Diálogo sobre a maldade


No saguão de embarque de um aeroporto, dois ex-colegas de faculdade se reencontram:
– Tudo bem, amigo?
– Tudo bem! Há quantos anos, né?
– Pois é. Lá se vão quase quinze. Nos formamos em 96, num foi isso?

– Foi sim.
– E aí? Soube que você é juiz lá mesmo em Goiás. Está aqui de passeio?
– Conexão, apenas. Sou sim juiz lá. E você há alguns anos está por aqui. É delegado de polícia, né isso? Indo pra Curitiba também?
– Também. Isso. Qual a sua área lá em Goiás?
– Criminal.
– Muito bom atuar prendendo bandidos. Aqui eu boto pra lascar na bandidagem.
– É mesmo, meu amigo?
– É. Não dou moleza. Precisamos muito do Judiciário, viu? Como é sua relação lá com a polícia?
– Muito boa. Acho o trabalho policial muito importante.
– Aqui tem uns juízes que colaboram e outros que são ruins de trabalhar, pois só querem saber de direitos humanos. Mas nunca falam em direitos humanos pra policiais... Gosto é de juízes que combatem a criminalidade de verdade. Ih, mas esqueci que você sempre foi meio metido a sociólogo.
– Como assim?
– É que a gente não pode nem dar uns tapinhas na bandidagem. Eu mesmo estou respondendo a duas torturas.
– Mas você torturou?
– Sempre tive muita sede de justiça, você sabe. Teve um que assaltou uma moça e bateu nela. Tive pena não, vou confessar. Nosso trabalho é difícil. Num vivo num gabinete que nem você. Assim, comigo se olhar no olho, dou logo uma mãozada pra aprender a respeitar. Com bandido a gente não pode alisar... Já o segundo processo foi com um ladrão de cargas.
– Acho que todos devem ser respeitados, lembre disso. E violência gera violência, meu caro. Saiba que um sujeito que apanha, quando sai, pode querer se vingar de você ou, se não tiver coragem, deslocar essa frustração e raiva da surra em uma pessoa que estiver em situação de inferioridade, geralmente um familiar ou uma eventual vítima em um assalto, por exemplo.
– Você sempre foi um idealista! Mas a teoria, na prática, é outra. Teve um que levou umas porradas de mim e quando me viu, dias depois, mijou nas calças – disse rindo. E continuou: – Vai pensar dez vezes antes de assaltar de novo. Tinha um colega seu aqui que era todo do lado dos direitos humanos. Eu estava respondendo a um processo na Vara dele. Acontece que foi assaltado e bateram nele. Fui para lá. Quando ele me viu, ficou sem jeito e disse que queria que eu matasse os caras. Eu respondi que era policial e não jagunço. Meses depois me absolveu... E digo mais. Acho que todos os promotores e juízes deveriam ser assaltados pra saberem como fica uma vítima.
– Naquele momento não era um juiz que estava pedindo vingança a você. Era uma vítima revoltada. Perfeitamente compreensível. Você é que estava com razão em não agir como justiceiro. Já em relação ao seu julgamento, acho que ele deveria ter se declarado suspeito. Não era mais imparcial para julgá-lo, ainda mais depois do que ele lhe disse.
– Você diz isso porque nunca foi assaltado, seu almofadinha. Hahaha!
– Ei, já fui sim. Na época de faculdade, não lembra? E ainda me obrigaram a ficar na mala do carro. Assalto relâmpago. Se encontrasse os réus, jamais poderia julgá-los. E não acho que juiz tem que combater a criminalidade. Juiz aplica a legislação penal, respeitando as garantias constitucionais. Esse cara que roubou a menina é criminoso, não é?
– É um bandido safado.
– E torturar também não é coisa de criminoso? Para mim não há diferença entre a conduta do ladrão que assalta e de agentes da lei que espancam esse mesmo ladrão. As leis são para todos. Nós não podemos criar o nosso código penal pessoal. E muito menos sermos o acusador, o juiz e executor de suas próprias leis. Nem eu, nem você e nem ninguém está acima da Constituição. Sei que seu trabalho é difícil. Mas não se deixe brutalizar, meu amigo, banalizar a violência. E não vou desejar que todo delegado seja torturado pra saber como é, para que vocês não passem essa bola envenenada para a frente...
– Bater eu bato, não vou mentir. Mas essas mãos aqui nunca receberam um tostão, você me conhece bem. Uma das torturas que respondi foi exatamente no caso de um ladrão de carga que me ofereceu um carro pra que eu o liberasse.
– Acho que você tem uma idéia errada do que seja corrupção. Não se trata somente de receber dinheiro. Corromper é inverter as regras. Uma autoridade que deveria fazer cumprir as leis penais se corrompe quando as viola deliberadamente, aproveitando-se do poder inerente à sua condição de policial. E enquanto juiz, não posso aceitar tal violação da dignidade de uma pessoa que foi espancada quando já estava rendida. É querer passar por cima do próprio Judiciário e violar as regras do jogo democrático. Você é uma pessoa de bem. Não se deixe brutalizar.
– Você continua o mesmo idealista...
Mudaram o rumo da prosa. Conversaram amenidades. O policial se despediu e foi embora. O juiz balbuciou, quando ele saiu:
– É uma pena você ter mudado tanto...
*          *           *
O diálogo acima é fictício, mas representa muito bem o que povoa o imaginário de uma perigosa minoria dos chamados “agentes da lei”. “O poder não muda as pessoas, revela-as” – como disse Frei Betto. Temos, infelizmente, psicopatas em todos os ramos e em todas as camadas da sociedade, mas sua doença pode ser socialmente mais danosa nas profissões que expressam uma parcela do Poder. Os perversos gozarão estar em posição de superioridade e comando, pois poderão por em prática o insaciável desejo de causar dor, transferindo (Freud) essa maldade para o exercício de sua atividade profissional, em que não faltarão vítimas e oportunidades de poder fazer o mal e ainda serem remunerados por isso...

