A Lei Maria da Penha e a Fenda no Rochedo
Há poucos dias recebi a visita de uma acadêmica de direito que estava procurando subsídios para a feitura de seu trabalho de conclusão de curso e que seria na área penal. Prontifiquei-me a ajudá-la e perguntei qual o tema. Ela me disse que partia do seguinte pressuposto: com base no princípio da isonomia, a lei Maria da Penha deveria ser aplicada também na proteção dos homens contra violências praticadas por mulheres.
O principal argumento apresentado foi o de que a mulher era “mais desequilibrada” do que o homem(!) e se dizia prova viva disso. Em razão desse desequilíbrio, a mulher incitaria a agressão por parte do companheiro/cônjuge. A mulher deveria deixar de ser tratada como coitadinha para poder se impor na sociedade.
Impressionado com a miopia social da jovem estudante, retruquei perguntando de onde mais ela tirava essa conclusão de que as mulheres eram mais desequilibradas do que os homens e que se eu fosse tirar conclusões com base nas minhas próprias experiências, afirmaria que a pessoa mais equilibrada com que eu convivia era uma mulher: a minha noiva. Ela disse que não faltavam pesquisas comprovando sua tese e que isso era óbvio.
Resolvi explicar à jovem que uma pesquisa científica precisa partir de uma hipótese e não de uma certeza. Se assim fosse, ela nem precisaria se dar ao trabalho de pesquisar, pois a verdade absoluta já estava dada. Outrossim, a postura científica requer abertura para outras possibilidades e que não raras vezes comigo comecei a testar uma hipótese e ao final dos estudos estava convencido do contrário.
Disse ainda que ela partia de um paradigma falso quando se referia ao princípio da isonomia. Ontologicamente os princípios não se bastam a fazer uma constatação (ser), mas sim se propõem a promover um estado de coisas (dever ser). Era exatamente o contrário. A existência do princípio na Constituição revelava a necessidade de se buscar continuamente tratar as pessoas de maneira igualitária, haja vista a ocorrência de desigualdades na vida social.
Na nossa atualidade – disse-lhe –, apesar de termos uma governadora, e só são quatro no país, a prefeita da capital e a da maior cidade do interior, nosso Tribunal de Justiça tem apenas uma desembargadora em sua composição, apenas duas deputadas estaduais a Assembléia Legislativa, uma deputada federal e uma senadora. Além disso, somente agora, passados mais de 120 da proclamação da República, teremos uma candidata com reais chances de vencer as eleições para presidente. Pesquisas demonstram que as mulheres ganham menos que os homens e ocupam muito menos posições de comando nas grande empresas.
Atento às condições pessoais da estudante – mulher, afrodescendente, de origem humilde e habitante da região mais pobre do país –, busquei sensibilizá-la informando que além da desigualdade de gênero temos outros abismos em nossa realidade social; que há a necessidade de ações afirmativas também em favor dos afrodescendentes; e que para se cumprir a Constituição precisamos diminuir as desigualdades entre ricos e pobres e entre as regiões do país. Disse-lhe que só assim teremos um país menos conflituoso.
Enquanto conversava com ela, refletia sobre nosso sistema de ensino do direito – que não preza pelo desenvolvimento do senso crítico. Pelo contrário, transforma o estudante em um depósito de regras, nomenclaturas e jurisprudências, e o discurso jurídico em um mero almoxarife que, à primeira ordem, deve ir às prateleiras e trazer corretamente os produtos guardados que interessem ao pensamento hegemônico.
A jovem cruzou os braços e aparentou aborrecimento pela surpreendente falta de apoio à sua “tese”. E saiu em busca de outros magistrados no prédio do fórum. Certamente não a convenci naquele momento. Espero, tão somente, ter causado, ao menos, uma diminuta rachadura no rochedo da sua insensibilidade. Quem sabe à noite, ao travesseiro, nos últimos instantes antes do sono, haja a possibilidade de naquela fenda crescer uma pequena flor...
Impressionado com a miopia social da jovem estudante, retruquei perguntando de onde mais ela tirava essa conclusão de que as mulheres eram mais desequilibradas do que os homens e que se eu fosse tirar conclusões com base nas minhas próprias experiências, afirmaria que a pessoa mais equilibrada com que eu convivia era uma mulher: a minha noiva. Ela disse que não faltavam pesquisas comprovando sua tese e que isso era óbvio.
Resolvi explicar à jovem que uma pesquisa científica precisa partir de uma hipótese e não de uma certeza. Se assim fosse, ela nem precisaria se dar ao trabalho de pesquisar, pois a verdade absoluta já estava dada. Outrossim, a postura científica requer abertura para outras possibilidades e que não raras vezes comigo comecei a testar uma hipótese e ao final dos estudos estava convencido do contrário.
