substituindo o colega que estava em gozo de uma licença, e prestes a ser promovido. Era uma das raras e famigeradas audiências de instrução e julgamento do Juizado Especial Criminal... Tanto por tão pouco!
Já que a Comarca sofria grande deficiência de pessoal, somente na hora da oitiva das testemunhas é que se inseria sua qualificação no termo de depoimento. Entra o depoente. Aproximadamente uns cinqüenta anos. Era de estatura baixa. Tinha pele queimada do sol, rosto redondo, as marcas das intempéries da vida lhe cravavam a face. Estava com um encardido chapéu de palha à cabeça, jeito humilde, tronco levemente curvado. Logo olhou para o meirinho, que gesticulou com as mãos sobre a testa.
– Ah! Entendi... – após menear a cabeça, retirou o chapéu e o colocou sobre o peito, quase que em sinal de defesa, pois claramente se via que era a primeira vez que estava perante uma autoridade judiciária, em um processo.
O depoente já tinha sido advertido sobre as conseqüências do falso testemunho. Fora um dos que olhara com mais atenção.
O esquálido oficial de justiça, novamente sem uma palavra sequer, discretamente indicou com um dos braços o local onde deveria o senhor sentar. Fazia um silêncio sepulcral na sala de audiências. Talvez isso o deixasse ainda mais tenso. Antes de sentar, olhou em torno do recinto.
– Bom dia senhor...
– Bom dia doutor.
– Como o senhor se chama? O seu nome completo?
Encabulado, enquanto tateava e circundava as abas do chapéu com os dedos de ambas as mãos, mirou um pouco o chão e depois respondeu:
– João (e disse o nome todo).
Dei, então, prosseguimento à qualificação, momento em que a digitadora transcrevia no termo de depoimento.
– É casado, senhor João?
– Sou, doutor – mantinha o chapéu sobre o peito. Desta vez fez um riso tímido. Remexeu-se sobre a cadeira. Ainda parecia incomodado e tenso, o que é comum nos primeiros instantes.
– Casado? – pergunte olhando para a diretora de Secretaria, que digitava.
– Sim.
– O senhor trabalha?
– Sim, "Dotô" – desta vez se notou a alegria em seu rosto.
– Com o quê?
– "Dotô", eu trabalhava no roçado. Mas com essa seca botei um “carteado” em casa.
Surpreso com a resposta inusitada da ingênua testemunha, e tentando contemporizar, meneei os braços e a cabeça, com as palmas das mãos dirigidas ao senhor João e disse:
– Eu não escutei o que o senhor disse...
Intrigado com minha exclamação, ele falou em alto em bom som:
– Eu tenho um carteado em casa!
Repeti a gesticulação, desta vez olhando para o então Promotor de Justiça à época, Dr. Eldro Sucupira Feitosa, que havia baixado a cabeça, com ânsia de rir.
– Olha, senhor João, eu estou dizen...
Desta vez o homem apelou:
– DOUTOR, EU TENHO UM CARTEADO, BARALHO A DINHEIRO!
Por se tratar de mero delito anão, o bom senso me disse que agisse com prudência. Dessa vez respirei fundo, olhei para o depoente, e falei:
– Olha, senhor João, eu disse que não ouvi o que o senhor falou, bem como o Dr. Eldro, não é, doutor? – ele concordou com um gesto, mantendo uma das mãos sobre a boca, escondendo o riso – É porque... o senhor sabe... jogos de azar constituem uma contravenção penal... O senhor está me entendendo?
O homem arregalou os olhos. Só naquele instante houvera dado conta do que tinha dito. Engoliu seco. O sangue sumiu do seu rosto rapidamente. Continuou calado. Depois de uns segundos, o instiguei a responder a pergunta, se estava entendendo o que eu havia dito. E o fez:
– Si... si... sim, "Dotô"!
Parei por mais um instante, aproximei-me dele, debruçando-me um pouco sobre a mesa, e falei:
– Como nem eu nem o doutor Eldro ouvimos bem o que o senhor respondeu, perguntarei novamente. Qual a profissão do senhor?
O pobre homem fez um breve sinal de concordância. Assumiu uma postura infantil, colocando a falange de um dos dedos na boca. Olhou para mim, para o promotor, para a digitadora. Olhou para o teto, para o chão. Nesse momento dava-se para ouvir apenas o barulho do ar-condicionado. Todos atentos, esperando a resposta dele. Então, levantou o tronco, e respondeu:
– Desempregado!
- Desempregado por quê, Seu João? - Perguntei.
- Se não posso ter um roçado "mode" a seca, nem um carteado "mode" o juiz, tô desempregado!
Ao final do seu depoimento, tocado com a pureza e ingenuidade da testemunha, chamei um Oficial de Justiça e o pedi que dissesse ao pobre senhor que ficasse tranquilo, pois o juiz tinha coisas muito mais importantes a fazer do que ir caçar carteados na cidade...

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