Comentários

  1. belo texto...no início da leitura já até ri um pouco achando que era uma daquelas histórias engraçadas suas, mas aos poucos o sorriso foi se desfazendo e passei a imaginar a cena ( bem realista por sinal... tem certeza que não aconteceu?)! Realmente é difícil manter esse idealismo com tudo o que esta acontecendo,mas, pessoalmente, vou tentar não me brutalizar tb.Valeu pela dica... abraço!

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  2. Maravilha de texto, dr. Rosivaldo! Você como sempre brilhante.
    De início pensei tratar-se de uma estória verídica. Fiquei até aliviada, mas não tenho dúvidas de que ela retrata fielmente a realidade que acontece dia a dia, notadamente em Delegacias,onde alguns princípios humanitários são violados e até mesmo suprimidos pelo mau uso do poder.
    Lorena Faustino.

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  3. Belissimo texto! Muitos se tornam criminosos ao obterem a mesma forma de pensar e agir, não vale a pena tentar mudar os que se perderam, mas sim, não deixar os demais se transformarem neles.

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  4. Valdeice de Pau dos Ferros26 de abril de 2010 às 13:48

    Parabéns, dr.Rosivaldo,seu texto condiz com a realidade de todo Brasil.Que o mesmo seja um alerta pra todos aqueles que querem fazer justiça com as proprias mãos.

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  5. Prabéns,RosivaldO!!!!
    O texto relata fielmente a realidade bem proxima.
    Não sou da área jurídica,mas tenho grande admiração por sua pessoa.
    Depois que passei a ler seus textos,minha visão humanista mudou. Obrigada por ter grande parcela na reforma do meu eu!

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  6. Como se não existisse juiz que fizesse pior. Muito pior. Como Delegado me sinto ultrajado por essas tentativas de desmerecer minha profissão.
    Dizer que há juízes corruptos é cair no vazio. Claro que existem. Mais óbvio ainda é dizer que a imensa maioria dos magistrados se acha superior. Quem acha a toga, um pedaço de pano preto, magnífica, que o diga!
    Pare de difamar a polícia e tentar promover essa aura de pureza e sapiência do judiciário porque isso simplesmente não existe!

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  7. Parabéns pelo texto! E realmente muitos policiais e delegados, não me refiro a todos, mas os que eu conheço, parece que se deleitam em machucar e torturar o (pobre! Rico é torturado!) preso algemado e rendido!

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  8. Realmente, falou em poder, os homens são capazes de tudo. Os covardes são logo aqueles que se apropriam desse poder para prejudicar os outros. Até parece que um erro justifica o outro. Deus, quando concede um poder a alguém, é para que esse alguém possa utilizá-lo a fim de corrigir o outro e não humilhá-lo, fazer pouco dele por pior que seja esse criminoso. Parabéns pelo texto, Rosivaldo!

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