Disse ainda que ela partia de um paradigma falso quando se referia ao princípio da isonomia. Ontologicamente os princípios não se bastam a fazer uma constatação (ser), mas sim se propõem a promover um estado de coisas (dever ser). Era exatamente o contrário. A existência do princípio na Constituição revelava a necessidade de se buscar continuamente tratar as pessoas de maneira igualitária, haja vista a ocorrência de desigualdades na vida social.
Na nossa atualidade – disse-lhe –, apesar de termos uma governadora, e só são quatro no país, a prefeita da capital e a da maior cidade do interior, nosso Tribunal de Justiça tem apenas uma desembargadora em sua composição, apenas duas deputadas estaduais a Assembléia Legislativa, uma deputada federal e uma senadora. Além disso, somente agora, passados mais de 120 da proclamação da República, teremos uma candidata com reais chances de vencer as eleições para presidente. Pesquisas demonstram que as mulheres ganham menos que os homens e ocupam muito menos posições de comando nas grande empresas.
Atento às condições pessoais da estudante – mulher, afrodescendente, de origem humilde e habitante da região mais pobre do país –, busquei sensibilizá-la informando que além da desigualdade de gênero temos outros abismos em nossa realidade social; que há a necessidade de ações afirmativas também em favor dos afrodescendentes; e que para se cumprir a Constituição precisamos diminuir as desigualdades entre ricos e pobres e entre as regiões do país. Disse-lhe que só assim teremos um país menos conflituoso.
Enquanto conversava com ela, refletia sobre nosso sistema de ensino do direito – que não preza pelo desenvolvimento do senso crítico. Pelo contrário, transforma o estudante em um depósito de regras, nomenclaturas e jurisprudências, e o discurso jurídico em um mero almoxarife que, à primeira ordem, deve ir às prateleiras e trazer corretamente os produtos guardados que interessem ao pensamento hegemônico.
A jovem cruzou os braços e aparentou aborrecimento pela surpreendente falta de apoio à sua “tese”. E saiu em busca de outros magistrados no prédio do fórum. Certamente não a convenci naquele momento. Espero, tão somente, ter causado, ao menos, uma diminuta rachadura no rochedo da sua insensibilidade. Quem sabe à noite, ao travesseiro, nos últimos instantes antes do sono, haja a possibilidade de naquela fenda crescer uma pequena flor...
Veja o lado positivo, Dr. Rosivaldo: apesar de ela ter saído meio 'desiludida', ao menos o senhor foi sincero o bastante para não impulsioná-la a iniciar um trabalho que, este sim, no futuro, quando ela finalmente entendesse o sentido da lei, a faria cair em um mar de decepção e, o pior, dizer "bem que aquele juiz disse que não era desse jeito...".
ResponderExcluirEis a primeira decisão aplicando a lei da violência doméstica para um homem, proferida em 2008:
ResponderExcluirDecisão interlocutória própria padronizável proferida fora de audiência. Autos de 1074/2008
Vistos, etc. Trata-se de pedido de medidas protetivas de urgência formulada por CELSO BORDEGATTO, contra MÁRCIA CRISTINA FERREIRA DIAS, em autos de crime de ameaça, onde o requerente figura como vítima e a requerida como autora do fato.
O pedido tem por fundamento fático, as varias agressões físicas, psicológicas e financeiras perpetradas pela autora dos fatos e sofridas pela vítima e, para tanto instrui o pedido com vários documentos como: registro de ocorrência, pedido de exame de corpo de delito, nota fiscal de conserto de veículo avariado pela vítima, e inúmeros e-mails difamatórios e intimidatórios enviados pela autora dos fatos à vítima. Por fundamento de direito requer a aplicação da Lei de nº 11.340, denominada “Lei Maria da Penha”, por analogia, já que inexiste lei similar a ser aplicada quando o homem é vítima de violência doméstica. Resumidamente, é o relatório.
DECIDO: A inovadora Lei 11.340 veio por uma necessidade premente e incontestável que consiste em trazer uma segurança à mulher vítima de violência doméstica e familiar, já que por séculos era subjugada pelo homem que, devido a sua maior compleição física e cultura machista, compelia a “fêmea” a seus caprichos, à sua vilania e tirania.
Houve por bem a lei, atendendo a súplica mundial, consignada em tratados internacionais e firmados pelo Brasil, trazer um pouco de igualdade e proteção à mulher, sob o manto da Justiça. Esta lei que já mostrou o seu valor e sua eficácia, trouxeram inovações que visam assegurar a proteção da mulher, criando normas impeditivas aos agressores de manterem a vítima sob seu julgo enquanto a morosa justiça não prolatasse a decisão final, confirmada pelo seu transito em julgado. Entre elas a proteção à vida, a incolumidade física, ao patrimônio, etc.
