Um Dia Suburbano
“Na sociedade atual, em que tudo é mega, é grande, nada melhor
para transportar muitas pessoas de uma só vez, com rapidez e conforto, que num
ônibus. Além de todas estas vantagens, podemos destacar também seu lado
democrático porque...” Pára! Pára! Tô ficando louco!?
Pois era assim a idéia que tinha do transporte coletivo até o
dia que necessitei vender o que sobrou do meu fuscão vermelho 78 para pagar a
conta do muro destruído. Passei a andar
de GOL (grande ônibus lotado),
ingressando na escória dos que precisam tomar coletivos para suprir suas
necessidades (entendeu, necessidade, mesmo) de transporte diário.
Imagine este pacato homem de meia idade no primeiro dia em que
foi ao trabalho de ônibus. Achei emocionante acordar às cinco horas da
madrugada — mamãe sempre dizia que
acordar cedo faz bem à saúde. Ansioso fiquei na noite anterior, imaginando uma
loiraça se sentando ao meu lado e perguntando as horas... seria demais! Quem
sabe eu encontrasse o grande amor de minha vida, daqueles que assistimos nos
filmes Holywoodianos. Mas voltemos à realidade.
A ansiedade veio mesmo pra valer quando o danado do coletivo
começou a demorar. Conseqüência: passei uma hora me bronzeando na parada de
ônibus. Como bom eufemista, acalmei-me, afinal de contas o sol matinal contêm vitamina
D. Ainda por cima, diante do horário em
que cheguei ao trabalho, recebi inúmeros “elogios” do patrão...
Ao passar pela roleta, o cobrador com uma cara de quem comeu e
não gostou me disse com voz grave: não tenho troco! Recebi o desagrado um pouco
chateado, mas prossegui. Mal consigo passar para a parte posterior do veículo e
percebo que está completamente lotado. Nunca havia sentido pena das sardinhas,
mas agora sei o que é aperto.
Não obstante minha pouca estatura e peso (um metro e sessenta e
cinqüenta e dois quilos), um grandão que estava ao meu lado levantou seu braço
direito por sobre o meu rosto. Ai meu Deus, aquelas axilas nunca tinham sido
apresentadas a um desodorante na vida. Decidido a não estragar o dia que se
iniciava, prendi a respiração, controlei o impulso de desmaio, virei o rosto e
ali permaneci, até porque não havia condições de sair, nem de cair. Ainda de pé
no corredor do coletivo, ouço, de repente, um “COM LICENÇA, COM LICENÇA...” Era um gordão. Quase o desgraçado
me quebra uma costela quando sua pança monstruosa me imprensou contra a armação
do assento ao meu lado. Tive até vontade de xingá-lo, mas como bom cidadão,
resisti.
Até então segurando meus impulsos violentos — a muito
escondidos — cheguei a conclusão de que o mais pacato cidadão após um tempo de
tortura ou pressão psicológica perde um pouco da sua flexibilidade. Passei
então a lembrar uma entrevista que havia assistido na televisão. Era um legista
do Instituto Médico-Legal. Diferentemente do que pensava antes, concordei naquele momento com ele: O
ser humano, sob determinadas condições, é capaz até de matar! Todavia me
viessem à mente idéias macabras, permanecia controlado.
Poucos instantes depois, já cansado de escapar dos imprensões e
das aporrinhações, nem acreditei no que estava vendo. Uma moça que estava
sentada a minha frente fez a menção de se levantar. Todos olharam para ela como
se estivessem querendo sentar ali, mesmo que fosse necessário jogar a jovem
pela janela para tanto.
Dei uma ágil olhada ao meu lado. Minha posição era estratégica:
encontrava-me exatamente à frente da saída do assento. Quando a jovem
levantou-se, um garotão que estava por trás se esquivou e tentou ocupar-lhe o
lugar. Deus me perdoe, mas tive que usar discretamente do meu cotovelo bem na boca
do estômago do indivíduo. Houve-se um gruinhido de dor, daqueles que alguém
profere quando a coisa é séria. Vejo um corpo se contorcendo. Acho que errei o
seu estômago. Acertei-o mais embaixo...
Porém, o mais importante: em breve eu estava comodamente
sentado. Comodamente, digo, até o instante em que o homem que se posicionava ao
lado me dirigisse a palavra com um hálito de onça prenha, para falar de sua
vida e contar a surra que levaria da mulher quando chegasse bêbado em casa...
fiquei na dúvida entre ouvi-lo ou chorar. De pena de mim, é lógico.
De repente, um susto. Dois homens encapuzados declaram
gritando: ISTO É UM ASSALTO! Resultado. Lá se foram meu relógio e o dinheiro
que possuía. O ladrão, não sei se por comiseração ou por sacanagem mesmo, ainda
me devolveu a quantia suficiente para voltar pra casa. De ônibus, é claro.
E
assim se deu minha primeira e traumática viajem de ônibus. Mas com o tempo,
caro leitor, você se acostuma. Aprendi até alguns macetes para se dar bem. Não
cedo meu lugar nem pra velhinha paralítica. E cara feia para mim é bobagem. Já
usei três vezes o truque do vômito para abrir caminho. Quando aproxima-se a
parada e a minha delgada silhueta não consegue transpor a barreira de gente,
digo em alto e bom som: VOU VOMITAR! Não fica ninguém na frente. Vi um jovem
que, em um ato de desespero, dependurou-se no corrimão do teto para não ver
manchada sua farda do colégio.
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