Embora em número consideravelmente menor, existem casos em que o homem é quem vem a ser vítima da mulher tomada por sentimentos de posse e de fúria que levam a todos os tipos de violência, diga-se: física, psicológica, moral e financeira. No entanto, como bem destacado pelo douto causídico, para estes casos não existe previsão legal de prevenção à violência, pelo que requer a aplicação da lei em comento por analogia. Tal aplicação é possível? (continua)
(continuação)
ResponderExcluirA resposta me parece positiva. Vejamos: É certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal, firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: “Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.”
Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: “Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz” (DAMÁSIO DE JESUS – Direito Penal - Parte Geral – 10ª Ed. pag. 48) Ora, se podemos aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um crime. Por algumas vezes me deparei com casos em que o homem era vítima do descontrole emocional de uma mulher que não media esforços em praticar todo o tipo de agressão possível contra o homem. Já fui obrigado a decretar a custódia preventiva de mulheres “à beira de um ataque de nervos”, que chegaram a tentar contra a vida de seu ex-consorte, por pura e simplesmente não concordar com o fim de um relacionamento amoroso.
Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Pode Judiciário para fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia. È sim, ato de sensatez, já que não procura o homem/vítima se utilizar de atos também violentos como demonstração de força ou de vingança. E compete à Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de uma solução de conflitos, em busca de uma paz social.
No presente caso, há elementos probantes mais do que suficientes para demonstrar a necessidade de se deferir a medidas protetivas de urgência requeridas, pelo que defiro o pedido e determino à autora do fato o seguinte: 1. que se abstenha de se aproximar da vítima, a uma distância inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local de trabalho; 2. que se abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja por telefonema, e-mail, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se o competente mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até em prisão. I.C.
Penso que foi esta decisão que iniciou o debate e inspirou o trabalho da aluna...
ResponderExcluirAdmiro voce demais!!!!!!!!!!
ResponderExcluirDr. Rossivaldo eu sou a pessoa que recebeu sua ajuda na hora da maior necescidade , e Deus lhe usou e lhe enviou aq e pedi q me ajudasse e foi um milagre com 3 messes tudo foi resolvido, hoje estou aq para te agradecer pois que Deus o dono do universo lhe proteja de todos lhe dando saude e paz em toda sua vida. pois na epóca morava em Almino-Afonso,
ResponderExcluirassina Iolanda da Silva forte.
Dr.Roossivaldo eu Iolanda estou aq pra agradecer o favor recebido de sua boa vontade, pois te desejo muita saude e paz.
ResponderExcluirque as bençãos de Deus desçam sobre vc e familia e que nunca passe pela situação que passei.
muito grata...
Interessante o tema porem controverso.
ResponderExcluirConcordo que mt vezes a mulher utiliza-se do sistema para revidar as incansaveis faces da intolerância masculina. Porem, não se pode discutir o beneficio da Lei Maria da Penha,
Fco a imaginar qts a qts mulheres ja sofreram de agressões fisicas, emocionais, sem ter ao menos com quem partilhar seu sofrimento, pq é vergonhoso ser humilhada e escurraçada dentro de sua propria casa, perante filhos, parentes, vizinhos, amigos..., ser agredida justamente por aquele que prometeu amor, na alegria, na doença, na saude e na tristeza; talvez essa moça ainda não tenha vivido o suficiente para entender que se faz necessario resposta aos covardes, que juram que ficam ilesos a atos abusivos praticados contra as mulheres.
Rosivaldo, acho que isso tb vem da necessidade de "mostrar serviço" em um tema contronverso. Sabe aquela síndrome de Gaúcho (TJRS), sempre querendo inovar, ser o desbravador na jurisprudência? :P Mas ela se utilizou de um PÈSSIMO ARGUMENTO!!! Mulheres são desequilibradas? Eu vejo, sim, muitos relacionamentos falidos, mas não por culpa de apenas 1 pessoa... admito que ,lendo a decisão interlocutória acima,fiquei até com pena desa criatura, mas a Lei Maria da Penha é bem clara com relação a função de proteger a mulher. Pode ser até que um dia eu mude essa idéia,mas tenho que ouvir melhores argumentos.
ResponderExcluirCom relação ao espírito mais crítico, é sempre o que comento...só despejam teorias e nada de discutir. Mas ela aprende um dia( como eu tento ainda)!!!
Mas vc não respondeu sobre a pergunta do twitter... as pessoas que não coabitam(que apenas namoram ou "ficam") tb estão protegidas pela LMP? Abraços e sempre é um prazer ler seu blog. :)
o que sempre eu achei um problema nesse tipo de lei é que uma lei feita para um determinado tipo de pessoa parte de um principio falio, como no caso um lei que cuidada apenas das mulheres parte do principio que apenas elas necessitam de cuidade isso me paresse incostitucional , por ferir o artigo 3 IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
ResponderExcluira lei tem que proteger pessoas dentro de uma situação não generos e raças